sábado, 18 de junho de 2011

A LEGITIMAÇÃO DA VIOLÊNCIA NA RELAÇÃO ENTRE O ESTADO E O POVO

Albano Pedro

Recentemente o mundo veiculou a notícia sobre a condenação dos principais autores do genocídio do Rwanda que levou mais de 800.000 pessoas à morte em pouco menos de três semanas, depois de mais de uma década da sua ocorrência. Dentre os autores do famigerado genocídio, o General Augustin Bizimungu (hoje 59 anos de idade) foi sem dúvidas o mais notável. Quem assistiu o filme Hotel Rwanda (em alusão ao genocídio) pode ter uma ideia da sua importância estratégica no caso que eclodiu com a morte do, então, presidente ruandês, Juvenal Habyarimana a 6 de Abril de 1994, quando o seu avião foi abatido. Contudo, a justiça, embora lenta, foi feita. O que confere um sentimento de satisfação sobre o trunfo da justiça sobre a impunidade para os milhares de sobreviventes do genocídios e de todos aqueles que dele têm recordações assombrosas. Esse sentimento porém, já se apresenta enevoado de incerteza quando comparado com a morte de Osama Bin Laden, que para os muçulmanos, de uma maneira geral, consideram inaceitável por julgarem merecer um tratamento judicial equivalente ao do General Bizimungu, mesmo quando o mundo, na senda dos EUA, cante vitorioso com a sua morte.
Esse quadro leva a reflectir sobre a legitimação da violência do Estado e a sua utilidade na harmonização dos interesses dos povos e das nações nos dias de hoje. Com efeito, o triunfo do contratualismo social (movimento constitucional) trouxe consigo a consagração de elementos relativos a libertação dos povos (direitos e igualdades entre os pares) contra a hegemonia esmagadora dos soberanos condicionada pela necessidade de estabelecer novos mecanismos de controlo do poder. Paradoxalmente, este exercício de (re) organização dos Estados deu lugar a legitimação de um novo modelo de violência dos poderes públicos como instrumento de equilíbrio social expresso num conjunto de instrumentos consagrados na própria constituição. Assim, o homem perdeu em grande medida a capacidade de rebelião contra os poderes públicos e o Estado ganhou meios de tortura até a exaustão contra os próprios cidadãos (prisão perpétua, pena de morte, etc.). Admite-se no contexto das leis nacionais um conjunto de mecanismos de concretização da violência que aos poucos vão sendo igualmente justificados nas relações internacionais. Assim, os EUA justificaram a sua agressão contra o Iraque para derrubarem Saddam Hussein e darem azo a um conjunto de acções militares que têm resultado em instabilidade política e até social para muitas nações, em nome de uma “guerra preventiva” que ingressou como terminologia obrigatória no Direito Internacional Público por imposição unilateral do seu promotor. De todo o modo, verifica-se um quadro em que a violência do Estado nem sempre responde aos interesses dos povos, mesmo quando promovida em nome deste.
O tema sobre a violência na relação entre o Estado e o povo tem toda oportunidade nos momentos que correm, em que assistimos o derrube de Laurent Gbabo da Presidência da Costa do Marfim taxado como magistrado inconstitucional por falta de legitimidade gerada pelas eleições que o opôs a Alassana Ouattara; o conflito armado na Líbia em que é alegado o envolvimento das forças fieis a Muhamar El Khadafi e os rebeldes, entre os quais o povo, em guerra civil sangrenta e sobretudo as ondas de manifestações no mundo e em Angola como reflexo de um clima de mau relacionamento entre o Estado e o Povo. É claro que o conceito de Estado aqui utilizado é o de poder, representado pelas autoridades públicas, contrariamente ao conceito modernamente utilizado que entende (e com o qual não deixo de concordar) que o Estado é o substrato humano e como tal personificado pelo povo. O caso angolagate que terminou de forma gloriosa para Angola varrendo o desprestígio dos indivíduos envolvidos dos dois países (o outro é França) assentou a sua razão de ser na violência do Estado viabilizada pelo tráfico “ilícito” de armas. Aqui temos uma violência que a Lei em especial e o Direito em geral classificam de legítima por ser no interesse do povo embora tenha dizimado o próprio povo, para ironia da finalidade.
Em Angola, a opção política pelo comunismo a partir de 1975 arrastou o Estado numa excessiva onda de actos de violência contra o povo durante décadas (serviço militar forçado, recolher obrigatório, limitação na circulação de pessoas e bens, prisões arbitrárias por actos qualificados injustificadamente como crimes contra a segurança do Estado, etc.) sobrevivendo ainda na actuação dos poderes públicos (“maxime”, agentes de autoridade), com efeitos limitadores gravosos no exercício dos direitos e liberdades materiais dos cidadãos. O que se nota com a contra-cultura que as recentes manifestações de jovens insatisfeitos com realidade política, económica e social vêem trazendo no modo de percepção dos agentes de ordem pública (e até dirigentes políticos), quando reagem ilicitamente contra direitos e liberdades constitucionais. O uso ilícito da violência do Estado é hoje muito patente nas prisões arbitrárias contra indivíduos que protestam contra os regimes ditatoriais (poderes ilegítimos) ou contra os movimentos reivindicativos do bem-estar social e económico contra os poderes públicos impotentes. O que macula a eficácia da Democracia enquanto modelo de controlo de poder político mais aplaudido no mundo actual e leva a necessidade de ponderação sobre novos modelos de contenção ou viabilidade desta mesma violência do Estado em atenção ao povo em nome do qual é legitimada.

segunda-feira, 13 de junho de 2011

DOS EMBARGOS DE OBRAS E DEMOLIÇÕES DE IMÓVEIS

QUESTÕES ÉTICAS E LEGAIS PERTINENTES NO CONTEXTO DO PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO

Albano Pedro

Os embargos de obras e as demolições de imóveis (residenciais, comerciais e outros titulados por particulares) por parte do Estado (administração pública agenciada por Governo Provincial ou Administração Municipal) são um problema administrativamente mal esclarecidos já que, via de regra, cumprem um procedimento marginal em relação a Lei. O que geralmente acontece é a administração pública levar a cabo um processo de embargo da obra e posterior demolição, quando este último acto convir. Algumas vezes com aviso-notificação, outras vezes sem ele. Situações que levantam questões sobre a legalidade dos actos administrativos assim executados.
Partindo do princípio de que todo o imóvel urbano (moradias e edifícios diversos) cuja construção não foi autorizada é tida como simples obra e sobretudo fora das exigências legais, ponto assente é que nenhuma obra deve ser embargada sem o conhecimento do tribunal (posterior ou anterior) seja por parte do Estado seja por parte de um particular. Nisso a Lei é peremptória (art.º 412º e SS do Código de Processo Civil). Embora, a Lei permita que o embargo de obra ocorra de forma extra-judicial, isto é, sem o conhecimento do tribunal o autor (interessado) do embargo deve requerer a ratificação judicial (anuência ou concordância do tribunal) nos três dias seguintes sob pena de ficar sem efeito e como tal o embargo ser levantado por nulidade do acto que lhe subjaz. A Lei só não impõe este prazo ao Estado que tem assim a faculdade de embargar obras sem as exigências do prazo estabelecido. O que não quer dizer que não deva requerer a respectiva ratificação judicial (isto é de tomar boa nota). Isto significa que a demolição da obra só pode ocorrer mediante autorização judicial e no seguimento de um processo judicial com tal finalidade, já que o pedido de embargo da obra configura um procedimento cautelar que como tal assenta num procedimento judicial provisório (porém, urgente) visando acautelar direitos e interesses presumidos como juridicamente tutelados (fumus boni iuris).
Quanto as demolições directas sem embargo de obra promovidas pelo Estado podem ser justificadas pela faculdade genérica inscrita no privilegio de execução prévia – enquanto mecanismo que assiste os poderes públicos no uso do ius imperii (poderes privilegiados para o garante dos interesses colectivos em sacrifício de interesses particulares, sempre que necessário) - em que se presume que o Estado, sendo pessoa de bem – como tal interessada no bem-estar comum das pessoas – age sempre segundo a Lei (nunca de boa-fé por falta de vontade própria). Os embargos e demolições no uso desses privilégios podem mesmo incidir sobre obras e imóveis legalmente autorizados (devidamente registados e com impostos actualizados inclusive). Por exemplo, pense-se numa linha férrea que deve ser construída num troço em que se encontram edificadas certas moradias. As exigências do prazo de execução da obra com a linha férrea pode ser incompátivel com procedimentos administrativos prévios, tais como negociar a saída dos moradores e outros pressupostos legalmente exigidos. Assim, o Estado promotor da obra (via férrea), pressionado pelo tempo e custo da obra em causa, pode antecipar a demolição para proceder os acertos posteriormente. Tudo para que o prazo do termino da obra com a linha férrea não seja posta em causa sobretudo devido aos custos que oneram os cofres do Estado que em ultima ratio acabam impondo sacrifícios a toda a colectividade protegida pelo interesse público. Ou seja, o interesse público pode impor o sacrifício incontinenti do interesse particular sem a observância de quaisquer formalismos legais prévios. Ainda aqui, o Estado tem uma Ética (princípios legais, no caso) a seguir: Deve, inter alias, agir com proporcionalidade (isto é, o sacrifício imposto ao particular deve ser proporcional ou equivalente a sua capacidade recuperação sobre o prejuízo) e prever a reparação do dano causado (a sua recuperação do prejuízo ocorre com apoio do próprio Estado, quando seja a entidade autora). E aqui vem um procedimento obrigatório para quem quer que seja que promova o embargo da obra e ou a correspondente demolição: o dever de reparar o dano ou prejuízo causado ao lesado titular ou possuidor da obra em causa, i.e., tanto o embargo da obra e as demolições que ocorram com ou sem autorizações judiciais importam indemnizações e obriga o seu autor (Estado ou particular) a colocar a pessoa lesada na condição de insensibilidade quanto a privação do imóvel embargado e ou demolido, ou seja, a repor a condição do lesado antes da produção dos danos causados. Dixit.