quinta-feira, 21 de julho de 2011

O PROBLEMA DA GESTÃO DE NEGÓCIOS

Albano Pedro



Frequentemente as pessoas dão com situações em que não são capazes de administrar os seus próprios bens, sobretudo patrimoniais. Seja temporariamente seja definitivamente. O viajante que aproveita o parque do aeroporto e viaja com certeza de ter deixado a viatura em segurança; a moradia deixada com a recomendação de ser vigiada pelo vizinho ou ainda a empresa administrada por alguém de confiança do gestor durante o período em que este adoece e se encontra hospitalizado. São situações em que o apoio de terceiros se impõe com a urgência necessária mas que demanda consequências interessantes: o homem que regressa de viagem e encontra a viatura danificada que tinha deixado ao cuidado do irmão ou a senhora que deixou o animal de estimação ao cuidado de uma outra e a encontra com visível falta de cuidados (magro ou mal alimentado) apesar de ter deixado condições materiais para o efeito. O simples favor concedido pelo homem de bom senso imbuído de impulso para a entreajuda assume então repercussões jurídicas que, não raro, levam ao arrependimento e consequente sacrifício patrimonial com vista a recompensa dos danos eventuais da parte de quem se prestou a aparente e inicial obrigação moral. A realidade subjacente a este efeito jurídico do simples impulso da natureza moral é que a Lei não permite que os bens se dispersem ou caiam em situações de puro abandono sem lhes conferir a mínima protecção possível. Pois, a vida é essencialmente material e como tal configurada e preenchida por bens patrimoniais com valores necessários a existência harmoniosa dos homens. É uma questão de prevenção de conflitos e da sua redução ao mínimo necessário, que o Direito intervém nas relações patrimoniais.

A impossibilidade definitiva de controlo e administração de bens é normalmente suprida com base em contrato (mandato ou procuração – ver art.º 1157º - Código Civil – Adiante CC) em que o proprietário do bem em causa constitui terceiro, normalmente competente, para manter a sua administração prevendo no respectivo instrumento jurídico os necessários poderes de administração (civil ou comercial conforme o caso). Casos que se verificam, normalmente em situações de velhice, doença debilitante entre outros que implicam uma transferência de poderes de administração com duração indefinida no tempo, embora essa modalidade de contrato possa ser utilizada em casos em que não se verificam quaisquer problemas da parte do mandate. O que recomenda a Gestão de Negócios é em geral a situação de impossibilidade provisória, ou temporária se quisermos, do proprietário administrar o seu património. Por razões diversas entre as quais já apontadas acima.

Assim, a Gestão de Negócios quando aprovada, ou seja, quando “tiver sido exercida em conformidade com o interesse e vontade, real ou presumível, do dono do negócio, é este obrigado reembolsar o gestor das despesas que ele fundadamente tenha considerado indispensáveis, com juros legais a contar do momento em que foram feitas, e indemnizá-lo dos prejuízos de que haja sofrido. (art.º 468.º, n.º 1 – CC). O que implica renúncia ao direito de indemnização pelos danos devidos a culpa do gestor (art.º 469º - CC). Contrariamente, se a Gestão do Negócio não tiver sido aprovada tem o Gestor a obrigação de reparar os danos tanto aqueles que ele mesmo causar como os que forem devidos a acção de terceiros desde que tenham ocorrido no exercício da gestão (art.º 466.º, n.º1 – CC). É claro que a aprovação ou não da Gestão do Negócio não ocorre ao puro critério do dono do negócio. Pois, daqui viria o risco do dono do negócio apenas aprovar aquela boa gestão que não impusesse custos consideráveis com os reembolsos devidos ao Gestor. Por isso, a base de análise é sempre sustentada pelos critérios da boa-fé e da equidade como mecanismos proporcionadores do equilíbrio de vantagens entre as partes, i.e., da justiça. É de notar que a aprovação da Gestão do Negócio pode ser tácita, i.e., ocorrer com o silêncio do dono do Negócio. O que significa que a aprovação não reveste forma especial (documental por exemplo) como acontece com a ratificação que ocorre no mandato expresso pela procuração. É possível que durante a Gestão do Negócio o Gestor venha a sacrificar tempo considerável com o bem em causa, ao ponto de corresponder a uma ocupação laboral. Porém, a Lei não dá qualquer de remunerar o Gestor, a menos que corresponda ao exercício da actividade profissional do Gestor.

segunda-feira, 4 de julho de 2011

REFORMA DO CÓDIGO PENAL ANGOLANO

Albano Pedro

O Código Penal angolano que entra em discussão pública como ante-projecto pretende desfazer-se das “velharias” normativas aprovadas no remoto ano de 1886, ainda no contexto jurídico português inscrito na colonização de Angola. Ao longo de 3 séculos o Código Penal tem sido o eixo de todo o sistema jurídico-penal angolano cuja sistemática compreende a Lei Constitucional e diversas leis ordinárias em matéria penal. Com efeito, o sistema jurídico-penal se apresenta como o mais lento no que tange a sua auto-regeneração. Pois, conhecem-se poucos momentos, e muito pontuais, em que sofreu alterações, sendo de descartar qualquer reforma nesse sentido. É bem verdade que boa parte das previsões normativas desapareceu quer por desuso quer por revogação. Os crimes de duelo, desterro, crimes contra a religião do reino, crimes cometidos por abuso de funções religiosas e muitos outros, são disso exemplos bem patentes.
Há várias razões para considerar a reforma do Código Penal como uma das mais importantes no sistema jurídico angolano desde 1975 a par das reformas e alterações constitucionais. É a legislação comum ou principal de todo o sistema jurídico-penal angolano que trata de tutelar os valores fundamentais da sociedade sem os quais esta dificilmente sobreviveria; é uma legislação com um grau de absoletismo tal que por si só se tem tornado perigosa pelas lacunas que regista e pelos desajustamentos em relação a nova realidade social: não prevê inúmeros crimes tais como pedofilia, assédio sexual entre milhares de outros, não prevê penas alternativas às de privação de liberdade, quando essa não seja recomendável entre outras situações completamente equacionadas nos sistemas jurídico-penais modernos vigentes nos diferentes Estados da comunidade internacional.
O ante-projecto do Código Penal apresenta-se com uma Parte Geral contendo 7 títulos tratando da Lei criminal, do facto punível e consequências jurídicas, da queixa e acusação particular, da extinção da responsabilidade criminal, indemnização por perdas e danos, etc; o actual Código Penal apresenta apenas 2 títulos, tratando dos crimes em geral e dos criminosos bem como das penas e seus efeitos e as considerável. Segue-se, para o ante-projecto do Código Penal, uma Parte Especial contendo 8 títulos tratando dos crimes contra pessoas, família, fé-pública, segurança colectiva, o Estado, a Paz, o Património, o consumidor e o mercado. O actual Código Penal prevê 7 títulos tratando nomeadamente dos crimes contra a religião do reino e dos cometidos no exercício de funções religiosas (obviamente com normas ora caídos em desuso ora revogados); dos crimes contra a segurança do Estado (revogado pela Lei 7/78 de 26 de Maio – que vigorou até antes da última alteração recentemente introduzida); dos crimes contra a ordem e tranquilidade pública; dos crimes contra as pessoas; dos crimes contra a propriedade; da provocação pública ao crime e das contravenções de polícia. Em matéria de dozimetria penal, no âmbito do ante-projecto do Código Penal, a extensão temporal para as penas máximas de privação de liberdade mantêm-se em 24 (vinte e quatro) anos, sendo preterida a opção pelas penas de prisão perpétua e pena de morte. Esta última com proibição consagrada no texto constitucional. As penas de privação de liberdade (prisão) e pecuniárias (multa) são durante a vigência do Código Penal de 1886 as sanções cardiais a par das medidas de segurança. A nova proposta traz consigo novas sanções, algumas das quais procurando atender a uma visão economicista de sanção, i.e., procurando retirar do Estado a carga de custos com a manutenção do sistema prisional. Entre elas se encontram as prisões em fim-de-semana, prestação de trabalhos sociais ou comunitários. Prevê-se ainda a possibilidade de suspensão da execução da pena, a admoestação entre outras que vigoram na maioria dos sistema jurídico-penais modernos em todo o mundo.
A reforma do Código Penal traz um problema a ponderar: a previsibilidade do feitiço como conduta criminal fartas vezes aludida pelas diversas comunidades. O feitiço tem sido uma importante causa da violência contra a criança e reclama um enquadramento legal para o seu tratamento pelas autoridades. É verdade que hoje ele é visto no quadro dos efeitos que dele resultam (violência provocada contra o acusado) que como tal se lhes destinam medidas penais correspondentes bem patentes da Legislação em vigor. Contudo, as comunidades e as respectivas autoridades tradicionais reclamam da necessidade de consagração desta conduta em concreto. O que nos oferece comentar a propósito é que a luz do sistema jurídico adoptado em que a Lei constitui o mecanismo mais importante do Direito inutilizando o Costume que lhe não seja compatível, não é possível a consagração do feitiço como conduta normativa sujeita a sanção. Não só pela dificuldade de acesso aos meios de prova como pelo facto de constituir uma conduta de cariz costumeiro questionável do ponto de vista fáctico, i.e., com um sentido de realidade pouco clara ou cientificamente inexistente. Contudo, é uma batalha perdida ao nível da própria constituição e de todo o sistema jurídico angolano. Aqui as comunidades são chamadas a adoptarem medidas locais correspondentes ao tratamento adequado ao fenómeno em causa ponderando sempre a necessidade de acautelar a própria Lei, i.e., procurado não violá-la. Não é de negar a imperiosa necessidade de um esforço de compilação e harmonização sistemática do Direito angolano que receba as condutas costumeiras com fortes implicações sociais nas comunidades locais e que de uma maneira geral sejam identificadas no contexto social nacional, isso passa pela “nacionalização” dos valores normativos da constituição e de todo o sistema jurídico angolano que compreende padrões culturais ocidentais (herdados do processo de colonização) em detrimento da realidade cultural dos angolanos.
O debate a volta do ante-projecto do Código Penal, quanto a nós, pode ter dois níveis. Um em que se pretenda buscar o pensamento generalizado dos cidadãos e sociedade civil – que é o que vai em curso; e outro em que se pretenda destilar uma contribuição mais profunda e sistematizada que é aquela que deve ser criada junto das universidades através dos cursos de Direito e afins em que os estudantes (finalistas e semi-finalistas) organizados em comissões de trabalho (por iniciativas das respectivas associações de estudantes ou das direcções) compilariam uma versão própria do Código Penal que seria depois levada a debate junto dos restantes estudantes. Teríamos assim as universidades (públicas e privadas) a desempenharem o seu papel de garante da rigorosidade técnica e científica no desenvolvimento da sociedade e sobretudo facilitando as opções técnicas da maioria dos angolanos interessados na actualização do Código Penal.