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sexta-feira, 1 de novembro de 2013
O TRIBUNAL CONSTITUCIONAL E A LIMITAÇÃO DA FISCALIZAÇÃO POLÍTICA DO EXECUTIVO PELA ASSEMBLEIA NACIONAL - ALBANO PEDRO
Corre alguma tinta sobre a “resistência” do Tribunal Constitucional (TC) em reconhecer a capacidade da Assembleia Nacional em fiscalizar politicamente o Executivo propondo um conjunto de impedimentos na forma de decisão judicial, infelizmente produzida como um acórdão. Perante este dramático quadro estabelecido ao nível da soberania do Estado não podíamos deixar de debitar alguma opinião em se tratando de um assunto de capital importância entre os angolanos. É pois certo que a luz dos preceitos estabelecidos na Lei constitucional – LC (o legislador prefere Constituição da República) vigente, não faz qualquer sentido que se vejam membros de Governo tal como aconteceu no passado. O Governo é unipessoal ao contrário do Governo colectivo ou colegial corporizado pelo antigo Conselho de Ministros. Hoje o Conselho de Ministros não passa de um mero órgão de consulta através do qual o Presidente da República (PR) enquanto Titular do Poder Executivo reúne com os seus colaboradores com funções meramente administrativas e como tais dispensados de quaisquer responsabilidades políticas (ser membro de governo implica responsabilidade política). Como também, é verdade que a luz nos novos preceitos constitucionais urge a harmonização político-constitucional da organização administrativa do Estado e dos respectivos diplomas legais. O que daria lugar a necessidade de estabelecer equivalência entre os actos normativos presidenciais e os actos normativos do Governo no âmbito do antigo Conselho de Ministros. Não é pois justo que se mantenha a confusão dos chamados Decretos-lei quando de facto já não existem tendo sido substituídos formal e materialmente pelo Decretos Legislativos Presidenciais. Ao não estabelecer as equivalências hierárquicas entre os actos normativos do extinto Governo colegial (Conselho de Ministros) e os actos normativos do titular do Executivo correspondentes, ainda que em normas de carácter transitórias, o legislador constitucional pecou redondamente e as consequências são as dificuldades de interpretação da LC que disto decorrem.
O que prima facie transparece no exercício legislativo da Assembleia Nacional é a ignorância certeira e culposa sobre a falta de consciência da consagração de uma verdadeira “Ditadura constitucional” (historicamente fala-se em monarquia constitucional como forma mais suave) que os constitucionalistas angolanos afectos ao regime preferiram denominar “suis generis” ou atípica. Pois, os deputados, ao entenderem abordar, através do seu Regimento Interno, os “assim chamados” membros do Governo, ignoraram por completo o entendimento hermenêutico claro da LC vigente que deixou de consagrar um Governo colegial ou um verdadeiro Governo, se quisermos. Esqueceram (ou têm medo de reconhecer?) que em Angola vigora um sistema de Estado não-governamental onde os actos pretendidos como executivos são emanados de uma entidade unipessoal (PR), sem dignidade soberana (porque não é eleito pelo povo) como não acontece em mais parte nenhuma do mundo constitucional moderno. Pior do que tudo, foram os próprios deputados na veste de legisladores constituintes que o consagraram (falo sobretudo da responsabilidade das bancadas parlamentares que transitaram para o novo mandato legislativo). O que é grave. Também, é verdade que a LC não prevê de modo expresso quaisquer poderes para que o Executivo, no caso o seu titular, seja interpelado pela Assembleia Nacional. Mas por que carga d’água o TC tem de omitir propositadamente os actos implícitos da LC que personalizam o chamado espírito da lei? Quando o TC reconhece que no âmbito da fiscalização política a Assembleia Nacional tem competência, inter alias, de «…receber e analisar a Conta Geral do Estado e de outras instituições públicas que a lei obrigar, podendo as mesmas ser acompanhadas do relatório e parecer do Tribunal de Contas, assim como de todos os elementos que se reputam necessários à sua análise, nos termos da lei.» (alínea a) do art.º 162.º - LC) não estará a reconhecer a capacidade dos deputados em “chamar” o titular do executivo para “dar explicações” sobre tais matérias? E se as matérias ainda que especializadas demandarem uma apresentação multidisciplinar envolvendo vários outros assuntos (matérias de várias departamentos do Estado) para a sua melhor explicação, estará a fazê-lo fora do espírito da Lei? Pretende, o TC, que a Assembleia Nacional obtenha as informações do Executivo sem as poder examinar, designadamente por perguntas, inquéritos ou audições tal como sugerem um exercício eficaz dos poderes de fiscalização política? Pretende, enfim, o TC, reconhecer meios-poderes a Assembleia Nacional? É claro que para os espíritos mais fracos como os nossos não é difícil perceber que entre «…todos os elementos que se reputam necessários…» constitucionalmente consagrados estão a interpelação, a audição e todos os outros achados necessários para uma fiscalização política eficaz do Executivo pela Assembleia Nacional. Não estão na LC? (responderia o TC). Que os juízes fizessem a interpretação correctiva do texto magno. É judicialmente possível e não é tecnicamente difícil.
O que está subjacente na decisão do TC é a triste e embaraçosa situação de que «o padeiro pode utilizar tudo o que for necessário para fazer o pão, segundo a LC. Porém quando este elenca os ingredientes para o fabricar, o TC acha que devia limitar-se a apenas alguns por não reconhecer a existência dos restantes. Então como é que o padeiro vai fazer o pão?». Ironicamente o TC pretende desviar para a poça das meras faculdades a questão normativa da Assembleia Nacional persuadindo-nos com o reconhecimento do principio das relações de colaboração, cooperação e solidariedade institucional por meio do qual o Presidente da República pode “aceitar o convite, se quiser” para aparecer diante dos deputados e justificar as dúvidas correspondentes, rematando que o Governo unipessoal não é responsável politicamente perante o parlamento, quando na verdade essa questão: a de se interpelar o executivo para “meras explicações” em nenhum momento constitucional do mundo moderno se configura como uma responsabilidade política propriamente dita. Afinal, a responsabilidade política em que o TC pretende escudar o PR implica a capacidade da Assembleia Nacional de aprovar moções de censura que levem a dissolução do Governo e não simples interpelações.
O que a técnica hermenêutica sugere tanto a interpretação da lei quanto a sua aplicação, é que quando um preceito legal não colida com o espírito da Lei seja ela consagrada no ordenamento jurídico e como tal aplicada aos factos a ela subjacentes. Ao que parece e se percebe sem ciência, o esforço normativo dos parlamentares em nenhum momento colide com o espírito da lei, mesmo no nível constitucional. As únicas colisões identificadas pelo TC residem no âmbito gramatical e como tais insusceptíveis de traduzirem verdadeiras colisões heremenêutico-jurídicas. Com tamanho erro judicial bem patente, decorrente de uma hermenêutica forçada, a peça de causa parlamentar e de proeminência judicial retira valiosos méritos à decisão do TC. Através dela se percebe que o TC não cura de avaliar os actos constitucionais implícitos, se bastando a um gratuito legalismo por meio do qual pretende perceber apenas actos expressos na gramática da lei. Pois, quando a LC estabelece «…todos os elementos que se reputam necessários…» para o TC, tais actos não incluem a interpelação e outros do próprio Titular do Executivo ainda que o faça por delegação de poderes aos seus colaboradores. Quer infelizmente fazer perceber que entre tais actos implícitos a Assembleia Nacional não pode estabelecer quais são os que acha conveniente para o seu exercício no âmbito de uma a interpretação autêntica, já que se a Assembleia é que legisla ninguém melhor que ela para interpretar a própria lei.
Na verdade, o que a Assembleia Nacional procurou fazer com a legislação das formas e modos de abordagem do executivo foi proceder a chamada interpretação autêntica da lei já que foi ela mesma que a positivou, ainda que no âmbito de um poder constituinte formal ou derivado. O que, sumo rigore, o TC devia reconhecer improcedente é a confusão feita entre o Governo colegial e o Titular do Poder Executivo não permitindo que os membros do “staff” do PR assumam responsabilidades políticas tal como o texto normativo dos deputados sugere. Para este particular, não custava nada ao TC uma interpretação correctiva propondo os actos normativos devidos ao procedimento legislativo da Assembleia Nacional, desviando a competência passiva de tais membros para a pessoa do próprio PR na qualidade de Titular do Executivo. A semelhança do que fez (ainda no âmbito das competências do Tribunal Supremo) sobre a polémica que girava a volta da questão de saber quem era o chefe do executivo por altura da consagração da figura do Primeiro-ministro (o famoso acórdão do TS). Quando ao invés de recomendar o aperfeiçoamento das normas, reprova-os categoricamente, deixa transparecer uma encomenda política que mal afama o prestígio do TC. Por isso mesmo, em nenhum momento da sua decisão, o TC devia considerar o erro gramatical que levou os deputados a confundir o Titular do Executivo com os seus colaboradores. Devia, se estivesse imbuído de espírito de justiça, propor uma interpretação correctiva deste preceito substituindo os colaboradores pelo seu chefe: o Titular do Executivo.
O TC devia reconhecer a subtil necessidade dos deputados em verem a LC corrigida no aspecto que tange ao esvaziamento grosseiro das competências políticas da Assembleia Nacional em matéria de fiscalização do Executivo e com isso emprestar um exercício hermenêutico-constitucional mais consentâneo com um Estado de Direito e Democrático onde o sistema de Governo esteja mais próximo dos modelos vigentes, seja Presidencialista, seja semi-presidencialista ou parlamentarista. O TC deixou escapar a oportunidade de fixar definitivamente na LC o modelo governamental, devolvendo a preocupação correctiva da situação de desidentificação do modelo político vigente a própria Assembleia Nacional. Contudo, se não fosse pela necessidade de se alcançar o espírito da lei que o TC procura obliterar com essa peça judicial, para que serviria o recurso a fiscalização preventiva ou sucessiva das leis quando do ponto de vista gramatical as normas são claras? É pois, na sua mais sublime função de interprete que o TC falha e confunde deliberadamente a fiscalização política pela fiscalização jurídica fazendo com que através desta (seja por fiscalização abstracta preventiva – art.º 228º, seja por fiscalização abstracta sucessiva – art.º 230º) limite gravemente as competências políticas da Assembleia Nacional constitucionalmente consagradas. Ou seja, o TC, no uso do poder de fiscalização jurídica, ainda que de iniciativa obviamente externa, limita grosseiramente um poder que pelas suas características e natureza tornam eficaz os actos de fiscalização do Executivo pelos parlamentares inscritos na própria LC. O que é o mesmo que tomar os actos políticos pelos jurídicos. Dixit.