domingo, 23 de março de 2014

O PODER JUDICIAL: A SOBERANIA E O MANDATO DOS SEUS ÓRGÃOS - ALBANO PEDRO

Quando analisamos os órgãos de soberania do Estado, resultantes da repartição do poder do monarca desencadeada pela revolução burguesa estimulada pelo pensamento iluminista europeu, facilmente percebemos que o poder judicial (os tribunais), ao contrário do poder legislativo e executivo, é o único que não assume verdadeira feição de um poder verdadeiramente soberano. Já porque os juízes não são directamente eleitos pelo povo (fonte da soberania do Estado), já porque não se fala em renovações de mandatos ao nível do Tribunal Supremo enquanto órgão máximo deste órgão soberano. Algumas opiniões técnica defendem a falta de soberania deste órgão (entre nós, o jurista Cremildo Paca desencadeou este debate na sua obra Direito do Contencioso Administrativo Angolano) e a nossa posição não seria completamente alheia a esta perspectiva. Se é possível falarmos em soberania dos juízes, uma advocacia doutrinal arrojada levar-nos-ia a assumir não uma soberania orgânica (legitimação do tribunais pelo voto popular) mas uma soberania funcional (admitindo que os juízes ao proferirem sentenças em nome do povo assumem a soberania deste). Entretanto, não passaria de mero debate teórico e sem fundamentação legal. O que é facto é que os juízes não são eleitos pelo povo e a Lei Constitucional – LC (Constituição, para o legislador) estabelece claramente que « A soberania, una e indivisível, pertence ao povo, que exerce através do sufrágio universal, livre, igual, directo, secreto e periódico, do referendo e das demais formas estabelecidas pela Constituição, nomeadamente para a escolha dos seus representantes.» (art.º 3.º, n.º1). Portanto, os juízes não são soberanos. Aliás a questão da soberania orgânica em Angola hoje é discutível se arrolarmos ao debate o Poder Executivo já que o seu máximo representante (Presidente da República) enquanto órgão independente dos demais órgãos soberanos deixou de ser eleito interrompendo o processo de transmissão da soberania que merecia pelo voto popular. Em rigor, apenas a Assembleia Nacional é um verdadeiro órgão de soberania do Estado. Todavia, (e regressando ao debate sobre os tribunais) é possível examinar a legitimidade deste órgão a luz da LC já que este complexo normativo fundamental estabelece um procedimento para a indicação do Presidente do Tribunal Supremo e do seu Vice-Presidente, assim como os mandatos correspondentes (art.º 181.º - LC). Sendo certo que ao Presidente da República cabe a nomeação do Presidente e do Vice-Presidente escolhidos entre os candidatos seleccionados pelos restantes juízes conselheiros em efectividade de funções (2/3 de juízes) poderíamos admitir uma espécie de soberania derivada por via da soberania do Presidente da República. Mas infelizmente este não é eleito directamente pelo povo a quem pertence a soberania e a tese da soberania indirecta não colhe na nossa LC. Entretanto, o mandato deste órgão “atípico” (já que não é propriamente soberano) vem claramente estabelecido «O Juiz Presidente do Tribunal Supremo e o Vice Presidente cumprem a função por um mandato de sete anos, não renovável» (art.º 181.º, n.º4 – LC). E com base neste enunciado normativo de cariz fundamental não restam dúvidas que o actual mandato do Tribunal Supremo e, por conseguinte do Poder Judicial angolano, é inconstitucional, carecendo (o poder judicial) de ser regularizado a semelhança do que aconteceu com a regularização dos mandatos do Poder Executivo e do Poder Legislativo (Assembleia Nacional). Aqui podemos assumir que a regularização institucional ocorrida com o relançamento das eleições gerais interrompidas desde 1992 é apenas parcial e por isso estamos diante de uma República de Angola igualmente parcial que apenas é justificável no quadro do atipismo que caracteriza o sistema constitucional angolano vigente. Dixit.

segunda-feira, 10 de março de 2014

O CASAMENTO: DA CULTURA OCIDENTAL A CULTURA AFRICANA - ALBANO PEDRO

O passamento físico de Maria do Carmo Medina há dias libertou uma onda de reflexão sobre a sua contribuição profissional entre a classe dos juristas angolana. Os seus feitos no domínio da advocacia, da magistratura e da docência em Direito da Família desencadearam varias opiniões nas redes sociais e na imprensa pública e privada. Como jurista dedicada as questões de família e sobretudo por se lhe reconhecer esforços em “aculturar” ou mesmo “nacionalizar” o conceito jurídico de casamento, largamente tributário da cultura jurídica ocidental, é que nos propomos a uma reflexão sobre a questão a guisa de homenagem. Entre os vários trabalhos de pesquisa que encomendou aos seus estudantes ao longo das lições, eram marcas evidentes da Dra. Maria do Carmo Medina a não-aceitação da ideia de contrato para a figura do casamento e a necessidade de emancipar o conceito de casamento tradicional ao nível do ordenamento jurídico angolano. Para esta última questão, a eminente professora de Direito participou da tradução da vontade costumeira contribuindo com a figura da união de facto que ao lado de outras figuras jurídicas próprias do direito familiar angolano e da supressão de certas modalidades de casamento do Código de Família português que se impunha entre os angolanos por força da herança colonial, permitiram a autonomização do Código da Família do leque dos livros do Código Civil. O que tornou o Código da Família no único conjunto normativo do Direito Privado comum muito próximo da realidade angolana. Para alguma corrente de estudantes e estudioso da Dra. Maria do Carmo Medina a negação da contratualidade do casamento, essa figura jurídica de fundamental relevo social, devia-se a incapacidade de se lhe surpreender a garantia enquanto elemento da relação jurídica ao lado dos sujeitos, o facto jurídico e o objecto. Sustentam estes cultores que aquela jurista de inquestionável lucidez ao não perceber qualquer possibilidade de existência de garantia descartava o casamento do leque dos contratos. Nunca nos chegou tamanha percepção das suas lições que tomamos com algum interesse. Para além de que a ser verdade, traduziria num completo absurdo. Afinal, admitir a inexistência de garantia numa relação jurídica é mesmo que descartar a possibilidade de uma relação jurídica. O sujeito, o facto, o objecto e a garantia são elementos cumulativos. Seria absurdo admitir existência de relações ajurídicas no domínio do Direito. Quando falte qualquer elemento na relação jurídica o fenómeno, ainda que social, pode ser enquadrado no âmbito da Moral, ética, religião ou outras normas de conduta, menos no âmbito do Direito. Pois a ideia de relação jurídica é a base da norma jurídica sem a qual não se fala em fenómeno sujeito a análise do Direito. Isso mesmo, ensinaram os grandes mestres da literatura e academia jurídica luso-angolana aos quais a Dra. Maria do Carmo Medina não contrariou tão absurdamente. Para Carlos Alberto da Mota Pinto, civilista português, «toda a relação jurídica existe entre sujeitos; incidirá sobre um objecto; promana de um facto jurídico; e toda a sua efectivação pode fazer-se mediante recurso a providências coercitivas, adequadas a proporcionarem a satisfação correspondente ao sujeito activo, isto é, a relação jurídica está dotada de garantia. Só assim faz sentido que seja uma relação regulada pelo direito, assim também entendia outro civilista, Inocêncio Galvão Teles. A dificuldade de identificar a garantia na relação jurídica do casamento é a nosso ver um problema de lógica jurídica que afecta a percepção tautológica de quem se presta ao mero mimetismo conceptual do Direito. Não seria difícil perceber que os princípios estruturantes do casamento constituem o leque de garantias. Embora se discuta a possibilidade de serem directas ou indirectas quanto aos efeitos sobre a relação jurídica, a não observância de tais princípios importam o divórcio (art.º 78.º e ss – Código da Família) enquanto mecanismo coercitivo próprio da relação matrimonial. É verdade que os crimes de bigamia e de adultério fazem igualmente a ideia de coercibilidade da relação jurídico-marital, porém admitamos que é uma forma indirecta de tutela por se traduzir na violação de outros institutos jurídicos (no caso de natureza criminal) que acabam beneficiando o casamento. O que se percebia na ideia da refutação do casamento como contrato é a pessoalidade (a forte influência das personalidades das partes, como diria João de Matos Antunes Varela) que se percebe nas relações de família. E este jurisconsulto português que não descarta a contratualidade do casamento, defende a propósito que «…dada a influência que a natureza complexa do casamento, a sua perpetuidade e a estabilidade da família exercem sobre a situação das pessoas abrangidas pelos seus vínculos, pode ainda dizer-se que os deveres de carácter familiar, além de envolverem uma parte importante da personalidade dos respectivos sujeitos têm carácter duradouro, enquanto as obrigações, deixando incólume a personalidade do devedor (…), têm por objecto uma acção ou omissão de natureza particular e geralmente transitória». É tanto verdade que esta mesma percepção de cariz jusnaturalista se reflecte no esforço da Dra. Maria do Carmo Medina em defender a vigência da União do facto, embora seja inquinada de a marcada fragilidade vinculativa ao nível constitucional quando se nega a vigência do costume contrário a lei. O pólo de reflexão que a eminente familiarista deixa é o debate sobre a “nacionalização” do casamento, enquanto figura jurídica central da ideia de Estado e de Nação quando se identifica na família a sua base. Enquanto viveu, defendeu a necessidade de uma percepção casamentária consentânea com os valores culturais nacionais. Infelizmente foi traída em duas frentes, a nosso ver. Na primeira frente, podemos falar na deturpação da ideia de Nação com a aprovação da Lei Constitucional – LC (Constituição da República de Angola, para o legislador) que afasta qualquer possibilidade de um verdadeiro Direito Angolano com a consagração da lei sobre todas as restantes fontes de Direito, incluindo o Direito Costumeiro que reflecte a idiossincrasia nacional (art.º 7.º - LC). Na segunda frente, a traição nasce daquilo que podemos considerar “inocência científica” sobre o conceito costumeiro de casamento. Se alguma vez defendeu a não contratualidade do casamento por razões jusnaturalistas ou outras, a verdade é que o Direito Costumeiro, mais do que o Direito Europeu exalta e exacerba a ideia de contrato. Se para o direito positivo a ideia do contrato não afasta a pessoalidade da relação marital, para o direito costumeiro o casamento tem todas as características “coisificantes” do contrato. E nesse sentido não é difícil comparar o casamento costumeiro com o contrato de compra e venda com todas as características que se lhe possam assacar. Na tradição africana, a mulher é cerimoniosamente adquirida com o objectivo de procriar (dar filhos ao marido) sendo essa função a mais importante e a que sustenta a relação marital. A falta de procriação não só dá direito a “resolução do contrato” (o mesmo que divórcio) como obriga a contraparte (no caso os parentes da mulher) a restituir os bens adquiridos em contrapartida. Aqui está uma forte garantia de natureza marcadamente contratual. E ainda por cima de contrato com nexo sinalagmático. Não fosse a perceptível inocência científica, aqui perceber-se-ia que o atalho do Direito Costumeiro não é o caminho viável para o assentamento de um conceito de casamento angolano impoluto e livre dos preconceitos contratuais. Mas entendemos que a humanização do casamento que a Dra. Maria do Carmo Medina defendeu é sem dúvidas o caminho mais seguro no sentido de melhor caracterizar um conceito de casamento angolano. Neste conceito, não só deverá ser discutida a questão da contratualidade como serão igualmente vistas as bases culturais étnicas que a nosso ver não devem apenas contemplar os cânones bantu como parece ser a percepção de muitos estudantes e estudiosos. A contemplação dos valores culturais de outras etnias e respectivos subgrupos (um exemplo são os kung de Angola – ou khoi-sans). O que obriga a um sério levantamento científico e académico transversal chamando em depoimento várias outras ciências do campo humano e social tais como a Antropologia, Psicologia, sociologia, etc. Dixit.

ENTREVISTA AO SEMANÁRIO ANGOLENSE: QUESTÕES JURÍDICAS SOBRE A HERANÇA - ALBANO PEDRO

SEMANÁRIO ANGOLENSE: A partilha dos bens de herança por morte de um dos cônjuges, normalmente o marido, tem gerado muitas disputas, acabando, normalmente, por ser a viúva a parte mais prejudicada… ALBANO PEDRO: Julgo que essa ocorre por duas razões. A primeira está relacionada com a falta de cultura em recorrer a partilha da herança nos termos da lei com recursos aos tribunais nos casos em que é necessário. A questão da herança é um dos fenómenos jurídicos, ao lado de vários outros, que reclamam uma concordada urgente entre o Direito positivo de origem europeu que esta formalizado no nosso ordenamento jurídico e as práticas sociais assentes da cultura angolana de orientação predominantemente bantu. Há um choque evidente entre os usos e hábitos dos povos e a lei quando se fala em relações jurídico-privadas ou entre particulares. A tradição bantu não entende a mulher como herdeiro do marido. Ela é adquirida para procriar os herdeiros e não para fazer parte deles. É assim a tradição bantu que se percebe entre os vários grupos etnolinguísticos que compõem o mosaico geopolítico angolano. É um problema que escapa da perspectiva dos nossos legisladores que teimam em manter um modelo jurídico alheio as matrizes culturais do povo em nome de um só povo e uma só nação que não existe. Ou seja, os problemas de herança surgem quando a opção dos sucessíveis privilegia a partilha tradicional em detrimento da aplicação de leis relativas a sucessão. A segunda razão, precede da própria lógica sucessória que a lei estabelece. A mulher não é privilegiada entre os herdeiros prioritários. Não herda, se houver filhos, pais ou irmãos do marido falecido (de cujus). A lei estabelece uma ordem que começa com os filhos (descendentes). São os primeiros a serem chamados e os únicos se existirem, porque o nosso sistema sucessório é unigradual ou seja só elege um único grupo de sucessíveis afastando todos os outros que figuram a seguir na ordem geral dos herdeiros. Não existindo, descendentes é que surgem os pais (ascendentes). Se não houver pais, então vem um terceiro grupo: os irmãos e seus descendentes. Só não existindo qualquer individuo dos grupos que citamos é que surge o cônjuge (seja esposo ou esposa). Então é a própria lei que coloca a mulher na cauda das prioridades. Eu entendo que esta falta de prioridade resulta do facto da mulher (quando esposa legitima ou casada) ter direito a meação, que é o mesmo que partilhar os bens constituídos com o esposo falecido. O facto de ter acesso a metade dos bens, a lei retira-lhe a possibilidade de herdar do quinhão deixado pelo de cujus. Pois, teria acesso a tudo (a sua própria parte e a parte deixada pelo esposo) deixando de fora todos os outros. Infelizmente devo reconhecer que essa segunda razão é menos frequente. Aliás se houvesse lugar a essa opção a esposa ficaria sempre com a sua parte antes da abertura da herança. O que aliviaria a sua situação de não herdeira privilegiada. SEMANÁRIO ANGOLENSE: Haverá aqui um desconhecimento da lei ou os intervenientes, no caso, a família de cujus age conscientemente no sentido no prejudicar a viúva? ALBANO PEDRO: Há em geral a consciência de que se está aplicar o costume. Os usos e os costumes. A lei consagrada em códigos e diplomas não existe para o cidadão normal. Por mais triste que seja esta realidade. O que existe é o costume que cada um trás consigo da sua relação parentesca e familiar; de lá onde nasceu, cresceu e vive. A lei só surge na consciência das pessoas quando há litígios e qualquer das partes entende chamar as autoridades (policiais ou judiciais) para a contenda. É essa a realidade sociojurídica que muitos de nós não quer perceber. Não nos esqueçamos que a maioria dos casamentos começa com rituais tradicionais geralmente identificados como alembamento. A dissolução de uma relação iniciada neste termos não deixa de atrair as consequências próprias dos fenómenos culturais africanos. Aqui não se fala em lei, se quer. Então a mulher sai prejudicada. Primeiro porque não tem direito aos bens do marido, segundo não pode herdar. É tudo para os filhos e para os parentes do marido. A tradição entende mesmo que a própria mulher é parte dos bens da herança, quando em casos mais radicais, ela é “encaminhada” para o irmão mais novo ou mais velho do marido como nova esposa deste. Quanto a prioridade dos filhos e ascendentes ou descendentes do marido a tradição age de certa forma em conformidade com a própria lei. Não é uma questão desconhecimento. Pelo contrário há consciência jurídica. Porém, uma consciência jurídica com matrizes costumeiras e não legais como se pretende. Há um esforço de conciliação jurídica que o povo deve enfrentar no processo de formação da Nação angolana que se encontra disforme nos dias de hoje. SEMANÁRIO ANGOLENSE: O que diz a lei quanto à partilha de bens no casamento em regime de comunhão de adquiridos? ALBANO PEDRO: É claro que a lei estabelece que a esposa casada em regime de comunhão de bens (no caso, de bens adquiridos na constância do casamento) tem direito a metade dos bens do casal quando o seu consorte (cônjuge, para usar a linguagem legal) morre ou falece. Aqui vamos falar da meação não é? É um processo que se apura seguindo uma certa burocracia. Há ao atestado de morte (certidão de óbito), há o processo de divórcio por morte do esposo (ou esposa) e então há lugar a meação. A afectação da metade dos bens do casal para o cônjuge sobrevivo, antes da abertura da herança. Ou seja, a herança é considerada como o conjunto de bens do marido falecido resultado da meação havida. SEMANÁRIO ANGOLENSE: Sendo a mulher meeira da herança, ou seja detentora de parte do património, por que razão os seus direitos não têm sido sistematicamente respeitados? Será por desconhecimento da lei ou não dispor de meios financeiros para perseguir os seus direitos lesados em foro jurídico? ALBANO PEDRO: Aqui voltamos a falar do poder da tradição na acção das famílias envolvidas. A cultura joga o seu papel e depois há meios de coação moral para a esposa que entende quebrar as regras da tradição clamando pela lei. Fala-se em feitiços, fala-se em má sorte ou de perseguições de vária ordem e muitas mulheres se deixam levar pelo medo instigado pela força persuasiva dos códigos culturais da família do marido. Até os filhos muitas vezes vão no conjunto dos bens em beneficio de irmãos, avós e tudo o resto que esteja ligado ao marido. E depois, mesmo havendo conhecimento da lei, surge o problema da tempestividade do recurso. Ou seja, a mulher se pergunta: para que recorrer ao tribunal reclamando o direito sobre o carro, a casa ou os recheios? Até ser resolvido a questão do direito a meação, o carro já não tem serventia nenhuma. Aqui falamos da fraca celeridade processual e do atraso das decisões dos tribunais que são um grande problema em Angola e que até o mais simples cidadão sabe. É claro que nalguns casos, a falta de recurso aos meios judiciais adequados a demanda é um problema de mera ignorância do cidadão lesado. SEMANÁRIO ANGOLENSE: Quais são os pressupostos que a lei exige para formalização de uma união de facto? ALBANO PEDRO: A lei fala em três anos consecutivos de coabitação voluntária entre o homem e a mulher. É um expediente necessário quando não haja casamento formalizado entre o casal. Mas ainda que o casal não tenha vivido por esse lapso de tempo, a união de facto poder ser atendida nos casos de enriquecimento ilícito de uma das partes. Vejamos o exemplo de um indivíduo que tenha vivido com uma senhora por dois anos e alguns meses (não chegaram ao terceiro ano) com a qual tenha filho. Ambos sofreram as agruras do desemprego do marido e a mulher apoiou os seus estudos universitários ou técnico-profissionais, suportou a economia doméstica com venda de água fresca em sacos e quando o marido se torna doutor ou engenheiro e ganha um posto laboral notável se casa com uma nova mulher “mais adequada” ao novo meio social que começa a construir a partir dos seus antigos sonhos recalcados pela pobreza. Nesse caso, a mulher prejudicada e humilhada pode requerer o reconhecimento da união de facto mesmo sem completar o prazo legal, para ter acesso a partilha dos bens da relação havida com o esposo ingrato ou para ter direito a permanecer na residência familiar com o filho no caso em que a moradia seja pertença do esposo ou de ambos. Fala-se no reconhecimento da união de facto por ruptura. Se o esposo morre sem nunca terem casado, o reconhecimento da união de facto ocorre por este facto: a morte. Em ambos os casos (ruptura e morte) o reconhecimento é feito pelo tribunal competente. Enquanto o reconhecimento voluntário da união de facto é feito pelo registo Civil. SEMANÁRIO ANGOLENSE: A união de facto produz os mesmos efeitos jurídicos que o casamento? ALBANO PEDRO: Concerteza, a união de facto é um dauqeles engenhos da relação jurídico-familiar que vieram para suprir a ausência de casamento. O casal que por conveniências voluptuarias não celebrou o casamento desejado (porque não dispõe de dinheiros para os luxos desejados com um matrimónio formalizado em público) pode obter os efeitos do casamento pelo reconhecimento da união de facto. É um processo mais simples e menos burocrático e tem um poder jurídico maior porque os seus efeitos retroagem a data do inicio da união ao contrário do casamento que inicia na data em que o casal formaliza a relação. O legislador angolano, ofereceu um efeito garantístico mais eficaz a união de facto quanto a partilha dos bens produzidos pelo casal. E ainda por cima, o silêncio da norma quanto a modalidade do casamento a que se remete a união de facto nos leva a chamar os efeitos directos do casamento em regime de comunhão de adquiridos, que é afinal a modalidade de casamento que vigora quando as partes nada dizem ou não se propõem a escolher entre a separação de bens e a comunhão de adquiridos. Este efeito só não acontece no reconhecimento voluntário da união de facto quando as partes optam por uma das modalidades de casamento. SEMANÁRIO ANGOLENSE: Mesmo naqueles casos em que a comunhão de pessoas e bens tenha sido feita, num espaço mínimo de três anos, não resulte em filhos? ALBANO PEDRO: A existência ou não de filhos não condiciona o reconhecimento da união de facto e tão pouco debilita os efeitos que ela produz. Os filhos são em geral a prova imediata e irrefutável da vigência da relação matrimonial não registada. SEMANÁRIO ANGOLENSE: O que deve a mulher arrolar para provar essa união de facto à falta de filhos? ALBANO PEDRO: Testemunhas: vizinhos, amigos, colegas, etc., servem para provar a existência da união de facto. Havendo ou não filhos. Caso não se recorra a testemunhas, pode requerer-se da administração local um documento que ateste a coabitação (o atestado de agregado familiar serve de suporte). São os meios de prova que a lei estabelece de forma directa para que seja validada a união de facto perante a lei. SEMANÁRIO ANGOLENSE: Em seu entender, a poligamia tem sido uma das causas que mais concorrem para as divergências na partilha do acervo hereditário… ALBANO PEDRO: Penso que não. Até porque a lei não estabelece diferença entre os filhos nascido dentro e fora do casamento. Portanto, nascidos de mães diferentes. Todos herdam o mesmo quinhão da herança que lhes couber legalmente mediante cuidado inventário dos bens e respectiva divisão equitativa. Não deixo de apontar, tal como o fiz acima, os factores ligados a cultura dos povos como a causa mais directa dos conflitos na partilha da herança. É um elemento fenomenológico muito forte na nossa realidade sócio-cultural. SEMANÁRIO ANGOLENSE: Admitindo-se naqueles casos em que o de cujus já não vivia há vários anos antes da sua morte com a mulher casada, a amante ou demais concubinas poderão «reivindicar» o seu quinhão do acervo hereditário? ALBANO PEDRO: Aqui é possível na base do que exemplifiquei acima sobre o casal que se separa depois de uma vida sofrida para o marido se juntar a uma outra mulher mais sofisticada. Vale dizer que a indicação para a herança é independente da convivência marital de facto. Basta provar que existe casamento e ponto final. Nos casos que não exista casamento, a união de facto pode ser reconhecida a favor de uma outra mulher ou outras mulheres nos casos de enriquecimento sem causa. Por isso a lei admite o reconhecimento da união de facto sem as condições de monogamia e da convivência temporal (3 anos no mínimo) quando se verifica que a mulher não casada pode ser prejudicada. Então o reconhecimento da união de facto acontece em nome da justiça a favor das mulheres não casadas com o marido falecido que afinal era muito bem casado. SEMANÁRIO ANGOLENSE: Não havendo testamento, como é que a lei contorna esta situação? ALBANO PEDRO: Nesse caso, o testamento nem é necessário. A lei não podia depositar essa certeza e segurança no testamento. Até porque o de cujus podia não ter tido tempo para o redigir como acontece em muitos casos. A lei foi muito mais prudente ao abrir caminho para o reconhecimento da união de facto, independentemente das condições legais, em caso de enriquecimento sem causa (o código de Família fala em enriquecimento ilícito). SEMANÁRIO ANGOLENSE: As ficções legais têm a mesma força jurídica produzida pelo testamento? E em que caso devem ser aplicadas? ALBANO PEDRO: Evidentemente. E falamos do caso de enriquecimento sem causa. Basta que se prove que a mulher ou mulheres não casadas sacrificaram algum tempo e dedicação ao de cujus de que este tenha obtido vantagens e temos uma situação de enriquecimento sem causa. A mulher lavava e passava a roupa para o marido ir trabalhar ou fazia a comida ou suportou-o ao longo das doenças, enfim. SEMANÁRIO ANGOLENSE: Na partilha de bens, a lei estabelece ainda a diferença entre filhos e enteados ou todos têm os mesmos direitos, ou seja, o mesmo quinhão? ALBANO PEDRO: Era assim na vigência da lei colonial. Antes da entrada em vigor deste Código de Família. Era uma aberração que arrepiava a cultura autóctone e aqui felicita-se o legislador que teve a prontidão em renovar o Código da Família e retirar-lhe do arcaísmo a que se encontram os restantes complexos de normas do Código Civil (Obrigações, Reais e Sucessões). Já não há diferença entre os filhos da mulher casada e das concubinas ou amantes. Já apontamos esse facto acima. Todos têm acesso ao mesmo quinhão da herança. SEMANÁRIO ANGOLENSE: Acha que o número exagerado de filhos e enteados deixados pelo falecido têm servido para alimentar os conflitos… ALBANO PEDRO: O número exagerado de filhos só reduz o tamanho da fatia do bolo que é a herança. Penso que o problema é o mesmo quanto a existência de muitas mulheres que falamos acima. É um problema de convicções culturais. Os filhos da mulher casada pensam que são os privilegiados segundo as orientações culturais dos tios e da instigação da mãe casada e tudo acontece. SEMANÁRIO ANGOLENSE: Nas partilhas obrigatórias, quem representa os interesses dos herdeiros menores? ALBANO PEDRO: Na abertura da herança feita nos trâmite legais e observando os passos que ela propõe os filhos menores são sempre representados pelo Ministério Público. Aqui o processo sucessório alcança a fase judicial obrigatoriamente. Tudo se resolve em tribunal. SEMANÁRIO ANGOLENSE: Como surge a figura de cabeça de casal? E quais são as suas competências? ALBANO PEDRO: O cabeça de casal é o administrador da herança. Como sabe, a herança é uma massa de bens que tem personalidade jurídica. Responde ela mesma pelas suas dívidas e impõe-se como a base de partilha de bens para os herdeiros. Seria uma autêntica confusão se a lei deixasse a divisão ao critério egoísta dos herdeiros. Os menos expeditos sairiam certamente prejudicados. Então, a lei fala em cabeça de casal que pode ser escolhido entre os próprios herdeiros contando que observe os requisitos que a lei impõe para ser indicado no cargo. E caso que nenhuma das pessoas legalmente indicados estiver em condições legais para ser o cabeça de casal, o juiz indica oficiosamente aquele que melhor preenche as condições mesmo fora dos herdeiros. SEMANÁRIO ANGOLENSE: O cabeça de casal pode alienar bens à margem dos demais co-herdeiros ou só fazê-lo com a autorização destes? ALBANO PEDRO: O cabeça de casal é um mero administrador. E exerce o cargo em nome da integridade da herança até a sua partilha. Não faz sentido que aliene bens a margem da autorização de todo outros herdeiros dos quais obteve a confiança para administrar a herança. SEMANÁRIO ANGOLENSE: Em caso de uma gestão danosa por parte do cabeça de casal, pode o tribunal destituí-lo? ALBANO PEDRO: A lei fala em remoção do cabeça de casal. O juiz pode fazê-lo a requerimento de qualquer interessado (herdeiro ou não) ou do Ministério Publico sempre que não sirva os interesses da herança e dos herdeiros nos termos da lei. SEMANÁRIO ANGOLENSE: O cabeça de casal pode ser juridicamente responsabilizado por má gestão do acervo hereditário? ALBANO PEDRO: Pode. E é uma das consequências da remoção do cabeça de casal. A responsabilidade pode ser civil ou criminal dependendo da situação concreta da má gestão e dos danos efectivos ao património ou aos herdeiros em concreto. SEMANÁRIO ANGOLENSE: O Estado pode ser responsabilizado pela má conduta dos seus agentes que favoreçam uma das partes da partilha em benefício da outra? ALBANO PEDRO: Ninguém escapa a responsabilidade civil quando ela ocorra por acção concreta de um sujeito imputável. No caso do tribunal, através dos juízes, proceder a uma partilha danosa a qualquer um dos herdeiros há lugar a responsabilidade civil e criminal que pode ser sucessiva vindo a responsabilizar o Estado e o agente em concreto.