No mercado das relações humanas e sociais, a expressão da palavra e a exposição do pensamento são as mercadorias mais preciosas!
segunda-feira, 20 de julho de 2015
QUAL É A IDENTIDADE IDEOLÓGICA DOS PARTIDOS POLÍTICOS E FORÇAS SOCIAIS EM ANGOLA? Para uma antevisão sobre o comportamento eleitoral dos angolanos em 2017 – ALBANO PEDRO
O CONCEITO DE IDEOLOGIA
Por IDEOLOGIA, entende-se o conjunto de ideais, doutrinas, valores, crenças, concepções cosmovisionárias e princípios éticos, morais e políticos assumidos por grupos ou indivíduos em defesa da sua sobrevivência social, cultural, económica e histórica numa determinada sociedade condicionando o seu comportamento no contexto das relações sociais tendentes a influência ou controlo do poder político. Esse conceito orientado a dinâmica de grupos em ponderação do sistema de interesses e valores defendido pelo poder político instituído, a que Karl Marx denominou SUPERESTRUTURA (Das Kapital), é que releva para a análise sobre a IDENTIDADE IDEOLÓGICA dos partidos políticos e forças sociais de que passaremos em revista.
IDENTIDADE IDEOLOGICA DOS PARTIDOS POLÍTICOS E DAS FORÇAS SOCIAIS
A História política universal regista que o debate sobre identidade ideológica dos partidos políticos teve início com o triunfo da Revolução Burguesa de 1789 em França, que é o prenúncio dos sistemas constitucionais dos Estados modernos, e vigora com o Império de Napoleão Bonaparte. Nessa altura os partidos eram ideologicamente identificados pela posição de assento que assumiam no parlamento, sendo os da Direita aqueles que sentavam a direita da presidência do parlamento (políticos favoráveis a ideia da República) e os da esquerda aqueles que assentavam nessa posição (grupo favorável a ideia da Monarquia). Cedo percebeu-se que essa forma de identificação ideológica não era a mais correcta e o conceito evoluiu, ainda na altura, para a identificação dos partidos que concordavam com a posição dos que governavam e mantinham o poder instituído no interesse do império francês e daqueles que contrariavam (Friedrich Hayek, Émile Chartier). Deste redimensionamento conceptual também se deve a denominação de partidos conservadores (os que defendem os interesses instituídos), Liberais (os que são indiferentes) e os anarquistas (ou revolucionários – que tendem a mudanças totais ou parciais das instituições defendidas por aqueles que controlam o poder político).
A IDENTIDADE IDEOLÓGICA NO PERÍODO DA GUERRA-FRIA
Com o advento da guerra-fria, no fim da II Guerra Mundial, o conceito de identidade ideológica sofreu uma reforma radical. A DIREITA passou a ser entendida como a posição daqueles que defendiam o Imperialismo americano e todos os valores e interesses inerentes as sociedades ocidentais e a ESQUERDA passou a ser a posição dos movimentos revolucionários que contrariavam a estrutura de interesses e valores das sociedades capitalistas, sendo identificados com aqueles que estavam a favor do sistema comunista russo-soviético. Neste período, a identidade ideológica era assumida pelos Estados em função das opções dos partidos que detinham o poder político. Alguns Estados, sobretudo recém-libertados do jugo colonial tentaram uma posição de neutralidade ideológica em relação aos dois grandes blocos emergentes como superpotências. O que deu vazão a ideia do Movimento dos Países Não-Alinhados (MNA) concretizada com a Conferência África-Ásia de Bandung, Indonésia em 1955 e que até 2004 contava com cerca de 115 membros, entre os quais Angola. O certo é que o não-alinhamento não evitou a força arrebatadora da bipolarização política mundial e o grosso dos países membros teve um posicionamento claramente identificado com um dos blocos, sobretudo no âmbito das relações bilaterais. Angola, que tinha relações privilegiadas com o bloco comunista, não foi excepção. A caracterização ideológica dessa altura considerava a identidade própria das forças sociais e políticas de acordo com a defesa dos interesses identificados com o capitalismo ou com o comunismo. Era o conceito de identidade ideológica estática que dominou obliterando a possibilidade de mudanças de comportamentos dos actores sociais em função dos interesses e valores que defendem em determinados contextos. Para os movimentos de libertação nacional emancipados a partidos políticos em Angola a identidade ideológica nesse contexto determinava a existência de dois partidos de esquerda (MPLA de vocação Leninista devido a cooperação com a antiga URSS e UNITA de vocação Maoista devido a cooperação com a China) e um partido de direita (FNLA, cujo líder, Holden Roberto, manifesto parceiro do regime Zairense de Mobutu (1965-1997), foi o primeiro líder político angolano a entrar na Casa Branca, EUA e a discursar nas sede das Nações Unidas) considerando que a FLEC embora candidata a ideologia de direita não era uma força tendencialmente política por força da sua inexplicável exclusão dos acordos de Alvor monitorizado por Portugal enquanto potência colonizadora.
A IDENTIDADE IDEOLÓGICA NO CONTEXTO POLÍTICO ACTUAL
Com o fim da guerra-fria, os Estados perderam identidade ideológica e esta voltou a ser monopólio dos partidos políticos estendendo-se as forças da sociedade civil. As cátedras devolveram o debate sobre a identidade ideológica aos momentos avançados da revolução burguesa, inaugurando uma espécie de renascimento do seu conceito. Daí que no contexto político mundial actual, o conceito de identidade ideológica estática já não tenha lugar de destaque. Já não faz sentido rotular um partido como sendo de esquerda pelo simples facto de abraçar causas comunistas ou de direita por tender aos valores capitalistas, uma vez que este mesmo partido tanto pode estar na oposição, defendendo interesses contrários a quem governa, como na situação, mantendo os interesses do partido que combateu enquanto opositor em seu próprio benefício. Para além de que a evolução do Estado Social, enquanto modelo de organização e funcionamento económico do Estado adoptado pela maioria esmagadora das constituições vigentes no mundo, implica a conjugação de valores e interesses dantes vistos como próprios do comunismo e do capitalismo. É, portanto, um conceito que atrapalha o indivíduo no processo de percepção ideológica do xadrez político de um determinado Estado (David Nolan).
A IDENTIDADE IDEOLÓGICA: PERSPECTIVA ESTÁTICA VERSUS PERSPECTIVA DINÂMICA
Desde a queda do murro de Berlim, os cientistas políticos têm procurado ultrapassar o conceito de identidade ideológica estática abraçando definições que se aproximam a um conceito de identidade ideológica dinâmica (Norberto Bobbio, Eric Dupin, David Nolan). Ou seja, um conceito que identifica o partido político ou força social com base no seu posicionamento circunstancial no xadrez político em função dos valores e interesses políticos dominantes normalmente defendidos pelo partido que governa. Esse conceito passa a entender como ESQUERDA todo o posicionamento contrário aos interesses do partido no poder e a DIREITA como o posicionamento do partido que governa ou que colabora com o partido que detém o poder. Neste conceito, o CENTRO passa a ser a posição tomada por qualquer força que não demonstra nenhum interesse em contrariar o programa de governo e nem se apresenta favorável ao mesmo. É portanto, uma posição de neutralidade. Entre o CENTRO e a posição de ESQUERDA ou DIREITA encontram-se gradações ideológicas que identificam os graus de transigência ou intransigência na defesa dos interesses e valores de cada grupo ou individuo, havendo aqueles que se aproximam de uma posição de neutralidade embora protejam os seus interesses e valores (Centro-Esquerda e Centro-Direita); aqueles que assumem uma posição inequívoca quanto a mudança, embora não tenham interesse em reformar todo o sistema de interesses e valores (Esquerda), ou quanto a manutenção da manifestação da Real Politik segundo os interesses e valores da governação vigente (Direita); aqueles que defendem uma reforma profunda das instituições preservando os ideais do Estado e da Nação (Extrema-Esquerda) ou que não admitem quaisquer reformas possíveis negociadas com os opositores, embora acreditem que devem avançar em reformas que sustentem o poder político vigente (Extrema-Direita) e aqueles que não admitem a sobrevivência do próprio Estado tal como se encontra concebido independentemente do sistema de valores e interesses que lhe são inerentes (Esquerda-Radical) ou que não admitem quaisquer mudanças nos modelos de governação mesmo quando essa intransigência implique a violação de interesses e valores defendidos pelo próprio povo (Direita-Radical). Neste último grupo situam-se os reformadores que se acham no direito absoluto de lutar pelos interesses da Nação e Estado, sendo anarquistas quando posicionados em ideologias de Esquerda ou ditadores anti-democratas quando posicionados em ideologias de Direita, sendo por isso, o grupo que inspira receios ao eleitorado pelas posições extremas que assumem. No CENTRO colocam-se os liberais que como tais estão propensos a defender o triunfo de quaisquer ideologias que permitam a máxima liberdade dos indivíduos e muito próximo deste estão os defensores de ideologias moderadas. Os extremistas (não sendo radicais) são os intransigentes nas suas posições embora defendam uma ordem política muito própria, seja a apresentar quando no poder (ideologia de esquerda), seja para a manutenção do poder (ideologia de direita).
A SISTEMÁTICA GNOSEOLOGICA DA IDENTIDADE IDEOLÓGICA
Destarte, o conceito de Identidade Ideológica é tomado na sua perspectiva dinâmica, i. é, atendendo aos valores e interesses políticos instituídos e vigentes envolvendo tanto as forças políticas como as forças sociais tomados como os principais autores das mudanças ideológicas de um determinado momento histórico. Aqui as forças sociais envolvem os indivíduos que actuam na forma de sociedade civil enquanto grupos identificados com interesses específicos no contexto das lutas sociais. Quanto aos partidos políticos, esta análise basta-se as forças políticas legalmente autorizadas a desempenhar funções de forças sociais tendentes a conquista e manutenção do poder. E em função da posição ideológica vigente instituída pelo partido político no poder como interesses e valores da sociedade angolana, as forças partidárias e sociais podem ser identificadas nos termos em que seguem abaixo:
A IDENTIDADE IDEOLÓGICA DOS PARTIDOS POLÍTICOS EM ANGOLA
MPLA – Partido sem ideologia homogénea em função das lutas internas que presidem a sua histórica existência desde a fase da guerrilha. Comporta várias tendências ideológicas, a saber: a) Direita Radical (Ala partidária com funções governamentais maioria dos quais sem prática de militância efectiva nas fileiras do partido, altas patentes das forças militares e militarizadas com filiação declarada ao partido); b) Esquerda Radical (União das Tendências liderada pelo General Silva Mateus, parte significativa dos sobreviventes do 27 de Maio de 1977, antigos guerrilheiros e descendentes destes que reivindicam igualdade de oportunidades no seio do partido); c) Centro-Direita (Ala dos militantes fundadores e históricos com assento no Bureau-Político, ala dos antigos funcionários do Estado, militares das FAPLAs sem novas funções e fiéis do Presidente Agostinho Neto e seus directos colaboradores que não transitaram para poder assumido pelo novo presidente, militantes desiludidos com a actual liderança partidária e que aguardam pela revitalização de um novo MPLA); d) Extrema-Direita (Militantes sem funções politicas relevantes); e) Sem identidade ideológica (militantes com assento no Parlamento, com funções intermédias e básicas no aparelho do Estado e todos os outros).
UNITA – Convertido de movimento de guerrilha (evoluindo uma guerra convencional no seus últimos períodos), impôs-se no xadrez político nacional por força dos Acordos de Bicesse como um partido de Direita-Radical ao tempo de Jonas Malheiro Sidónio Savimbi, sendo a demonstração dessa tendência a concordância com a liderança do MPLA pelos mesmos valores e interesses constitucionais de 1992 que em quase nada abonavam para a instauração de um Estado e Direito e Democrático efectivo em nome de uma pseudo-reconciliação nacional. O que implicava um modelo de governação em tudo semelhante ao do partido no poder em caso de vitória eleitoral. Com o fim da liderança do seu líder histórico, este segundo maior partido político angolano perdeu a sua homogeneidade ideológica. Actualmente, caracteriza-se pela existência de várias ideologias, a saber: a) Direita-Radical (Ala ligada a Direcção do Partido e simpatizantes de Isaías Samakuva); b) Esquerda-Radical (Ala dos reformistas e adeptos dos princípios do Muangai que aguardam pela implementação de um Estado novo livre da ideologia implantada pelo MPLA); c) Extrema-Esquerda (Maioria Juvenil, antigos militares e indivíduos nascidos e educados no contexto da guerrilha); d) Centro-Esquerda (Ala feminina ligada a LIMA, grupo parlamentar e demais militantes). Por incrível que pareça, a ala de liderança da UNITA está mais próxima do poder instituído do que a maioria das alas do próprio MPLA, arrasando a UNITA para a estranha categoria de partido de situação na oposição, contra a vontade real da maioria dos seu militantes e simpatizantes.
CASA-CE – Tendo emergido da crise de militância de indivíduos ligados a várias forças políticas, com destaque a UNITA, a CASA-CE é uma coligação de partidos políticos sem identidade ideológica própria. Uma identidade ideológica certamente em construção em virtude de ser uma força política muito nova (nasceu em 2012) e com estruturas organizativas em constituição e afirmação. Contudo, coloca-se no xadrez político nacional com a ideologia de Centro-Esquerda pelo posicionamento mais ou menos moderado dos seus militantes em função do comportamento ideológico assumido pelo líder partidário (Abel Chivucuvucu) que condiciona a atitude política de toda a máquina coligacional. Tem tudo para afirmar-se com a ideologia de Esquerda, uma vez que a sua identidade tende a apartar-se das do MPLA e UNITA em busca de uma personalidade ideológica diferente que atraia a militância residual destes dois partidos políticos. Entretanto, uma possível alteração na sua liderança máxima pode desencadear tendências ideológicas diferenciadas em função da natureza coligacional desta força política e da origem multipartidária dos seus militantes.
PRS – É um partido de posicionamento volátil e circunstancial caracterizado pelas suas frequentes deslocações ideológicas em função das contradições acentuadas ou não na sua relação com o partido no poder. Quando assume a sua função política intrínseca ou genética que se confunde com a defesa intransigente dos interesses dos povos da região das Lundas, este partido coloca-se nitidamente como um partido de Extrema-Esquerda. Porém, a sua Direcção e o respectivo grupo parlamentar, muito propensos a “negociatas de cavalheiros” com o partido no poder, tendem a colocar o partido no xadrez político nacional numa posição moderada muito próxima do Centro, sendo por isso de ideologia circunstancial de Centro-Esquerda.
FNLA – Ao longo da liderança de Holden Roberto, este partido histórico assumiu uma ideologia claramente identificada com a Extrema-Esquerda a quando da sua reentrada na arena política nacional a luz da abertura política multipartidária de 1992. A sua liderança e os militantes históricos, entre os quais Ngola Kabango, defendiam interesses mais ou menos irreconciliáveis com os do partido no poder. Desde a morte de seu líder histórico desapareceu a homogeneidade ideológica dando lugar a lutas internas de alas sem clara defesa de interesses e valores ideológicos como tais e muito próximas de um oportunismo mediático das lideranças que se candidataram a sucessão de Holden Roberto. Actualmente percebe-se: a) um grupo sem identidade ideológica (ala ligada a Direcção do Partido identificada com o Sociólogo Lucas Ngonda e seus simpatizantes); b) Extrema-Esquerda (Ala de Ngola Kabango e os militantes fundadores e históricos que conservam a identidade ideológica originária do partido); c) Centro-Esquerda (Ala juvenil e outros militantes e simpatizantes).
BD (Bloco Democrático) – Renascido da extinta FpD (Frente para a Democracia) sob a liderança do carismático Economista Justino Pinto de Andrade, o BD é, provavelmente, o único partido político angolano que nasceu e sempre se manteve com os mesmos padrões ideológicos claramente identificados com a Esquerda. Devido a falta de forças políticas identificadas com o seu perfil ideológico os dirigentes deste partido político têm privilegiado a sua acção em parceria com as forças da sociedade civil que actuam com os ideais de esquerda chegando mesmo a assumir as reivindicações destas ao ponto de colocar em causa a verdadeira vocação partidária do BD.
PDP-ANA – É um partido que evoluiu com a ideologia de Extrema-Esquerda no tempo do seu líder fundador, o polémico e determinado Professor Mfulumpinga Nlandu Victor. Posicionamento ideológico este de que se alega ser a causa da sua inexplicável morte. Actualmente é uma força política que vaga na sombra da política nacional sem identidade ideológica atribuível tanto a sua direcção como aos seus militantes e simpatizantes. O que facilita a sua relação com a UNITA em que se encontra ancorada em nome da sua sobrevivência eleitoral.
A IDENTIDADE IDEOLÓGICA DA SOCIEDADE CIVIL EM ANGOLA
ESQUERDA-RADICAL (movimentos e grupos de manifestantes contra o modelo de governação do poder instituído).
EXTREMA-ESQUERDA (organizações não governamentais de defesa de interesses comunitários ou locais sem ligações com o partido no poder e que actuam nas comunidades contra a gestão prejudicial de agentes ligados ao partido no poder com funções no aparelho local do Estado).
ESQUERDA (Maioria dos sindicatos independentes e organizações não governamentais de defesa dos direitos humanos).
CENTRO-ESQUERDA (Maioria das organizações não governamentais sem apoio de instituições públicas e do Estado, aspirando por parceria efectiva com o Estado).
CENTRO (Estão nessa posição privilegiada de neutralidade muito raras forças sociais contadas entre igrejas emergentes e missionárias sem relações ou ligações partidárias, outras organizações sem interesses político-partidários assumidas pelas respectivas direcções e grupos de intelectuais ausentes dos debates políticos).
CENTRO-DIREITA (grupos de intelectuais independentes e organizações não governamentais de carácter não políticos que procuram influenciar o comportamento político do poder instituído sem dele tomarem parte).
DIREITA (organizações de carácter público como ordens profissionais envolvendo advogados, médicos, engenheiros, psicólogos entre outros profissionais, organizações desportivas e culturais, sindicatos com ligações históricas ao partido no poder (UNTA, por exemplo) e demais instituições privadas com estatuto de utilidade pública e apoio de instituições públicas e do Estado que compreendem uma amalgama diversificada de indivíduos com tendências ideológicas irreconciliáveis entre si).
EXTREMA-DIREITA (Lideranças de igrejas com relações privilegiadas com o partido no Poder, organizações apêndices do partido no poder como são os diferentes comités de especialidades, a OMA, a JMPLA, etc.).
DIREITA-RADICAL (Organizações privadas ao serviço do partido no poder (Movimento Nacional Espontâneo, por exemplo) assim como os partidos políticos criados circunstancialmente por ocasião das eleições).
O ALINHAMENTO ESTRATÉGICO E COOPERAÇÃO TÁCTICA EM FUNÇÃO DAS SEMELHANÇAS IDEOLÓGICAS
Está claro que certos grupos e indivíduos se apresentam permeáveis a quaisquer orientações políticas que lhes garantam conforto social e sobrevivência económica. São grupos ou indivíduos que se apresentam no contexto das lutas sociais e políticas com um sentido de oportunismo em atenção a interesses de pura sobrevivência individual, onde não faltam os estrangeiros e os criminosos sem espaço para afirmação política. É a estes grupos e indivíduos que se rotulam a falta de identidade ideológica como tal.
A identidade ideológica é um mecanismo de determinação identitária da tendência política de qualquer força social ou partidária permitindo aos militantes e simpatizantes uma melhor certeza da aproximação das suas convicções aos grupos sociais e partidos políticos em que se encontram integrado. Em Angola, essa determinação tem sido viciada por três factores fundamentais, nomeadamente a ausência de uma EXTRUTURA SOCIAL assente na estractificação económica das classes sociais, divididas em classe dos grandes capitalistas ou de ricos, classe média-alta, classe média, classe de trabalhadores e outras classes abaixo que apenas acontece em economias com forte intervenção do sector privado como está longe de ser possível entre nós, já que os interesses económicos são determinantes para a defesa de valores e interesses compreendidos numa determinada ideologia; a falta de PROGRAMAS POLÍTICOS aptos para a governação do Estado elaborados e apresentados pelos partidos políticos aos seus eleitores e a vigência de um certo grau de VIOLÊNCIA POLÍTICA, entre as diferentes forças sociais e políticas, manifestada por uma intolerância generalizada. Este último factor, tem colocado, nos últimos tempos, os grupos sociais e os indivíduos a deslocarem as suas identidades ideológicas aos extremos, assumindo circunstancialmente ideologias de orientação radical. Apenas, os momentos de ausência de “confrontos” permitem a percepção de certas nuances identitárias como as referidas acima, não sendo por isso mesmo identidades estanques no contexto da dinâmica política nacional.
De qualquer modo, a semelhança de identidades ideológicas entre grupos e indivíduos permite uma maior aproximação das forças sociais e políticas no intuito de coligir sinergias para os objectivos comuns reforçando as acções de massas em ambientes eleitorais. Infelizmente, a falta de identidade ideológica uniforme entre os partidos políticos tem sido um factor de fragilidade na sua afirmação e actuação política. O que tem provocado a desistência de militantes, o desapego de simpatizantes e o descrédito por parte da maioria dos indivíduos na sociedade, provocando uma tendência cada vez mais crescente de abstenção política em grande parte dos angolanos.
O COMPORTAMENTO IDEOLÓGICO PROVÁVEL DOS PARTIDOS POLÍTICOS E DA SOCIEDADE CIVIL NAS ELEIÇÕES DE 2017 EM FUNÇÃO DA (RE) PRESSÃO POLÍTICA DO PARTIDO NO PODER
Via de regra, o advento das eleições provoca a solidariedade ideológica das tendências e indivíduos no MPLA a volta da Direita-Radical assumida pela sua liderança. Nessa altura, as várias sensibilidades ideológicas afunilam-se no interesse da sobrevivência do grupo e as divergências, mesmo profundas, são colocadas de lado e a identidade ideológica deste partido histórico torna-se clara: Direita-Radical. A UNITA, um partido-Estado, embora sem experiencia de governo, é hábil em restruturar a sua “manta de retalhos”. Os interesses eleitorais levam o partido a assumir duas faces. Uma que se identifica com a Direita-Radical, que permite concertações com o poder instituído em nome de uma bipolarização política estratégica, e uma que emite claros sinais de Extrema-Esquerda com a qual mobiliza o grosso de militantes e simpatizantes para os esforços eleitorais. Portanto, em período eleitoral, a UNITA é uma organização de ideologia bicéfala sendo apenas visível a identidade ideológica de Extrema-Esquerda com a qual procura empurrar o MPLA fora das preferências eleitoral da maioria dos angolanos. As lutas internas na FNLA, transformaram este partido numa organização em permanente sobrevivência política. Por altura das eleições, é sacudida por oportunismos eleitoralistas dos seus mais proeminentes membros com casos judiciais no meio que levam o Tribunal a tomar decisões internas do partido. O que facilita o seu controlo por forças externas, tais como a ala que controla o governo do MPLA e, portanto, declina a sua mais visível identidade ideológica (Extrema-Esquerda) assumida pela maioria esmagadora dos seus militantes e simpatizantes tornando-se dócil e fragilizada. A CASA-CE, em fase eleitoral tende a tornar concisa e nítida a sua orientação de Centro-Esquerda. O mesmo acontece com o BD que tende a promover melhor a sua ideologia de Esquerda nas campanhas eleitorais. O PDP-ANA, se manter o reboque a UNITA passa a ganhar a coloração ideológica deste partido sendo confundido na sua bicefalia ideológica. O PRS, a semelhança da UNITA é de ideologia bicéfala tornando proeminente a Extrema-Esquerda em ambiente eleitoral (altura em que precisa unir a vontade eleitoral dos povos lundas) e mantendo a deslocação para Centro-Direita que permita amealhar vantagens (políticas e patrimoniais) junto do partido que controla o processo eleitoral.
A sociedade civil engorda com novos actores para o aproveitamento das oportunidades eleitoralistas do momento. Organizações são ressuscitadas ou criadas. Um fenómeno que se assiste na arena política com o aparecimento de novas forças politicas coligacionais ou partidárias. Contudo, as organizações tradicionais de ideologia de Esquerda (OMUNGA, AJPD, Open Society, Associação Mãos Livres, SOS Habitat, etc.) tendem a potenciar os partidos políticos na oposição dinamizando o livre exercício da democracia e o respeito pela legalidade dos actos da administração eleitoral. Contudo, são traídas pela falta de identidade ideológica de Esquerda da maioria dos partidos políticos. Não é de estranhar que apenas o BD tende a criar dinâmicas harmonizadas com estas organizações da sociedade civil. Paralelamente, as organizações não governamentais de apoio as acções governamentais (Movimento Nacional Espontâneo, AJAPRAZ, etc.) tendem a ocupar o espaço da sociedade civil asfixiando a maioria das dos seus actores com as suas acções de natureza filantrópicas ou massificadoras de cariz propagandísticas com que ocupam em força o espaço da comunicação social reservada a iniciativas da sociedade civil.
É esta, a tendência comportamental que se verificou nas eleições de 2012, não muito diferente do que se passou em 2008. É claro que factores relacionados com a relativa estabilidade social e económica destes dois períodos eleitorais ajudaram a uniformizar os comportamentos dos seus actores.
Para 2017, foram introduzidos novos factores na dinâmica política nacional que levam a adivinhar novos cenários de alinhamento ideológico, ora similares ora diferentes dos momentos eleitorais de 2008 e 2012. Por uma lado, a CRISE FINANCEIRA (com faltas ou atrasos de salários e pensões, escassez de contratos públicos imediatamente remuneráveis) que começa a desmobilizar militantes e simpatizantes das dinâmicas do MPLA, e a TRANSIÇÃO POLÍTICA estranha e mal anunciada pelo líder do MPLA. São factores que tendem a reconfigurar a identidade ideológica dos principais actores da cena política nacional em 2017. Contando, que até lá tudo se mantenha. A Transição Politica parece ser um plano de reformas nas relações de militância interna do MPLA. Aliás, foi anunciado que o próximo Congresso Ordinário do partido no poder passará a contar com cerca de 30% de militantes jovens e 40% de militantes mulheres, perfazendo um total de 70% de presenças favoráveis a manutenção de JES. O que significa que os tradicionais e proeminentes militantes favoráveis as reformas internas, partilhando os míseros 30% dos lugares restantes, perderão espaço e poder significativo nas decisões internas do partido, perdendo influência sobre o comportamento do MPLA nas eleições de 2017. O controlo do MPLA pela ala do governo é uma clara jogada dos arautos do regime vigente com vista a garantir a continuidade eleitoral de José Eduardo dos Santos, a despeito do acentuado clima de saturação e descontentamento, mal dissimulado, nas fileiras partidária. Se a elegibilidade de JES em 2012 foi garantida pela sua posição hegemónica no partido e pela manipulação da Constituição de 2010 prevendo a eleição conjunta do Presidente da República como o mais proeminente candidato a deputado a Assembleia Nacional, para 2017 tudo será reeditado com a posição hegemónica com que JES sairá do próximo Congresso Ordinário perfeitamente sintonizado aos seus interesses. O que significa que no cenário político nacional tudo acabará por ser reeditado nos termos em que foi nas eleições passadas. A isso acresce-se a aprovação do Pacote Eleitoral prevendo o controlo do eleitorado real pelo Executivo relegando a pretensa autoridade eleitoral independente (CNE) no papel de um mero “fantasma” no processo eleitoral de 2017.
Se a UNITA procurará manter a sua ESTRATÉGIA DE CONTINUIDADE ELEITORAL LEGISLATIVA que consiste em somar mais lugares na Assembleia Nacional para o conforto patrimonial dos seus mais proeminentes militantes, a CASA-CE conhecerá o seu mais decisivo momento de teste como força política alternativa. Tendo criado a sua imagem a volta de Abel Chivucuvucu, a CASA-CE está “condenada” a levar o seu líder a assumir a Presidência d República visto que a militância e a simpatia que reúne junto do eleitorado nacional assenta na elegibilidade do seu líder. Para a CASA-CE a mera manutenção dos assentos parlamentares não basta. Se em 2017, o seu líder não se torna no novo Presidente dos angolanos, esta coligação arrisca perder parte significativa dos militantes e simpatizantes que depositam as esperanças numa força nova no controlo do poder político. Afinal, foi para isso que essa coligação nasceu. Outra força política que conhecerá nova experiência que lhe aproxima a extinção é o BD. Este partido, rotulado no passado como “partido dos intelectuais” precisa ganhar uma dinâmica de cariz demagógica e populista, trabalhando num processo de maior atracção de militantes e simpatizantes para a confirmação da sua sobrevivência política, já que a geopolítica partidária interna assenta na força e presença das massas. Apenas partidos com bases sociais fortes conseguem manter os seus indicadores eleitorais. Partindo do facto de que o BD é um partido potencialmente estruturado (o único que, nas vestes de FpD, já apresentou publicamente um Programa Político para reforma do Estado), o passo em falta para atrair uma massa de eleitores não será difícil de dar, contando que esteja devidamente organizada para o efeito. Do PDP-ANA quase nada se espera de novo, já que lançou a âncora a UNITA procurando manter apenas a existência da sua liderança já desfeita da sua base de militantes e simpatizantes organizada há anos pelo carismático matemático Mfulumpinga Nlandu Victor.
Induzida ou não, a CRISE FINANCEIRA é sem dúvidas o maior adversário das pretensões eleitoralistas do MPLA e do seu líder. Por um lado, tem a desvirtude de desmobilizar a grande massa de militantes e simpatizantes, já que este partido no poder não consegue contar com uma quantidade desejável de “militantes de alma”, i. é, daqueles que o apoiam incondicionalmente, independentemente dos benefícios patrimoniais de que venham a beneficiar e por outro lado, tem a virtude de ressuscitar a força do debate interno para reformas efectivas. Aliás, os sinais de desmobilização já têm sido visíveis nestes últimos tempos com a fraca aderência nos actos de massa que este partido procura organizar. Certamente, a tendência de afastamento do Congresso Ordinário da maioria de militantes crítico ao líder do partido seja uma resposta a esta preocupação que apoquenta a ala que controla o governo. O que importa aos angolanos é que a crise financeira não venha a ser usada como pretexto para o adiamento sine die das eleições de 2017. Dixit.
domingo, 7 de junho de 2015
CASO RAFAEL MARQUES VERSUS GENERAIS
O PROBLEMA DA REALIZAÇÃO DO ESTADO DE DIREITO
Albano Pedro
O julgamento de Rafael Marques é sem dúvidas um dos casos mais recentes que colocaram em causa a seriedade das instituições do Estado no que tange a realização do ideal de justiça e de liberdade, se colocarmos na mesma panela o nebuloso caso Kalupeteka envolvendo fiéis da seita Igreja do 7º Dia A Luz do Mundo que mais tarde ou mais cedo deverá conhecer um desfecho conhecido ao público. Com a publicação do livro “Diamantes de Sangue” em que compila o testemunho de dezenas de cidadãos torturados e reporta mortes imputáveis as empresas detidas por generais na região diamantífera das Lundas, Rafael Marques começou por ter um processo-crime interposto junto dos tribunais portugueses pelos supostos proprietários das empresas envolvidas nos grosseiros actos de violação dos direitos humanos alegando estarem a ser alvos de imputação de factos falsos e, por isso, caluniosos. Ao que parece, os tribunais portugueses arquivaram o processo por alegada incompetência material ou territorial da sua jurisdição. Percebe-se que em homenagem ao princípio da territorialidade das leis de estrita observância em matéria de jurisdição penal o caso apenas devia ser julgado no local em que ocorreu o crime (locus delicti comissi) que é em Angola sobretudo quando o facto envolve apenas cidadãos angolanos. Portugal, enquanto local da publicação do livro não é suficiente para legitimar os tribunais portugueses na apreciação do caso colocado pelos queixosos. Uma vez em Angola, Rafael Marques antecipou aos queixosos. Ele próprio apresentou uma queixa ao Ministério Público (MP) em que acusava os generais e as empresas como sendo as figuras por detrás dos actos hediondos de que tinha testemunhos devidamente compilados no seu livro. O MP alegando ter investigado a queixa feita pelo cidadão Rafael Marques não encontrou provas bastantes para acusar os generais e as empresas. Pelo contrário entendeu que a queixa-crime feita pelo jornalista e activista dos direitos humanos não tinha quaisquer sustentações e por isso inverteu a situação acusando o queixoso (Rafael Marques) com o crime de Denúncia Caluniosa por ter apresentado um a queixa alegadamente sem fundamentos e colocando em causa o bom-nome e demais direitos de personalidade das pessoas e empresas alistadas na queixa-crime. Acrescido a isso, os generais e as empresas envolvidas entenderam igualmente voltar a “luta” depois do arquivamento do processo em Portugal apresentando uma nova queixa-crime contra Rafael Marques acusando-o de crime de Difamação por a sua queixa e bem como o seu livro ter ofendido os seus direitos de personalidade (honra, bom-nome, etc.).
Não é difícil perceber que o caso estampa erros judiciais, alguns dos quais de palmatória, revelando ou falta de parecia dos sujeitos processuais ou simples vontade velada de não ver a justiça realizada no interesse do povo angolano e do ideal do Estado de Direito. Em meio disso, os lobbies políticos e os interesses nacionais e internacionais envolvidos, bem como a agitação da imprensa não propiciaram a serenidade suficiente para que a justiça fosse feita com a eficiência e a eficácia necessárias. Para começar, é de duvidar que o MP que deduziu a acusação devesse permitir que os generais constituídos assistentes acusassem o Rafael Marques de crimes diferentes daqueles que o MP acusou. Essa atitude está muito próxima de facilitar a alteração substancial dos factos e ferir o princípio da acusação nos termos do qual o MP e o tribunal ficam “presos” aos factos invocados na acusação feita pelo MP. Pois o crime de difamação (crime particular) foi invocado pelos generais na qualidade de assistentes quando já seguia a acusação de um outro crime (o crime de denúncia caluniosa).
É certo que Rafael Marques, jamais faria um acordo levando a transacção do crime de Difamação se tivesse a clara percepção das consequências da acusação do MP. Acontece que a denúncia caluniosa é um crime público e assim sendo, o MP tem o dever legal de prosseguir com a acção mesmo quando as partes decidem chegar a um acordo retirando o respectivo processo. Portanto, a negociação de Rafael Marques com os generais teve o seu êxito e foi eficaz em relação ao crime de Difamação qualificado como crime particular e não para a acusação do MP. Pior do que tudo, se o jornalista reconhece a existência da difamação acaba provando a denúncia caluniosa. Mais do que tudo, o crime de difamação não carece de ser provado (art.º 408.º - Código de Processo Penal - CPP), uma vez que a simples exposição pública dos factos imputados os generais servem como prova bastante. É certo que a lei permite que a difamação seja investigada por meio de provas se, no caso, os crimes que Rafael Marques imputou aos mesmos tivesse a correr em tribunal num processo-crime a parte ou já tivessem sido julgados com sentença transitado em julgado. Ou seja, se os generais tivessem um processo-crime pendente sobre os mesmos factos invocados pelo Rafael Marques, este, no uso da referência do respectivo processo, teria uma base probatória para a sua defesa provando assim que não tinha cometido o crime de difamação. Portanto, em circunstâncias normais, Rafael Marques não teria negociado o processo, uma vez que o MP jamais desistiria da acusação por dever legal. Infelizmente, o MP não considerou os factos mencionados na queixa-crime feita pelo Rafael Marques. Sendo que a queixa fazia referência a tortura e morte de dezenas de cidadãos, era obrigação do MP proceder a investigação dos factos apurá-los e determinar os seus autores. Ao invés, o MP preferiu considerar apenas o facto de Rafael Marques ter citado o nome de empresas e generais. E claro nesse parte o Rafael Marques falhou redondamente devido a um simples desconhecimento da lei. Acontece que as empresas não cometem crimes (societas delinquere non potest) e em consequência os seus sócios não podem ser acusados de prácticas criminosas. A queixa devia fazer referências aos gerentes (directores) e trabalhadores que corporizavam as empresas na altura em que ocorreram os factos criminais alegados na queixa. Seriam eles os autores morais (gestores) e os autores materiais (trabalhadores). Afinal, os crimes são pessoais e intransmissíveis. Apenas quem os comete, tomando parte das respectivas acções com manifesto dolo ou negligência, é responsabilizado. É possível que os sócios (generais) tenham cometido os crimes invocados, na qualidade de autores morais ou mandantes. Mas isso não é fácil de provar se olharmos para quem responde pelas acções das empresas que são os administradores e demais trabalhadores. Se o jornalista tivesse tido ajuda de um jurista na formulação da queixa, certamente não cometeria esse erro básico. Todavia, o MP devia investigar os crimes. Aliás, tinha (e continua a ter) obrigação de investigar os casos de tortura e mortes denunciadas. Ainda na fase da instrução preparatória, o MP devia ouvir as testemunhas elencadas pelo Rafael Marques e constitui-las declarantes no processo. Torturas e mortes são factos graves a que o Estado angolano, no interesse do seu povo, está obrigado a averiguar e a responsabilizar os seus autores. Apurados os crimes, ou indício da sua ocorrência, certamente os gestores e trabalhadores envolvidos seriam chamados a justiça na qualidade de réus. É a partir dessa falta que o MP e o Tribunal avançam para um processo que inverte os papéis entre o réu e o ofendido. Na verdade, os mais ofendidos são os povos das lundas que foram torturados e mortos, caso tenham sido, e que por isso não viram a justiça realizada a seu favor. E nisso perde o povo angolano e se belisca o Estado de Direito.
Com a realização do julgamento, o Rafael Marques acabou provocando a desistência dos generais da queixa-crime de difamação, mas acabou sendo acusado de denúncia caluniosa. O que se passou aqui é o aproveitamento do conteúdo da negociação vazada em acta para se dar como provado o crime de denúncia caluniosa. Ou seja, o MP dispensou as testemunhas elencadas pelo Rafael Marques tomando as suas declarações como bastantes para apurar a prova do crime. Nada mais dramático na acção penal do MP. É certo que o facto de Rafael Marques ter dispensado as testemunhas que tinha arrolado no processo para sustentar a sua própria defesa facilitou o trabalho de investigação de provas do MP bastando-se as declarações do próprio réu. O que não deixa de ser um erro crasso imputável ao próprio réu. Entretanto, ao próprio tribunal faltou capacidade de averiguar os factos probatórios, recomendando ao MP a produção de melhores provas, para fundamentar as penas arbitradas em sentença contra Rafael Marques. Aliás, o juiz, em homenagem ao princípios da investigação devia ter investigado os factos constantes da acusação, mesmo que o MP não tivesse tomado como “thema probandum”. O que significa que o tribunal podia ter investigado os factos mencionados pelo Rafael Marques mesmo que não sejam imputáveis aos generais. Nesse caso pode dizer-se que o réu foi traído pela subtileza do acordo e pela falta de diligência do tribunal no apuramento dos meios de provas. No meio disso, a obrigação do tribunal de recomendar o MP no sentido de apurar a veracidade das torturas e das mortes em nome do povo angolano não foi invocada e nem considerada.
A acusação da comunidade internacional nos termos da qual o Estado angolano persegue o jornalista pelo exercício da liberdade de expressão e de imprensa é precária e insustentável, visto que o julgamento do caso Rafael Marques versus Generais foi iniciado com base na queixa-crime feita pelo próprio jornalista. Em circunstâncias normais, Rafael Marques teria aguardado serenamente que os generais, frustrados pelos tribunais portugueses que se recusaram a julgar o crime contra o jornalista, repetissem a acção em tribunais angolanos. Assim ficaria publicamente provado que era o jornalista que estava a ser perseguido pela opinião emitida. Para além de que, nesse caso, o MP jamais invocaria o crime de denúncia caluniosa uma vez que o jornalista não teria apresentado qualquer queixa-crime contra os seus “algozes”. Parece pouco deontológico, que o jornalista que publica a matéria “difamatória” seja o mesmo a proceder a queixa-crime contra os seus visados. Aqui ficamos pouco seguros de que haja efectivamente uma perseguição do Estado angolano ao jornalista quando afinal foi é este que provocou o enxame de abelhas.
A imagem dos manifestantes em tribunal exigindo a libertação de Rafael Marques foi um mau serviço a realização do Estado de Direito colocando em causa os verdadeiros valores que defendem e a autoridade do tribunal em apreciar o caso a si submetido. Se ao tribunal cabe a aplicação do Direito e em consequência a realização da justiça consagrada nas leis que sentido faz que o jornalista não seja julgado? Queremos ou não o Estado de Direito? Queremos ou não um Estado em que a justiça é feita nos tribunais e com base nas leis? Tudo faria sentido se os manifestantes iniciassem as suas reivindicações depois da sentença. Nesse caso, sendo uma sentença injusta (como aconteceu) faria sentido que os manifestantes iniciassem uma campanha de reivindicação contra o tribunal. Com a ocorrência de reivindicações no tribunal (sala de julgamento) e antes da sentença verificou-se uma clara atitude de desrespeito as autoridades públicas (no caso judiciais) cuja consequência normal seria a prisão dos alegados activistas dos direitos humanos em nome do estado de Direito por claro distúrbios à realização da justiça cujos crimes se encontra claramente tipificados. A obsessão de que tudo que é feito pelas autoridades públicas está viciado é uma clara negação do próprio Estado que coloca em crise a própria existência do povo angolano. O Estado deve prevalecer sobre todos os interesses particulares sejam eles contrários ou favoráveis a sua manutenção. E a geração que defende um novo Estado não pode querer que este desapareça completamente para depois ser reconstruído. É um contra-senso a ponderar nas acções reivindicativas dos movimentos sociais.
Quanto as penas arbitradas, não há muito interesse em comentá-las, visto que o recurso ao tribunal superior feito pela defesa de Rafael Marques tem como efeito a suspensão das mesmas levando a que o réu não cumpra já a penas de que foi condenado, mesmo que sejam penas suspensas. Aliás, nesse capítulo, a conversão da pena de prisão em pena de multa não deve ser descartada pela defesa caso o novo tribunal mantenha a sentença do tribunal que julgou o caso. Entretanto, fica o apelo ao Estado angolano para que prossiga com a investigação dos factos que Rafael Marques imputou aos generais. As torturas e mortes contra cidadãos angolanos devem ser apuradas em homenagem ao princípio da oficiosidade que obriga o próprio juiz a proceder a investigação dos factos constantes da acusação do MP. Este é seguramente o ónus que terá o tribunal recorrido (juízo ad quem) quando iniciar o novo julgamento do caso Rafael Marques versus generais visando reparar os erros judiciais praticados pelo tribunal inferior (juízo a quo). O povo angolano precisa de uma explicação sobre o caso e de ver responsabilizados os autores dos crimes denunciados caso venham a ser provados.
Finalmente, tem que convir que o “acordo” feito entre o Rafael Marques e os generais foi um péssimo “negócio” para a imagem da luta pelos direitos humanos em Angola a favor da qual o jornalista, ao lado de muitos outros activistas dos direitos humanos, vinha protagonizando com sucesso e que o MP e o tribunal prestaram um mau serviço a realização da justiça ao desconsiderarem a investigação dos factos e o apuramento das provas necessárias a um julgamento justo. No meio de tudo, perdeu o povo angolano, em geral, e as populações da região das lundas, em particular. Espera-se que o recurso judicial mude a situação assim diagnosticada. Dixit.