terça-feira, 27 de abril de 2010

NOVA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA I

QUESTÕES DE FISCALIZAÇÃO DA CONSTITUCIONALIDADE DAS NORMAS


Albano Pedro

Se entendermos o sistema jurídico angolano – com todas as suas normas constitucionais e ordinárias – como um corpo em cujas veias circulam miríades de normas jurídicas e é injectado de quando em quando novas normas legais por intermédio de actos legislativos da Assembleia Nacional (poder legislativo originário) ou do Governo (poder legislativo derivado) e toda a sua cadeia gradativa de normas infra-ordinárias facilmente se percebe da necessidade de se controlar este corpo com vista a expurgar as normas que ameaçam ou põem em causa a vitalidade do sistema pela incongruência que causam quando confrontadas com as normas constitucionais. É o que se chama controlo da constitucionalidade das normas, que pode ser preventiva quando se tratar de prevenir o sistema jurídico das normas inconstitucionais que venham a ser introduzidas por via dos actos legislativos ou ser sucessiva em se tratando de expurgar normas que graçam impunes pelo sistema jurídico contra os valores consagrados na Lei Constitucional. É pois um exercício de garante da limpeza e higiene do corpo jurídico nacional vigente que é, via de regra, superiormente exercido pelo Presidente da República na sua qualidade de mais alto magistrado da Nação.

O controlo preventivo da constitucionalidade das normas ocorre em regra logo após a aprovação da Lei pela Assembleia Nacional ou pelo Governo no uso de poderes legislativos e consequente promulgação pelo Presidente da República. Suspeita de inconstitucionalidade o diploma legal é então submetido a apreciação do Tribunal Constitucional para no prazo normal de 45 dias decidir sobre a constitucionalidade positiva ou negativa do diploma legal, podendo ser parcial ou totalmente inconstitucional quando inquinada deste vício. Quem solicita este controlo? Na Lei Constitucional anterior aprovada ao abrigo da Lei de Revisão n.º23/92 era o Presidente da República e 1/5 de deputados que tinham competências para solicitar a apreciação preventiva da constitucionalidade dos normas legais. A nova Lei Constitucional determina 1/10 de deputados para o efeito, mantendo o Presidente da República com os mesmos poderes. Se o tribunal declara a inconstitucionalidade da norma, o Presidente da República exerce o veto sobre o diploma por promulgar e esta é em consequência remetida ao órgão que o aprovou para conformação com as recomendações do Tribunal Constitucional.

Questão interessante desenvolvida no debate teórico destas matérias é a de saber se o Presidente da República ao exercer o veto sobre o diploma aprovado pela Assembleia Nacional enquanto órgão soberano estará a contrapor o seu poder a soberania do povo exercida por aquele órgão representativo da vontade popular? Ora, o poder de promulgar leis é sempre representado pelo exercício mediante o qual o Presidente da República concorda, por oposição da sua assinatura, com o conteúdo do diploma em causa comparando-o previamente com a Lei Constitucional seguindo-se a sua publicação no diário oficial (Diário da República). Quando ocorre o veto sobre o diploma legal nunca se entenderá como um exercício de poder soberano contraposto a um outro. Neste momento é o sistema jurídico na sua missão de autoprotecção que rejeita a norma submetida a promulgação. Rejeição esta que ocorre no âmbito dos mecanismos da própria constituição que como tal circunscrevem-se nos limites a máximos de todos os poderes soberanos, i.e., é a Lei que se impõe sobre os poderes públicos em protecção dos valores fundamentais do povo.

É claro que a adopção da terminologia “fiscalização abstracta” para os dois tipos de controlo da constitucionalidade das normas é resultado de academicismo gratuito que condenamos noutros textos e em entrevistas radiofónicas concedidas a este propósito por desnecessário para a Lei Magna que se pretende perceptível para todos os extractos sociais do povo angolano. Todavia, é de reconhecer que a nova Lei Constitucional comporta inovações quando estende a competência para solicitação da fiscalização preventiva a 1/10 de deputados em pleno exercício das suas funções. Se o presidente solicita o controlo preventivo nos 20 dias que se seguem ao seu conhecimento, presume-se que os deputados podem exercer esta competências logo após a aprovação do diploma legal suspeito de inconstitucionalidade, visto que a Lei Constitucional é omissa quanto ao prazo para deputados.

Da mesma forma a competência para a solicitação da fiscalização sucessiva é nesta Lei Constitucional extensiva aos grupos parlamentares. Aqui o legislador constituinte prefere evitar o monopólio deste exercício pelos deputados de bancadas maioritárias transferindo a responsabilidade de impugnar as normas inconstitucionais para cada força política representada na Assembleia Nacional independentemente do número de deputados que tenha. Está-se perante um momento em que as forças da oposição civil não mais poderão invocar impedimentos formais para solicitar a impugnação de normas inconstitucionais como acontecia na Lei Constitucional anterior. É um verdadeiro teste a fidelidade jurídica e democrática fartas vezes invocada pelos partidos na oposição civil escudando nela a sua cumplicidade com o sistema vigente.

A nova Lei Constitucional reconhece igualmente ao Provedor de Justiça a mesma capacidade para solicitar o controlo sucessivo da constitucionalidade das normas. Para um órgão que exerce o seu poder através de persuasão aos órgãos soberanos na prevenção de ofensa aos interesses dos particulares a possibilidade de solicitar a inconstitucionalidade de normas representa um verdadeiro reforço institucional. O Provedor de Justiça é neste contexto o órgão natural que representa a porta de contestação dos particulares e da sociedade civil a inconstitucionalidade das normas. Contudo, a grande dependência institucional em relação ao poder executivo que este órgão tem demonstrado revela a fraca capacidade de utilização deste instrumento constitucional a favor de petições populares. Prova está em que, em meio as inúmeras destruições de residências dos cidadãos e outros actos atrozes praticados pelos órgãos do Estado, nenhuma petição particular dirigida a este órgão persuasor teve relevância política até então. Aliás este órgão nasceu em países nórdicos com forte tradição ética no exercício da cidadania em que os actos públicos são determinados pelo respeito estreito pelos direitos elementares dos cidadãos. Não tem qualquer expressão em países africanos em que a tradição ditatorial arruma com todos os pressupostos da convivência pacífica e igual entre os cidadãos. Não se espera assim, grande intervenção deste órgão na expurga dos numerosos diplomas inconstitucionais que abundam no mercado jurídico-normativo angolano mesmo a pedido dos particulares ou da sociedade civil que muito carece de um instrumento desta natureza.

Novidade de nota é a possibilidade constitucional da Ordem dos Advogados de Angola (OAA) poder solicitar igualmente a fiscalização sucessiva da constitucionalidade das normas. O que não está claro são os mecanismos formais para este exercício. Ou seja, a constituição não ajuda a perceber se são os advogados, em número determinado, que solicitam em nome da corporação, ou se esta, mediante iniciativa dos seus órgãos de direcção ou a pedido de outras instituições – nomeadamente as da sociedade civil – pode interpor o pedido ao Tribunal Constitucional. É preferível a ideia de que a Lei Constitucional liberta ao critério regulador da própria Ordem dos Advogados. De resto é o que é perceptível se tivermos em conta que a elevação da OAA a categoria de órgão auxiliar de justiça com dignidade constitucional, como acontece em raras partes do mundo, resulta da grande capacidade influenciadora que teve na positivação do novo texto constitucional por meio do qual procurou um lugar de grande destaque e intervenção na alteração do sistema jurídico nacional.

Vale sublinhar que o sistema jurídico angolano rico em normas que contradizem a Lei Constitucional regista choques (incluindo antinomias) que comprometem a vigência de um Estado Democrático e de Direito e em consequência de uma verdadeira economia de mercado. Repare-se na vigência da Lei 18/88 – Lei do Sistema Unificado de Justiça que reconhece ao Presidente da República o poder de nomear os juízes do Tribunal Supremo como uma das maiores evidências desta contradição ou mesmo o inconcebível pedido as autoridades administrativas do Estado para a realização de manifestações públicas em plena Democracia condicionada pela Lei das Reuniões e Manifestações vigente. Dispositivos normativos fiscais que determinam o pagamento de 35% em Imposto Industrial pelos empresários são barreiras inconstitucionais para uma economia que se pretende de mercado e de livre concorrência. É tudo para expurgar como normas perfeitamente inconstitucionais dentro de um sistema jurídico que se pretende claro e harmonizado com novo texto constitucional.

Apesar das inovações, está-se ainda perante garantias orgânicas de fiscalização da constitucionalidade das normas muito fracas. Não desenham no horizonte quaisquer possibilidade dos cidadãos verem um sistema jurídico permanentemente livre dos “vírus” normativos perniciosos a sua saúde. É nosso entender que a garantia de fiscalização sucessiva fosse igualmente exercida de forma condicionada pelos cidadãos. Se decorrido um certo lapso significativo de tempo a norma entrada em vigor com forte evidência de inconstitucionalidade não fosse declarada como tal pelo Tribunal Constitucional por clara incúria dos órgãos constitucionalmente competentes para o solicitarem, fosse o povo mediante petição colectiva (com número mínimo de indivíduos) a fazê-lo interpondo o respectivo pedido ao Tribunal Constitucional. Estaríamos assim diante de uma forte garantia de fiscalização constitucional que tornaria forçoso a expurga das normas inconstitucionais em todo o sistema jurídico obrigando os legisladores a um trabalho multiplicado na renovação constante de todo o ordenamento jurídico agilizando a vigência de um Estado de verdadeira Democracia e assente no Direito.

Ainda assim, o facto do Tribunal Constitucional não ter declarado inconstitucional a vigência da norma que altera as cláusulas “pétreas” previstas no art.º 158º da Lei Constitucional revista quando lhe foi solicitada a declaração positiva ou negativa da constitucionalidade do novo texto constitucional retira esperanças sobre a possibilidade de uma verdadeira limpeza ao sistema jurídico a exercer pelo Tribunal Constitucional com a participação dos órgãos mais sensíveis aos particulares e a sociedade civil como o Provedor de Justiça ou a Ordem dos Advogados com vista a tornar emergente um verdadeiro Estado Democrático e de Direito actualmente confuso na sua concretização.

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