A GÉNESE DAS LIBERDADES FUNDAMENTAIS: O DIREITO DE REUNIÃO E DE MANIFESTAÇÃO
Albano Pedro
Quando se fala em democracia participativa ou pluripartidária, a ideia básica que se nos apresenta é a dos cidadãos serem livres de exprimir publicamente os seus sentimentos e vontades; de demonstrar aos governantes as suas indignações ou apreços e simpatias. Em resumo: terem a capacidade de demonstrar a soberania que lhes assiste através de variadíssimos actos públicos. Fala-se então no exercício de liberdades fundamentais. Os textos constitucionais que consagram democracias participativas em todo o mundo costumam apresentar três tipos de direitos fundamentais. Nomeadamente, os direitos propriamente ditos, as liberdades e as garantias fundamentais. Os direitos são legalmente atribuídos aos cidadãos em função das alterações e adaptações dos sistemas jurídicos, um pouco dependentes das simpatias e aberturas políticas provocadas por actos e promessas eleitorais. Porém, as liberdades são reconhecidas pelos sistemas jurídicos porque elas pertencem naturalmente aos homens. Elas provêem da ideia do Direito Natural anterior a qualquer forma de direito positivo ou direito posto pelos homens a vigorar nas sociedades. Por isso, apenas as liberdades reconhecidas por Lei podem ser exercidas, as outras que não são reconhecidas podem ser socialmente confundidas com actos de loucuras ou agressão física ou moral por serem estranhas ao comportamento geral e padronizado dos cidadãos. As garantias, por seu turno, soam como uma espécie de direitos-vigilantes, ou seja, são consagradas para proteger e reforçar o exercício das liberdades uma vez reconhecidas pela Lei.
Porque é que a Lei deve reconhecer as liberdades? As liberdades consagradas pela lei, nascem da liberdade natural dos homens; da ideia da liberdade individual, muito mais próxima da moral do que da Ética ou Lei. O homem nasce com a percepção natural de que é livre de se exprimir como quer e como pode junto da sociedade em que nasce e desenvolve até ser reprimido e condicionado pelas limitações impostas pela Lei. De resto, o desenvolvimento do homem desde a idade infantil à idade adulta é disto prova bastante. É por isso que a liberdade se caracteriza como a tolerância da lei perante a expansão descontrolada e eufórica dos actos praticados pelo indivíduo, permitindo que este tenha os seus sentimentos, sonhos e ilusões admitidos pela sociedade através da Lei sem qualquer contradição ou imposição. Vem daí que o limite do exercício das liberdades seja claramente determinado por lei e nos limites por ela estabelecidos sob pena de limitar ou exagerar o desenvolvimento da pessoa humana.
O exercício das liberdades fundamentais representa o ponto máximo do desenvolvimento de qualquer democracia; é o mais fiel dos termómetros para medir a evolução das democracias modernas. Mais liberdades, mais democracia e mais direitos protegidos pelo Estado a favor dos cidadãos. A consagração constitucional das liberdades fundamentais em todo o mundo é resultado das reformas e transformações sociais operadas e registadas sobretudo no princípio e meados do século passado em que a I e II guerras mundiais seguidas das guerras independentistas que se verificaram um pouco por todo o mundo permitiram que povos escravizados e sem autonomia pudessem manifestar a sua soberania. Essas liberdades foram sobretudo reconhecidas com a Declaração Universal dos Direitos do Homem (Nações Unidas) que procurou infundir a sua observância uniforme em todos as constituições do mundo.
Saídos de um contexto centralista de Estado, os angolanos conheceram formalmente as liberdades fundamentais com a Lei Constitucional de 1991, que adivinhou a eminente reforma constitucional do ano seguinte, prevendo a garantia pelo Estado e Leis da liberdade de expressão, de reunião, de manifestação, de associação e de todas as demais formas de expressão (art.º 24º), direito a greve (art.º 26º), liberdade de imprensa (art.º 27º), liberdade de consciência e de crença religiosa (art.º 32º), entre outras liberdades claramente formalizadas e prevendo igualmente que a limitação do exercício das mesmas devesse ocorrer apenas nos termos da Lei (art.º 39º). A mais importante de todas as liberdades, no contexto das lutas democráticas, em que se pretende impor os direitos dos cidadãos em detrimentos dos interesses das classes hegemónicas, normalmente no poder, é, sem dúvidas, o direito a manifestação. A manifestação, não só representa a realização lógica da democracia, como demonstra o verdadeiro sentido de soberania dos povos como é consagrado na nossa Lei Constitucional. A manifestação representa um sinal para os governantes da incapacidade dos governados em suportar as irregularidades da administração pública; representa a saturação dos cidadãos em suportar o regime que se lhes impõe; representa, enfim, o momento da necessidade de ruptura entre o compromisso assumido no momento eleitoral e o resultado do exercício do poder delegado pelo acto eleitoral. É por isso, que é das liberdades mais controladas pelos detentores do poder político, procurando permitir o seu exercício o menos possível.
A Lei n.º 16/91 - Sobre o Direito de Reunião e de Manifestação (publicado no Diário da República n.º 20, 1ª Série de 11 de Maio) garante a todos os cidadãos o direito de reunião e de manifestação. Define, esta Lei, que a reunião é o agrupamento temporário de pessoas, organizado e não institucionalizado destinado à troca de ideias sobre assuntos de natureza diversa, nomeadamente, políticos, sociais ou de interesse público… (art.º 2º n.º1). Querendo esclarecer que as palestras, conferências, conversas entre amigos ou colegas, debates, encontros, etc., devem ser realizados em conformidade com a presente Lei. Da mesma forma define a manifestação como o desfile ou comício destinado à expressão pública duma vontade sobre assuntos políticos, sociais, de interesse público ou outros (art.º 2º n.º2). No âmbito destas estão toda a sorte de manifestações colectivas que envolvem a expressão ou partilha pública de assuntos de interesse políticos, sociais ou públicos, sendo de incluir as passeatas desportivas ou culturais, corridas de atletismo ou bicicleta, para além de diversos eventos desportivos, os cortejos fúnebres ou simples passeios que envolvam aglomerados significativos de indivíduos cujo objectivo é a mera manifestação de sentimentos ou a promoção da saúde física dos participantes, embora estas devessem ser integradas genericamente no exercício de liberdade de expressão.
Quer a reunião quer a manifestação para serem organizadas e realizadas não carecem de qualquer autorização (art.º3º). Contudo, não poderão prolongar-se até meia-noite, salvo se realizadas em recintos fechados, em salas de espectáculos, em edifícios sem moradores ou, em caso de terem moradores, se forem estes os promotores ou tiverem dado o seu assentimento por escrito (art.º5º n.º1). Quanto aos cortejos e desfiles. Estes não podem ter lugar antes das 19 horas nos dias úteis e antes das 13 horas aos sábados, salvo em situação devidamente fundamentadas e autorizadas. A reunião ou a manifestação carece ainda de ser comunicada por escrito ao Governo Provincial ou administrador municipal conforme o evento ocorra na capital da província ou em sede municipal com antecedência mínima de 72 horas (art.º 6º), devendo constar na comunicação a hora, local e objecto da reunião e, quando se tratar de cortejos ou desfiles, a indicação do trajecto a seguir (art.º 6º,n.º2º). A referida comunicação deve ser assinada por 5 (cinco) dos promotores devidamente identificados pelo nome, profissão e morada ou, tratando-se de pessoas colectivas, pelos respectivos órgãos de direcção (art.º 6ºn.º3).
O que se nos oferece comentar sobre a liberdade de reunião e de manifestação em Angola? Desde logo, a necessidade legal de comunicar ou informar sobre a realização de reuniões faz adivinhar que o legislador ordinário, ainda imbuído do espírito centralista de Estado sobrevivente do período pro-comunista, pretendeu o controlo milimétrico de toda a espécie de aglomerados humanos percebendo e controlando as suas motivações; decantando entre eles aqueles que representem ameaça ou perigo para a manutenção do poder político. Em Estados com fortes compromissos com a democracia não faz sentido condicionar a realização de reuniões. A Lei podia denominar-se apenas Lei das Manifestações, tratando somente desta liberdade e, sobretudo sem condicionar o seu exercício pela informação antecipada as autoridades. A informação teria importância de ordem pública procurando tão só que as autoridades criem aparatos humanos e materiais necessários a uma manifestação sem perigo de danos contra vidas humanos e bens públicos. Não mais do que isso. Entretanto, a Lei por um lado confirma que a liberdade de reunião e de manifestação não carecem de quaisquer autorização e por outro lado, introduz um mecanismo subtil que emperra o seu exercício quando estabelece que estas mesmas liberdades podem ser impedidas de serem realizadas pelas autoridades quando por exemplo não se cumpram com os prazos de comunicação ou as autoridades entendam necessário impedir a sua realização (art.º 7º, 8º e 15º.) ou mesmo alterar o trajecto dos cortejos (art.º 11º) livremente estabelecidos pelos promotores independentemente de estar em causa a ordem pública. O que representa uma gravosa limitação dos direitos democráticos dos cidadãos a favor de um sistema controlador da expressão dos cidadãos igual aquele que imperou no período centralista de Estado antes de 1992.
Pelo pouco que se disse, tudo fica claro quanto a inconstitucionalidade, pelo menos parcial, desta Lei. Devia ser solicitada, há muito, a sua nulidade por inconstitucionalidade junto do Tribunal Constitucional pelas autoridades que a Lei Constitucional reconhece competência para o efeito (art.º 230º Lei Constitucional) e ser, então, reformada para atender as exigências da democracia participativa longe da sombra do centralismo estatal inspirado pelo comunismo que ainda persegue os angolanos. A nova Lei Constitucional mantém o espírito da Lei constitucional de 1991 sobre a liberdade de reunião e manifestação (art.º 47º) com a simples alteração na letra para privilegiar a desnecessidade de autorização quanto ao seu exercício, embora a Lei ordinária correspondente, ainda inalterada, passeia impune sobre os mares da inconstitucionalidade com toda a pompa que expõem as incongruências e irregularidades nelas incorporadas para proteger interesses que não se identificam com o exercício de cidadania. De qualquer modo, a consagração constitucional das liberdades fundamentais tipificadas e não tipificadas representa um ganho do Estado de Direito e o alicerce da democracia angolana que se vai construindo embora muito lentamente.
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