A QUESTÃO DA OFENSA À HONRA E AO BOM NOME
Albano Pedro
A propósito da disputa entre o Governador da Província da Huila e os Sindicatos associados (SINPROF e CEGESILA) em torno das reivindicações dos professores, constou-nos de forma algo imprecisa, por falta de certeza dos factos e provas, que durante as manifestações destes foram proferidas palavras insultuosas tais como “Isaac dos Diabos” e outras tidas como atentadoras contra a honra e o bom nome da pessoa do Governador, facto que levou esta ilustre entidade a exigir retratação pública sob pena de acção judicial para responsabilização dos mesmos. Ao que nos obriga a algumas considerações sobre o caso, a guisa de hipótese jurídica por manifesta incerteza dos acontecimentos assim descritos. Coloca-se a questão de saber como são apuradas as ofensas morais, quando estas ocorrem e a quem responsabilizam, visto que entre miríades de factos e fenómenos sociais, há que assentar que nem todos têm relevância jurídica e dentre estes muito poucos tem dignidade de factos judiciáveis ou judicialmente exigíveis.
Como tudo parece girar a volta da ofensa à honra e ao bom-nome da pessoa do Governador e outras entidades (conforme se lê na última página da Nota de Esclarecimento Público do Gabinete do Governador assinada pelo seu titular), parece de grande valia navegar sobre tais conceitos legais e suas consequências. Vale antecipar que o Direito não se presta a quaisquer dizeres para admiti-los como relevantes pelo simples facto do seu visado assim entender. Há requisitos para que um facto seja idóneo nesse prisma. Um destes requisitos, provavelmente o mais importante, é a susceptibilidade de tais factos causarem prejuízos à pessoa visada. Vem daí que nem todas as palavras insultuosas sejam relevantes para o Direito por lhes faltar idoneidade para causar prejuízo. Por exemplo: chamar um governante como sendo corrupto ou ladrão, quando se sabe publicamente que a sua gestão não é parcimoniosa, mas pelo contrário, publicamente danosa, não provoca quaisquer repulsas aos seus parceiros de negócios que até andam a ele ligados pela sua “habilidade” em justificar saídas financeiras impossíveis, muito menos diminui a capacidade patrimonial dos seus dependentes que até se orgulham de ter um membro da família que se serve gratuitamente do erário público. Neste caso não haverá qualquer prejuízo, nem material (perda de negócios) nem moral (perda de consideração da sua personalidade) junto destes mesmos parceiros ou parentes. O exemplo serve para apresentar o conceito jurídico de ofensa do crédito ou do bom-nome que releva apenas os factos susceptíveis de causar prejuízo ao seu visado (art.º 484º - Código Civil) a partir do qual todo aquele que o pratica fica sujeito a reparar os danos causados. Porque o prejuízo tem de ser avaliado em termos de danos efectivamente causados.
O conceito jurídico de bom-nome não se confunde com o conceito de nome. Não é juridicamente relevante confundir alguém que se chama João Machado com um outro que se chama João Alfinete, ou apelidar alguém que orgulhosamente se chama Machado por Catana levando-o a irritar-se, por exemplo. O direito não presta qualquer atenção à plasticidades humorísticas emprestadas aos nomes por quem tenha apurado senso de humor, porque a preocupação de fundo são os valores (verticalidade, probidade, pontualidade, honradez, etc.) que estão por trás de quem titula o nome e não este em si. É por isso que quanto mais digno e socialmente aprumado é o cidadão ou entidade visada maior é sanção infringida à quem ofende (art.º 414º - Código Penal). E faz sentido. Por exemplo: chamar vadio a um louco ou demente manifesto não tem certamente o mesmo impacto emocional como chamar vadio a um pároco. Porque a importância moral desta entidade religiosa na comunidade em que se insere é fundamental para a orientação ética das pessoas que lhe reconhecem os atributos de homem de bem e de virtudes. Saber que o pároco é um vadio (mesmo sem prova) constitui motivo suficiente para as mães retirarem os filhos da catequese sob a sua orientação causando manifesto prejuízo ao seu ministério e à vocação dos petizes. Compreende-se a dimensão ontológica do conceito de ofensa sob o prisma do Direito?
Indo nos arcanos da hermenêutica jurídica para fazer nascer a luz do esclarecimento o problema em apreciação urge colocar a mesa o facto dos crimes de injúria, calúnia e difamação serem, do ponto de vista conceitual, incipientes nas Leis penais porque ganham sustentação nas leis civis que reconhecem nos factos que lhes subjazem a susceptibilidade de causarem prejuízo. Vem daí que enquanto tais factos, quando verbais, configurarem crimes não carecem de provas (art.º 410º - Código Penal), porém como delitos civis carecem de serem provados (art.º 342º - Código Civil) por visível senso de complementaridade das duas formas de tutela jurídica. É por isso que, nos parece duvidoso que a utilização humorística de nomes com fim de exaltar a chacota ou a “boa gargalhada” seja vista como ofensivo ao bom-nome. Ser chamado Diabo ou Santo, Anjo ou Demónio não modifica nem o carácter nem o comportamento de quem é chamado por tais nomes tão pouco afecta moralmente ou materialmente as pessoas que as circundam. A utilização humorística dos nomes pode ter relevância satírica ou mesmo caricaturesca levando a exaltação do humor de quem ouve ou lê, porém não leva ao descrédito social, ético ou moral a pessoa visada e como tal não surgem quaisquer prejuízos de cujos danos sejam de reparar.
Também é de precisar que as pessoas jurídicas (organizações sindicais, no caso) não cometem crimes (societas delinquere non potest) e como tal não podem ser responsabilizadas. Porém, podem sê-lo para efeitos de reparação de danos morais ou materiais. Neste caso, os danos efectivos têm de ser provados e as pessoas concretas que os tenham provocado devem ser identificadas. De todo o modo, mesmo que o ilustre Governador queira relevar tais insultos pretendendo que sejam judicialmente relevantes ainda tem a tarefa de determinar as pessoas que os proferiram, pois a Lei Sobre o Direito de Reunião e de Manifestação (Lei 16/91 de 11 de Maio) responsabiliza os infractores de forma individual (art.º 14º, n.º 5) quer criminal quer civilmente. Daí que o pedido de desculpas públicas pretendido pelo Governador seja uma faca de dois gumes. Se por um lado visa proporcionar aos possíveis actores a possibilidade de serem agraciados pelo perdão benevolente do Governador, por outro lado tais indivíduos arriscam-se a denunciarem-se como infractores confessos. Neste último caso, o Governador pode não prescindir do seu direito de recorrer judicialmente determinado que estejam os infractores. De resto, em ambientes de bajulação como são o do exercício de cargos públicos, existem conselheiros suficientes para engendrarem ardis desta natureza, levando a que pessoas imbuídas de comportamentos infantis – como a maioria dos “graxistas” que não faltam em manifestações do género – caiam em tamanhas façanhas arcando com as correspondentes consequências jurídicas ao invés de obterem os benefícios imaginados ou mesmo prometidos.
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