O PROBLEMA DO DEVER DE OBEDIÊNCIA DO TRABALHADOR
Albano Pedro
(Texto publicado no Semanário Angolense)
Há despedimentos de trabalhadores que acontecem por razões bizarras: O trabalhador com funções de motorista da empresa obrigado a fazer trabalhos de jardinagem na casa do gestor da empresa recusa a tarefa por escapar grosseiramente da sua esfera de actividades estipuladas em contrato e é despedido ou a promoção de processo disciplinar contra trabalhadores tidos como desobedientes que se recusaram a oferecer os seus esforços para trabalhos domésticos em casa de pessoas recomendadas pelo gestor. Convencido de que o trabalhador desobediente deve ser descartado, o empregador promove então um acordo de rescisão de contrato ou um processo disciplinar com vista ao despedimento fundado em causas “inventadas” muitas vezes mediante conselhos de consultores jurídicos. O trabalhador vê o contrato de trabalho a cessar ou se vê despedido consciente de que a causa é a desobediência registada pelo empregador. Essas razões “bizarras” levam a reflectir a esfera de actividades naturais do trabalhador permitindo estabelecer os marcos do dever de obediência do trabalhador à luz da Lei Geral do Trabalho (LGT).
Os deveres do trabalhador vêem genericamente previstos na LGT (art.º 46º) determinando entre os mesmos o dever de respeito e lealdade para com o empregador, dever de assiduidade e pontualidade, entre outros. Porém, as obrigações inerentes ao trabalho, são especificamente estabelecidas no contrato de trabalho e no regulamento interno da organização empresarial e estes determinam o dever de obediência a volta das tarefas concretas a que o trabalhador se encontra vinculado. Saber se o trabalhador que não obedece a uma ordem não prevista no seu leque de actividades regulares deve ser punido é completamente dispensado pela LGT. Esta determina que o trabalhador deve obediência ao empregador em relação as actividades para as quais foi contratado. Não acontece por acaso. O trabalhador e o empregador são assistidos pelos princípios da liberdade contratual, da igualdade das partes entre outros derivados da autonomia da vontade, i.é, durante o contrato as partes negoceiam as cláusulas contratuais e acordam os termos do contrato por oposição da assinatura no respectivo contrato quando não seja celebrado verbalmente (nos termos em que a Lei admite). Desde logo, o trabalhador só executa as tarefas que derivarem das suas obrigações funcionais determinadas previamente. Não faz sentido o cumprimento de tarefas não vinculadas como acontece nos exemplos acima mencionados.
A LGT dispõe que o trabalhador tem o direito de reclamar sobre quaisquer violações dos seus direitos estabelecidos por Lei e acordados pelas partes (art.º 45º alínea i). O que pressupõe a necessidade do trabalhador estar vigilante quanto as suas obrigações naturais. Há situações que a tarefa mandada executar está na esfera das competências do trabalhador, todavia a sua realização importa uma conduta contra Lei ou contra a ordem pública. Por exemplo: o guarda das instalações da empresa é orientado a encerrar as portas aos trabalhadores grevistas que pretendem contactar o empregador numa situação que este deu o seu acordo com o líder da greve para este fim; o tesoureiro que é orientado a não pagar o salário do trabalhador a quem o empregador quer punir sem qualquer processo disciplinar ou o empregador que solicita um parecer negativo sobre o trabalhador em regime de estágio ao seu superior hierárquico para obter fundamentos para fazer cessar o vínculo contratual, etc. Qual deve ser a atitude do trabalhador? Desde logo, este deve avisar ao empregador das consequências que acarretam tais orientações e esperar pela reacção deste. Se o empregador insistir na ordem, não restam dúvidas que as consequências de tais actos se transferem para esfera jurídica do empregador sem quaisquer perigos para o trabalhador, salvo nos casos em que a conduta configurar crime e o trabalhador seja tido como cúmplice ou outra sorte de co-autor.
Acontecem situações em que o volume de actividades aumenta e diversifica ou inesperadamente ou por razões de flutuação positiva do mercado, o empregador pode não admitir novos trabalhadores por prever a sazonalidade da situação. Neste caso o empregador mobilizará a força de trabalho disponível para a situação actual negociando com os trabalhadores sobre o acréscimo das tarefas e, obviamente, proceder ao ajustamento da remuneração. Pode ainda acontecer que pelas mesmas razões o empregador aumenta somente a carga horária dos trabalhadores. Num e noutro caso, os trabalhadores são livres de admitirem o novo regime laboral imposto pelas circunstâncias, denunciando as correspondentes violações da relação jurídico-laboral em caso de imposição. Se bem que em casos de aumento da carga horária o que é comum é o trabalhador exigir o pagamento das horas extraordinárias ao seu horário normal de trabalho, como de resto recomenda a própria LGT observados certos limites.
Nos casos em que a tarefa escapa mesmo da competência do trabalhador, este terá de adoptar uma das duas atitudes: ou realiza a tarefa e depois reclama dela ou não executa pura e simplesmente a tarefa justificando a conduta adoptada ao empregador. Este é o caso que leva aos despedimentos apontados em cima. Mas no caso do trabalhador que obedece a ordem injusta a reclamação deve conter a chamada de atenção ao empregador sobre como a tarefa escapou da sua obrigação fundamentando com as bases normativas do contrato e da Lei se necessário. O empregador pode compensar os esforços do trabalhador ou tomar qualquer outra atitude, porém o registo da reclamação será um elemento de ponderação para futuras ordens levando-o a inibir-se de as orientar. É um exercício pedagógico entre o trabalhador e o empregador que leva certamente ao aperfeiçoamento da relação jurídico-laboral no sentido de equilibrar os interesses das partes. É claro que o trabalhador que demonstra carecer do emprego não adopta nenhuma destas condutas preferindo antes executar as tarefas injustamente orientadas sem as comentar se quer com o empregador. Porque é sabido que na relação jurídico-laboral o trabalhador é a parte fraca (o tipo hipossuficiente), daqui resulta que o temor referencial que coloca o trabalhador em relação de subserviência para com o empregador dificulta, na maior parte das vezes, a capacidade de resistência daquele em relação aos abusos do poder de autoridade deste.
Contudo, o trabalhador pode sempre denunciar tais irregularidades aos serviços competentes de Inspecção Geral do Trabalho, mesmo como anónimo ou por intermédio de terceiros, quando a comissão sindical da empresa ou sindicato em que os trabalhadores estejam vinculados não intervenham. De todo modo, a função da comissão sindical da empresa, quando existe, joga um papel fundamental no processo de inibição das ordens injustas do empregador. A solidariedade que caracteriza os organismos sindicais pode suprir a falta de coragem do trabalhador em enfrentar o empregador quando estejam em causa situações desta e doutra natureza. A comissão sindical assume a responsabilidade de enfrentar o empregador pelo trabalhador.
No mercado das relações humanas e sociais, a expressão da palavra e a exposição do pensamento são as mercadorias mais preciosas!
sexta-feira, 26 de novembro de 2010
A LÓGICA DOS CONTRATOS PRIVADOS
Excepções, desvios e vicissitudes – O caso de Yola Araújo Vs Comité Miss Huambo
Albano Pedro
(Texto publicado no Semanário Angolense)
Veio a público – por este semanário que prometeu uma análise jurídica a propósito da qual debitamos – o caso que opõe Yola Araújo, famosa e querida cantora angolana e o Comité Miss Huambo sobre a “quebra” do contrato em que se obrigava a cantar num evento público organizado por esta entidade colectiva. A análise jurídica vem na base da seguinte percepção: O conflito nasce porque por um lado a organização do evento alega que a cantora deve devolver o dinheiro adiantado por virtude do acordo havido e por outro lado a cantora se vê no direito de reter o dinheiro já recebido (metade do valor global do contrato) com argumentos de que a falha no cumprimento do contrato se deve àquela organização. Não há dúvidas de que se está perante um conflito que pede esclarecimentos sobre as relações contratuais e suas consequências entre as partes. A ideia de contrato vem desde os latinos (contra actum) para elucidar a fusão de actos de vontade com proveniências subjectivas contrárias. Um acto (proposta) vai ao encontro de um outro (aceitação) e se fundem num único: contrato. Vindo a sua formalização (verbal ou escrita) seguido de outros elementos de validade jurídica conforme tipos ou espécies legais. A classificação técnica dos contratos é variável. Uma delas, procura determinar os sujeitos que neles se vinculam. Assim, teremos contratos unilaterais (em que apenas uma das pessoas se vincula – caso exemplificativo do testamento, e a maioria dos contratos mortis causa, em que apenas o interessado promete (ou prometeu, se de cujus ou falecido) dispor de certos bens ao sucessível (testamentário) independentemente da vontade ou aceitação deste), bilaterais (envolvendo duas partes contrárias – casos mais frequentes: compra e venda de bens, doação (oferta), mutuo, etc.) ou multilaterais (envolvendo mais de duas pessoas – os exemplos vão desde as sociedades comerciais – exemplos das sociedades anónimas com número igual ou superior a cinco sócios, entre vários). Este último tipo de contrato também é frequente nas relações públicas internacionais quando os Estados subscrevem tratados multilaterais ou fundam organizações internacionais (OUA, SADC, ONU, etc.).
A Lei prefere, na maior parte das vezes, que os contratos sejam reduzidos por escrito como requisito de validade e não raro acresce-lhes uma outra exigência: a escritura pública, i.e., que sejam também publicamente conhecidos de acordo com as espécies de bens ou valores que acautelam. No Direito Público (aí onde intervêm o Estado e seus órgãos com poderes privilegiados – jus imperii) a possibilidade dos contratos verbais é rara devido ao Princípio da Legalidade que vincula tais entidades. Embora quando se fale em áreas cruzadas do Direito (onde normas de natureza pública coexistem com normas essencialmente privadas) surgem exemplos interessantes: O caso do contrato de trabalho por tempo indeterminado admissível em legislações laborais com a forma verbal ou o casamento no Direito de Família (embora muitos não admitam esta relação social como sendo contratual), entre poucos outros. Porém, nas relações fundamental e genuinamente privadas a existência de contratos verbais é mais frequente em homenagem ao princípio da autonomia da vontade das partes. Em boa verdade, não haveria necessidade de contratos reduzidos a escrito se as pessoas fossem capazes de honrar os seus compromissos tal como prometem fazê-lo quando extremamente necessitados. Já lá vão os tempos em que um fio de cabelo era tido como elemento de penhora sobre as promessas contratuais verbais. Tempos de um cavalheirismo honroso pós-medieval e renascentista imbuído de valores morais e éticos elevados, donde a prevalência da ideia de pacta sunt servanda (os contratos devem serem cumpridos) como fórmula ética já viabilizada desde os romanos clássicos. A flutuação da vontade humana bem como a complexidade das relações sociais recomendam modernamente que os acordos entre os homens sejam reduzidos por escrito, quer por razões de segurança material (verba volant, scripta manent) quer por razões de provas. Sobretudo depois de serem admitidos no convívio social um tipo de pessoa sem vontade própria: as pessoas jurídicas (entidades colectivas, etc.). Como à um Direito cabe sempre uma justiça (princípio da composição judicial necessária dos litígios sociais) os contratos verbais não serão pura e simplesmente ignorados. Assim, nasce uma diferença entre os contratos verbais e escritos. Enquanto estes se regem pelas cláusulas que as partes estabelecem voluntariamente (no calor da emoção do negócio) sendo subsidiariamente apoiadas pela Lei, os contratos verbais são defendidos directamente pelas leis correspondentes (Leis civis – Obrigações em especial, etc.) vindo daqui um regime de protecção mais rígido e pouco disponível à vontade das partes.
O caso Yola Araújo Vs Comité Miss Huambo, visto no prisma dos interesses da cantora pode configurar um incumprimento excepcionalmente admitido por Lei na base de vários institutos jurídicos, dentre os quais o da Excepção do Não Cumprimento da Obrigação (Exceptio inadimpleti contractus - art.º 429.º - Código Civil – doravante CC) ou da perda do sinal em virtude da frustração de um contrato-promessa (art.º 410.º - CC) estabelecido entre as partes. A excepção do não cumprimento da obrigação ocorre naqueles casos em que um indivíduo que se propôs a adquirir a viatura de outrem vem no dia combinado sem o dinheiro completo para a realização do contrato de compra e venda. O vendedor neste caso tem o direito de recusar a venda da viatura exercendo uma prerrogativa legal (excepção de não cumprimento) sem a qual seria igualmente tido como incumpridor. Em homenagem ao princípio da boa-fé (art.º227.º - CC), que torna rígida a vinculatividade dos contratos, qualquer parte faltosa é obrigada a reparar os danos que venha a causar com a sua conduta. Contudo, a Lei protege o vendedor do incumprimento doloso ou negligente do comprador, i.e., “se não dás não dou” – excepção. Uma vez que a regra ética do cumprimento dos contratos sinalagmáticos (i.e., com nexo de correspectividade) é: do ut des (dou para que dês). A excepção do não cumprimento da obrigação ocorre em geral naquelas situações em que o contrato está na eminência de ser celebrado faltando apenas o cumprimento acessório de certos actos. As partes acertaram o dinheiro e os pormenores do contrato porém falta a prática dos actos materiais para que se assine definitivamente o contrato como mostra de cumprimento cabal das obrigações que os envolve: Basta a recusa daquele que é protegido pela cláusula de excepção e o contrato já não acontece. É diferente da Reserva de Propriedade (pactum reservatti dominii – art.º 409.º – CC) em que o problema está na transferência da titularidade da coisa objecto do contrato: exemplo, o vendedor da viatura não transfere o título de compra e venda em seu nome para o comprador enquanto este não pagar os últimos tostões conforme acordado em contrato já celebrado. Pode, até exercer a posse e utilizar, mas a viatura está ainda em nome do vendedor. Esta excepção é hoje muito frequente nos créditos automóveis cedidos pelos bancos comerciais em que o comprador (devedor bancário) vê a viatura comprada em nome do banco até completar o pagamento do respectivo crédito, embora a utilize em proveito próprio sem qualquer ingerência do banco. Falaríamos também de uma outra figura vizinha: o Direito de Retenção (art.º 754.º - CC) se não tivéssemos receio de cansar o leitor. Recapitulando: na excepção do não cumprimento da obrigação a parte protegida pela excepção não pratica um determinado acto (recusa a venda, por exemplo) ou não entrega determinada coisa, enquanto que na reserva da propriedade a parte protegida que já aceitou a venda não passa a titularidade da viatura em nome do comprador, embora este já a tenha efectivamente e a utilize em proveito próprio. São diferentes no tipo e iguais na finalidade. Porém, acontece que nem sempre o contrato pode ser estabelecido antecipadamente. Por exemplo, quem quer vender e ainda não tem os documentos da viatura ou o comprador que ainda não tem o dinheiro completo. As partes celebram então um contrato-promessa (em que prometem celebrar o contrato definitivo tão logo as condições em falta estejam reunidas). No contrato promessa com sinal (que está muito próximo do caso) em que uma das partes avança um montante pecuniário ou financeiro, embora a título de pagamento antecipado – total ou parcial, a Lei estabelece que aquele que receber o sinal (montante adiantado) pode retê-lo a título de indemnização se a causa do incumprimento da obrigação for imputável àquele que constituiu o sinal – i.e., se for por culpa daquele que deu de avanço o montante prometido. Porém, se o incumprimento for devido a quem recebeu o sinal, este tem a obrigação de devolver (a Lei fala em restituição) o montante em dobro (art.º 442.º – CC). Não interessa à Lei que Yola Araújo tenha viajado de carro para Huambo (com os riscos que bem conhecemos) e tenha feito gastos pessoais e extraordinários. Se houveram riscos e custos adicionais estes podem ser exigidos complementarmente à parte incumpridora mediante competente processo judicial, em caso de resistência ex-voluntate. De todo o modo, a Lei é clara. Há sinal e as partes regem-se pelas regras por ele estabelecidas. Há o problema de saber se este tipo de contrato pode ser verbal, visto que a Lei estabelece certos tipos de contrato-promessa como sendo obrigatoriamente escritos. Na melhor hermenêutica jurídica inscreve-se a ideia de que quando o contrato definitivo (contrato a que refere a promessa) é exigível documento autêntico ou particular, a redução escrita da promessa é obrigatória. Pelo que, por argumento ad maius (maioria de razão) se entende que para os contratos de prestação de serviços a redução por escrito não é indispensável e como tal a respectiva promessa pode ser verbal. O contrato promessa coloca ainda o problema da tutela jurídica (garantia) em caso de incumprimento. Não tendo sido reduzido a escrito, a garantia idónea seria a execução específica (art.º 830.º - CC) como regime-regra. Contudo, há um montante (2.000,00 USD) adiantado pela organização do Comité Miss Huambo que a Lei entende como sendo sinal. Neste caso, afasta-se a garantia da execução específica em favor da regra do sinal que estabelece a forma de indemnização.
Albano Pedro
(Texto publicado no Semanário Angolense)
Veio a público – por este semanário que prometeu uma análise jurídica a propósito da qual debitamos – o caso que opõe Yola Araújo, famosa e querida cantora angolana e o Comité Miss Huambo sobre a “quebra” do contrato em que se obrigava a cantar num evento público organizado por esta entidade colectiva. A análise jurídica vem na base da seguinte percepção: O conflito nasce porque por um lado a organização do evento alega que a cantora deve devolver o dinheiro adiantado por virtude do acordo havido e por outro lado a cantora se vê no direito de reter o dinheiro já recebido (metade do valor global do contrato) com argumentos de que a falha no cumprimento do contrato se deve àquela organização. Não há dúvidas de que se está perante um conflito que pede esclarecimentos sobre as relações contratuais e suas consequências entre as partes. A ideia de contrato vem desde os latinos (contra actum) para elucidar a fusão de actos de vontade com proveniências subjectivas contrárias. Um acto (proposta) vai ao encontro de um outro (aceitação) e se fundem num único: contrato. Vindo a sua formalização (verbal ou escrita) seguido de outros elementos de validade jurídica conforme tipos ou espécies legais. A classificação técnica dos contratos é variável. Uma delas, procura determinar os sujeitos que neles se vinculam. Assim, teremos contratos unilaterais (em que apenas uma das pessoas se vincula – caso exemplificativo do testamento, e a maioria dos contratos mortis causa, em que apenas o interessado promete (ou prometeu, se de cujus ou falecido) dispor de certos bens ao sucessível (testamentário) independentemente da vontade ou aceitação deste), bilaterais (envolvendo duas partes contrárias – casos mais frequentes: compra e venda de bens, doação (oferta), mutuo, etc.) ou multilaterais (envolvendo mais de duas pessoas – os exemplos vão desde as sociedades comerciais – exemplos das sociedades anónimas com número igual ou superior a cinco sócios, entre vários). Este último tipo de contrato também é frequente nas relações públicas internacionais quando os Estados subscrevem tratados multilaterais ou fundam organizações internacionais (OUA, SADC, ONU, etc.).
A Lei prefere, na maior parte das vezes, que os contratos sejam reduzidos por escrito como requisito de validade e não raro acresce-lhes uma outra exigência: a escritura pública, i.e., que sejam também publicamente conhecidos de acordo com as espécies de bens ou valores que acautelam. No Direito Público (aí onde intervêm o Estado e seus órgãos com poderes privilegiados – jus imperii) a possibilidade dos contratos verbais é rara devido ao Princípio da Legalidade que vincula tais entidades. Embora quando se fale em áreas cruzadas do Direito (onde normas de natureza pública coexistem com normas essencialmente privadas) surgem exemplos interessantes: O caso do contrato de trabalho por tempo indeterminado admissível em legislações laborais com a forma verbal ou o casamento no Direito de Família (embora muitos não admitam esta relação social como sendo contratual), entre poucos outros. Porém, nas relações fundamental e genuinamente privadas a existência de contratos verbais é mais frequente em homenagem ao princípio da autonomia da vontade das partes. Em boa verdade, não haveria necessidade de contratos reduzidos a escrito se as pessoas fossem capazes de honrar os seus compromissos tal como prometem fazê-lo quando extremamente necessitados. Já lá vão os tempos em que um fio de cabelo era tido como elemento de penhora sobre as promessas contratuais verbais. Tempos de um cavalheirismo honroso pós-medieval e renascentista imbuído de valores morais e éticos elevados, donde a prevalência da ideia de pacta sunt servanda (os contratos devem serem cumpridos) como fórmula ética já viabilizada desde os romanos clássicos. A flutuação da vontade humana bem como a complexidade das relações sociais recomendam modernamente que os acordos entre os homens sejam reduzidos por escrito, quer por razões de segurança material (verba volant, scripta manent) quer por razões de provas. Sobretudo depois de serem admitidos no convívio social um tipo de pessoa sem vontade própria: as pessoas jurídicas (entidades colectivas, etc.). Como à um Direito cabe sempre uma justiça (princípio da composição judicial necessária dos litígios sociais) os contratos verbais não serão pura e simplesmente ignorados. Assim, nasce uma diferença entre os contratos verbais e escritos. Enquanto estes se regem pelas cláusulas que as partes estabelecem voluntariamente (no calor da emoção do negócio) sendo subsidiariamente apoiadas pela Lei, os contratos verbais são defendidos directamente pelas leis correspondentes (Leis civis – Obrigações em especial, etc.) vindo daqui um regime de protecção mais rígido e pouco disponível à vontade das partes.
O caso Yola Araújo Vs Comité Miss Huambo, visto no prisma dos interesses da cantora pode configurar um incumprimento excepcionalmente admitido por Lei na base de vários institutos jurídicos, dentre os quais o da Excepção do Não Cumprimento da Obrigação (Exceptio inadimpleti contractus - art.º 429.º - Código Civil – doravante CC) ou da perda do sinal em virtude da frustração de um contrato-promessa (art.º 410.º - CC) estabelecido entre as partes. A excepção do não cumprimento da obrigação ocorre naqueles casos em que um indivíduo que se propôs a adquirir a viatura de outrem vem no dia combinado sem o dinheiro completo para a realização do contrato de compra e venda. O vendedor neste caso tem o direito de recusar a venda da viatura exercendo uma prerrogativa legal (excepção de não cumprimento) sem a qual seria igualmente tido como incumpridor. Em homenagem ao princípio da boa-fé (art.º227.º - CC), que torna rígida a vinculatividade dos contratos, qualquer parte faltosa é obrigada a reparar os danos que venha a causar com a sua conduta. Contudo, a Lei protege o vendedor do incumprimento doloso ou negligente do comprador, i.e., “se não dás não dou” – excepção. Uma vez que a regra ética do cumprimento dos contratos sinalagmáticos (i.e., com nexo de correspectividade) é: do ut des (dou para que dês). A excepção do não cumprimento da obrigação ocorre em geral naquelas situações em que o contrato está na eminência de ser celebrado faltando apenas o cumprimento acessório de certos actos. As partes acertaram o dinheiro e os pormenores do contrato porém falta a prática dos actos materiais para que se assine definitivamente o contrato como mostra de cumprimento cabal das obrigações que os envolve: Basta a recusa daquele que é protegido pela cláusula de excepção e o contrato já não acontece. É diferente da Reserva de Propriedade (pactum reservatti dominii – art.º 409.º – CC) em que o problema está na transferência da titularidade da coisa objecto do contrato: exemplo, o vendedor da viatura não transfere o título de compra e venda em seu nome para o comprador enquanto este não pagar os últimos tostões conforme acordado em contrato já celebrado. Pode, até exercer a posse e utilizar, mas a viatura está ainda em nome do vendedor. Esta excepção é hoje muito frequente nos créditos automóveis cedidos pelos bancos comerciais em que o comprador (devedor bancário) vê a viatura comprada em nome do banco até completar o pagamento do respectivo crédito, embora a utilize em proveito próprio sem qualquer ingerência do banco. Falaríamos também de uma outra figura vizinha: o Direito de Retenção (art.º 754.º - CC) se não tivéssemos receio de cansar o leitor. Recapitulando: na excepção do não cumprimento da obrigação a parte protegida pela excepção não pratica um determinado acto (recusa a venda, por exemplo) ou não entrega determinada coisa, enquanto que na reserva da propriedade a parte protegida que já aceitou a venda não passa a titularidade da viatura em nome do comprador, embora este já a tenha efectivamente e a utilize em proveito próprio. São diferentes no tipo e iguais na finalidade. Porém, acontece que nem sempre o contrato pode ser estabelecido antecipadamente. Por exemplo, quem quer vender e ainda não tem os documentos da viatura ou o comprador que ainda não tem o dinheiro completo. As partes celebram então um contrato-promessa (em que prometem celebrar o contrato definitivo tão logo as condições em falta estejam reunidas). No contrato promessa com sinal (que está muito próximo do caso) em que uma das partes avança um montante pecuniário ou financeiro, embora a título de pagamento antecipado – total ou parcial, a Lei estabelece que aquele que receber o sinal (montante adiantado) pode retê-lo a título de indemnização se a causa do incumprimento da obrigação for imputável àquele que constituiu o sinal – i.e., se for por culpa daquele que deu de avanço o montante prometido. Porém, se o incumprimento for devido a quem recebeu o sinal, este tem a obrigação de devolver (a Lei fala em restituição) o montante em dobro (art.º 442.º – CC). Não interessa à Lei que Yola Araújo tenha viajado de carro para Huambo (com os riscos que bem conhecemos) e tenha feito gastos pessoais e extraordinários. Se houveram riscos e custos adicionais estes podem ser exigidos complementarmente à parte incumpridora mediante competente processo judicial, em caso de resistência ex-voluntate. De todo o modo, a Lei é clara. Há sinal e as partes regem-se pelas regras por ele estabelecidas. Há o problema de saber se este tipo de contrato pode ser verbal, visto que a Lei estabelece certos tipos de contrato-promessa como sendo obrigatoriamente escritos. Na melhor hermenêutica jurídica inscreve-se a ideia de que quando o contrato definitivo (contrato a que refere a promessa) é exigível documento autêntico ou particular, a redução escrita da promessa é obrigatória. Pelo que, por argumento ad maius (maioria de razão) se entende que para os contratos de prestação de serviços a redução por escrito não é indispensável e como tal a respectiva promessa pode ser verbal. O contrato promessa coloca ainda o problema da tutela jurídica (garantia) em caso de incumprimento. Não tendo sido reduzido a escrito, a garantia idónea seria a execução específica (art.º 830.º - CC) como regime-regra. Contudo, há um montante (2.000,00 USD) adiantado pela organização do Comité Miss Huambo que a Lei entende como sendo sinal. Neste caso, afasta-se a garantia da execução específica em favor da regra do sinal que estabelece a forma de indemnização.
CRIMES CONTRA A SEGURÂNÇA DO ESTADO
Da violência da Lei contra o Sistema Jurídico e Democrático Angolano
(Texto publicado no Semanário Angolense)
Albano Pedro
A Lei 7/78 de 26 de Maio (Lei dos Crimes Contra a Segurança do Estado – adiante LCCSE) é um instrumento legal de carácter repressivo legitimado pelo Estado angolano de opção centralista pro-comunista contra os efeitos da instabilidade política da época e das guerras sustentadas pelo ambiente da guerra fria em que o mundo mergulhou, após a 2ª Guerra Mundial. Igualmente reforçada pelo conturbado processo de independência em que os movimentos de libertação que terão negociado os acordos de Alvor mediado por Portugal, como potência colonizadora, em que ficou assumido o compromisso para a divisão do poder político entre as três principais forças políticas militarizadas (FNLA, MPLA e UNITA) para a composição do Governo de transição, enquanto projecto que acabou dissolvido pelas desconfianças e estratégias engendradas pelas várias potências ocidentais disputando a hegemonia sobre o novo país programado a nascer com a proclamação da independência de 1975. Tendo traído as expectativas dos movimentos políticos seus parceiros (FNLA e UNITA) que assim se viram forçados a mobilizar forças estrangeiras (zairenses e sul-africanos) para combater a tendência de exclusão política apoiada pelos russos e cubanos, para além de se ver sacudido por uma brutal perseguição política dos seus membros que culminou com o célebre massacre de 27 de Maio, o MPLA, auto-proclamado representante único do povo angolano, se vê na condição de vítima permanente de inimigos multilaterais. Como consequência, os angolanos vêem, nos anos que se seguem, os seus direitos fundamentais manifestamente restringidos com a introdução de instrumentos como a DISA (Polícia de feição política com fortes poderes repressivos), recolher obrigatório para todos os cidadãos a partir das primeiras horas da noite, viagens e passagens interprovinciais autorizadas mediante guias de marchas, serviços militar obrigatório forçado por recrutamentos discricionários em que as idades mínima ou mesmo máxima nem sempre eram respeitadas entre outros mecanismos compulsivos e repressivos da época para impor uma vigilância política extrema.
É neste ambiente de inimigos internos e externos, identificados ou não, que nasce a famigerada LCCSE. Não estranha que a mesma comporte matérias que reflectem um clima de insegurança generalizado vivido pelo MPLA como partido proclamador da independência da nação. Não é por acaso que é introduzido o tristemente célebre art.º 26.º procurando interpretar quaisquer actos vistos na conveniência da extinta DISA como atentadores contra a Segurança do Estado e na base delas centenas de milhares de vidas tenham desaparecido naqueles tenebrosos momentos da vida política nacional. A LCCSE vai dividir as principais matérias de segurança do Estado em Segurança Externa (art.º 1º e SS) e Segurança Interna (art.º 16º e SS) e dispõem a partir destas um conjunto de dispositivos normativos envolvendo molduras penais com fortes penalidades com vista a inspirar o terror entre os “inimigos do Estado” e motivar a sua captura ou denúncia pelos cidadãos bem como a sua vigilância pela CPPA, pelos múltiplos organismos de segurança e vigilância criados desde então como as BPV (Brigadas Populares de Vigilância) ou ODP (Organização de Defesa Popular) e mesmo pelas organizações de massas do partido como a OPA (Organização do Pioneiro Agostinho Neto), JMPLA ou OMA. É o MPLA-Povo mobilizado para a protecção do Estado pro-comunista. Há então normas incriminadoras que confundem as preocupações do Estado com as do partido único ao ponto de confundir as matérias estritamente ligadas à segurança do Estado por um lado e são estatuídas condutas que vão para além da necessidade de segurança do Estado por outro lado. O que leva o cidadão a ter sérias dificuldades em compreender o verdadeiro conceito de segurança de Estado e as respectivas matérias jurídicas deste âmbito. Dentre estas normas são de destacar a incriminalização de condutas como o arrancamento e supressão de sinais fronteiriços (art.º11º) – quando é certo que esta conduta em nada implica a alteração do espaço territorial oficial do Estado; ofensa à honra do Chefe de Estado ou membros de governos estrangeiros (art.º12º) – Quando a tutela jurídica dos direitos de personalidade noutros diplomas legais bem cuida destes aspectos; o conceito de traição à pátria leva em conta a prática de uma conduta praticamente impossível: o da entrega do território angolano a um país estrangeiro (art.º 1º, n.º 1); a desnecessária relevância criminal para efeitos de segurança da difamação do Estado angolano (art.º 8.º), entre outros. Não há dúvidas que o aludido art.º 26º seja dentre todos, o mais perigoso, por permitir a subsunção legal de quaisquer factos tidos como relevantes para as autoridades oficiais como sendo crime contra a Segurança do Estado. Pois, estabelece o corpo da norma que “Todo e qualquer acto, não previsto na lei, que ponha ou possa pôr em perigo a segurança do Estado, será punido…”. Outros dispositivos normativos tornam mais evidente a inadequação da LCCSE aos momentos actuais: casos de incriminação do Lock-out e incitamento à greve (art.º 23º); da instigação à desobediência colectiva (art.º 24º); a definição duvidosa do crime de rebelião (art.º 19º), etc. Está claro que a LCCSE põe em causa o conceito de Estado e a segurança que lhe é inerente procurando acautelar no fundamental os perigos divisados no interior do partido que lhe sustentava. Uma das confusões desta Lei é a preocupação sobranceira de acautelar a Independência em detrimento da própria soberania do Estado, quando é certo que a independência reconhecida internacionalmente é um título jurídico-político irreversível e como tal insusceptível de ser ameaçado. É a soberania que resulta da independência, como elemento frágil por sujeito a flutuações políticas, que carece de protecção e tutela jurídica desta natureza. Confusão que resulta das preocupações partidárias e não políticas da época. Já que à luz dos acordos de Alvor, o MPLA receava novas independências que podiam ser reivindicadas ou pela FNLA ou pela UNITA.
O Estado foi durante muitas escolas políticas entendido como o conjunto de três elementos essenciais, nomeadamente o território, o povo e o poder. Modernamente as correntes mais convincentes entendem o Estado como sendo o substracto humano: o povo. O território e o poder são meros sustentáculos ou condições materiais de uma realidade fundamental assente no substracto humano. Na verdade as leis constitucionais têm como objectivo último proteger os mais sensíveis e profundos interesses comuns dos cidadãos em que se incluem o próprio território e o poder que exerce a soberania originalmente detida pelo povo. Assim sendo, o conceito de segurança de Estado deve evoluir no mesmo sentido. Neste conceito a integridade física do Chefe de Estado pode ser considerado no âmbito da tutela da segurança do Estado como condição de integridade do poder soberano conducentes dos interesses do povo, mas nunca a integridade moral (ofensa à honra, difamação, etc.). Não diz respeito a segurança do Estado que o Presidente da República seja insultado ou injuriado porque tais actos não põem em causa e nem condicionam o exercício do poder político confiado pelo povo. Da mesma forma é discutível a relevância absolutamente política da segurança do Estado ou seja pensar que segurança do Estado é a mera conservação dos órgãos de soberania e do território administrado em detrimento de outros interesses igualmente importantes e profundos do povo resulta numa deturpação do conceito de Estado e da segurança que lhe subjaz. Sendo o povo o elemento central do Estado ao qual diz respeito as matérias relativas a segurança do Estado é de todo útil considerar matéria de segurança de Estado tudo o que coloca em perigo a existência harmoniosa da sociedade e a sobrevivência do povo. Neste prisma a existência injustificada da pobreza extrema e da fome e miséria em grande escala, a ocorrência de catástrofes naturais por omissão do Estado ou acidentes de grandes efeitos sociais devido a condutas de certos agentes públicos e mesmo até de certas endemias ou pandemias causadores de graves prejuízos sociais porém susceptíveis de prevenção, a acumulação de dívidas públicas para além da capacidade do Estado em cumprir com os respectivos serviços de dívidas onerando em consequências as gerações futuras, o incumprimento negligente ou doloso de programas executivos, resultantes de promessas eleitorais, em prol do desenvolvimento social e económico dos cidadãos, a nomeação de juízes como factor de ingerência no poder judicial, entre outras matérias, podem ser considerados factos relevantes para a Segurança do Estado.
É claro que esta variante da segurança do Estado coloca os titulares dos órgãos de soberania e demais decisores do Estado e órgãos afins nos mais variados escalões hierárquico no centro da autoria das condutas juridicamente relevantes para a segurança do Estado. O que não foge às tendências das constituições modernas em que, por exemplo, o crime de lesa-pátria (alta traição) é fundamentalmente atribuído ao Presidente da República ou Chefe de Estado e/ou do Executivo (conforme caso). E faz sentido. Em boa verdade, a segurança do Estado só pode ser colocada em causa por quem tem a responsabilidade de o administrar (titulares de órgãos de soberania) e não o destinatário desta administração (povo). E o povo, pelo contrário, deve garantir a protecção dos seus interesses contra os actos de gestão dos seus mandatários prevenindo dentre os mesmos aqueles que põem em causa a segurança de todos os cidadãos, i.é, a segurança do Estado.
A consideração de base é, nesta reflexão reformista das leis de segurança do Estado, a gestão danosa do Estado que deve acarretar as mais graves consequências jurídicas aos seus autores à semelhança dos crimes mais relevantes contra a segurança do Estado. Vindo disto que, os roubos ou furtos (conforme classificação oportuna) operados em instituições públicas envolvendo somas avultadas (i.é, a partir de certos montantes pecuniários) que põem em causa a estabilidade financeira das instituições públicas devem ser considerados como sendo condutas sancionáveis no âmbito das matérias tuteladas pelas leis de segurança do Estado. Aqui estaríamos a transplantar na legislação sobre a segurança do Estado uma feição económica e social (sobrevivência do povo) que se junta a feição política (conservação dos órgãos de soberania e da integridade territorial), para além de introduzir a tutela civil em reforço para a garantia efectiva dos interesses protegidos pela Lei. Estaríamos perante uma nova Lei (Lei Sobre a Segurança do Estado e não mais Lei dos Crimes Contra a Segurança do Estado) prevendo a responsabilidade civil ao lado da responsabilidade criminal em matéria de segurança do Estado, levando deste modo a sua conformação com as opções políticas, económicas e sociais fundamentais admitidas na III República.
(Texto publicado no Semanário Angolense)
Albano Pedro
A Lei 7/78 de 26 de Maio (Lei dos Crimes Contra a Segurança do Estado – adiante LCCSE) é um instrumento legal de carácter repressivo legitimado pelo Estado angolano de opção centralista pro-comunista contra os efeitos da instabilidade política da época e das guerras sustentadas pelo ambiente da guerra fria em que o mundo mergulhou, após a 2ª Guerra Mundial. Igualmente reforçada pelo conturbado processo de independência em que os movimentos de libertação que terão negociado os acordos de Alvor mediado por Portugal, como potência colonizadora, em que ficou assumido o compromisso para a divisão do poder político entre as três principais forças políticas militarizadas (FNLA, MPLA e UNITA) para a composição do Governo de transição, enquanto projecto que acabou dissolvido pelas desconfianças e estratégias engendradas pelas várias potências ocidentais disputando a hegemonia sobre o novo país programado a nascer com a proclamação da independência de 1975. Tendo traído as expectativas dos movimentos políticos seus parceiros (FNLA e UNITA) que assim se viram forçados a mobilizar forças estrangeiras (zairenses e sul-africanos) para combater a tendência de exclusão política apoiada pelos russos e cubanos, para além de se ver sacudido por uma brutal perseguição política dos seus membros que culminou com o célebre massacre de 27 de Maio, o MPLA, auto-proclamado representante único do povo angolano, se vê na condição de vítima permanente de inimigos multilaterais. Como consequência, os angolanos vêem, nos anos que se seguem, os seus direitos fundamentais manifestamente restringidos com a introdução de instrumentos como a DISA (Polícia de feição política com fortes poderes repressivos), recolher obrigatório para todos os cidadãos a partir das primeiras horas da noite, viagens e passagens interprovinciais autorizadas mediante guias de marchas, serviços militar obrigatório forçado por recrutamentos discricionários em que as idades mínima ou mesmo máxima nem sempre eram respeitadas entre outros mecanismos compulsivos e repressivos da época para impor uma vigilância política extrema.
É neste ambiente de inimigos internos e externos, identificados ou não, que nasce a famigerada LCCSE. Não estranha que a mesma comporte matérias que reflectem um clima de insegurança generalizado vivido pelo MPLA como partido proclamador da independência da nação. Não é por acaso que é introduzido o tristemente célebre art.º 26.º procurando interpretar quaisquer actos vistos na conveniência da extinta DISA como atentadores contra a Segurança do Estado e na base delas centenas de milhares de vidas tenham desaparecido naqueles tenebrosos momentos da vida política nacional. A LCCSE vai dividir as principais matérias de segurança do Estado em Segurança Externa (art.º 1º e SS) e Segurança Interna (art.º 16º e SS) e dispõem a partir destas um conjunto de dispositivos normativos envolvendo molduras penais com fortes penalidades com vista a inspirar o terror entre os “inimigos do Estado” e motivar a sua captura ou denúncia pelos cidadãos bem como a sua vigilância pela CPPA, pelos múltiplos organismos de segurança e vigilância criados desde então como as BPV (Brigadas Populares de Vigilância) ou ODP (Organização de Defesa Popular) e mesmo pelas organizações de massas do partido como a OPA (Organização do Pioneiro Agostinho Neto), JMPLA ou OMA. É o MPLA-Povo mobilizado para a protecção do Estado pro-comunista. Há então normas incriminadoras que confundem as preocupações do Estado com as do partido único ao ponto de confundir as matérias estritamente ligadas à segurança do Estado por um lado e são estatuídas condutas que vão para além da necessidade de segurança do Estado por outro lado. O que leva o cidadão a ter sérias dificuldades em compreender o verdadeiro conceito de segurança de Estado e as respectivas matérias jurídicas deste âmbito. Dentre estas normas são de destacar a incriminalização de condutas como o arrancamento e supressão de sinais fronteiriços (art.º11º) – quando é certo que esta conduta em nada implica a alteração do espaço territorial oficial do Estado; ofensa à honra do Chefe de Estado ou membros de governos estrangeiros (art.º12º) – Quando a tutela jurídica dos direitos de personalidade noutros diplomas legais bem cuida destes aspectos; o conceito de traição à pátria leva em conta a prática de uma conduta praticamente impossível: o da entrega do território angolano a um país estrangeiro (art.º 1º, n.º 1); a desnecessária relevância criminal para efeitos de segurança da difamação do Estado angolano (art.º 8.º), entre outros. Não há dúvidas que o aludido art.º 26º seja dentre todos, o mais perigoso, por permitir a subsunção legal de quaisquer factos tidos como relevantes para as autoridades oficiais como sendo crime contra a Segurança do Estado. Pois, estabelece o corpo da norma que “Todo e qualquer acto, não previsto na lei, que ponha ou possa pôr em perigo a segurança do Estado, será punido…”. Outros dispositivos normativos tornam mais evidente a inadequação da LCCSE aos momentos actuais: casos de incriminação do Lock-out e incitamento à greve (art.º 23º); da instigação à desobediência colectiva (art.º 24º); a definição duvidosa do crime de rebelião (art.º 19º), etc. Está claro que a LCCSE põe em causa o conceito de Estado e a segurança que lhe é inerente procurando acautelar no fundamental os perigos divisados no interior do partido que lhe sustentava. Uma das confusões desta Lei é a preocupação sobranceira de acautelar a Independência em detrimento da própria soberania do Estado, quando é certo que a independência reconhecida internacionalmente é um título jurídico-político irreversível e como tal insusceptível de ser ameaçado. É a soberania que resulta da independência, como elemento frágil por sujeito a flutuações políticas, que carece de protecção e tutela jurídica desta natureza. Confusão que resulta das preocupações partidárias e não políticas da época. Já que à luz dos acordos de Alvor, o MPLA receava novas independências que podiam ser reivindicadas ou pela FNLA ou pela UNITA.
O Estado foi durante muitas escolas políticas entendido como o conjunto de três elementos essenciais, nomeadamente o território, o povo e o poder. Modernamente as correntes mais convincentes entendem o Estado como sendo o substracto humano: o povo. O território e o poder são meros sustentáculos ou condições materiais de uma realidade fundamental assente no substracto humano. Na verdade as leis constitucionais têm como objectivo último proteger os mais sensíveis e profundos interesses comuns dos cidadãos em que se incluem o próprio território e o poder que exerce a soberania originalmente detida pelo povo. Assim sendo, o conceito de segurança de Estado deve evoluir no mesmo sentido. Neste conceito a integridade física do Chefe de Estado pode ser considerado no âmbito da tutela da segurança do Estado como condição de integridade do poder soberano conducentes dos interesses do povo, mas nunca a integridade moral (ofensa à honra, difamação, etc.). Não diz respeito a segurança do Estado que o Presidente da República seja insultado ou injuriado porque tais actos não põem em causa e nem condicionam o exercício do poder político confiado pelo povo. Da mesma forma é discutível a relevância absolutamente política da segurança do Estado ou seja pensar que segurança do Estado é a mera conservação dos órgãos de soberania e do território administrado em detrimento de outros interesses igualmente importantes e profundos do povo resulta numa deturpação do conceito de Estado e da segurança que lhe subjaz. Sendo o povo o elemento central do Estado ao qual diz respeito as matérias relativas a segurança do Estado é de todo útil considerar matéria de segurança de Estado tudo o que coloca em perigo a existência harmoniosa da sociedade e a sobrevivência do povo. Neste prisma a existência injustificada da pobreza extrema e da fome e miséria em grande escala, a ocorrência de catástrofes naturais por omissão do Estado ou acidentes de grandes efeitos sociais devido a condutas de certos agentes públicos e mesmo até de certas endemias ou pandemias causadores de graves prejuízos sociais porém susceptíveis de prevenção, a acumulação de dívidas públicas para além da capacidade do Estado em cumprir com os respectivos serviços de dívidas onerando em consequências as gerações futuras, o incumprimento negligente ou doloso de programas executivos, resultantes de promessas eleitorais, em prol do desenvolvimento social e económico dos cidadãos, a nomeação de juízes como factor de ingerência no poder judicial, entre outras matérias, podem ser considerados factos relevantes para a Segurança do Estado.
É claro que esta variante da segurança do Estado coloca os titulares dos órgãos de soberania e demais decisores do Estado e órgãos afins nos mais variados escalões hierárquico no centro da autoria das condutas juridicamente relevantes para a segurança do Estado. O que não foge às tendências das constituições modernas em que, por exemplo, o crime de lesa-pátria (alta traição) é fundamentalmente atribuído ao Presidente da República ou Chefe de Estado e/ou do Executivo (conforme caso). E faz sentido. Em boa verdade, a segurança do Estado só pode ser colocada em causa por quem tem a responsabilidade de o administrar (titulares de órgãos de soberania) e não o destinatário desta administração (povo). E o povo, pelo contrário, deve garantir a protecção dos seus interesses contra os actos de gestão dos seus mandatários prevenindo dentre os mesmos aqueles que põem em causa a segurança de todos os cidadãos, i.é, a segurança do Estado.
A consideração de base é, nesta reflexão reformista das leis de segurança do Estado, a gestão danosa do Estado que deve acarretar as mais graves consequências jurídicas aos seus autores à semelhança dos crimes mais relevantes contra a segurança do Estado. Vindo disto que, os roubos ou furtos (conforme classificação oportuna) operados em instituições públicas envolvendo somas avultadas (i.é, a partir de certos montantes pecuniários) que põem em causa a estabilidade financeira das instituições públicas devem ser considerados como sendo condutas sancionáveis no âmbito das matérias tuteladas pelas leis de segurança do Estado. Aqui estaríamos a transplantar na legislação sobre a segurança do Estado uma feição económica e social (sobrevivência do povo) que se junta a feição política (conservação dos órgãos de soberania e da integridade territorial), para além de introduzir a tutela civil em reforço para a garantia efectiva dos interesses protegidos pela Lei. Estaríamos perante uma nova Lei (Lei Sobre a Segurança do Estado e não mais Lei dos Crimes Contra a Segurança do Estado) prevendo a responsabilidade civil ao lado da responsabilidade criminal em matéria de segurança do Estado, levando deste modo a sua conformação com as opções políticas, económicas e sociais fundamentais admitidas na III República.
QUESTÕES INERENTES A INVESTIGAÇÃO CRIMINAL
Albano Pedro
(Texto reservado à publicação ao Semanário Angolense)
A edição passada deste semanário surpreendeu o público ao trazer a matéria relativa ao processo de investigação criminal a que está a ser sujeito, Quim Ribeiro, comandante da Polícia Nacional de Luanda suspenso das suas actividades por este facto, dando conta que o mesmo está a ser conduzido por agentes afectos ao SINFO. O que coloca a questão de saber se este organismo pode, à luz da Lei, proceder a diligências investigativas normalmente desenvolvidas pelos serviços de investigação criminal ligados a Direcção Nacional de Investigação Criminal (DNIC). Ou seja, pode o SINFO substituir-se a DNIC?
É uma questão que não se responde directamente sem convocar uma outra questão do tipo: qual deve ser o órgão, em países de regularidade legal, a conduzir tais diligências? Desde logo, é mister considerar que a instrução de um processo criminal, normalmente iniciada com uma denúncia ou auto de notícia do cometimento de uma infracção criminal, se reporta a investigação e recolha de provas (formação do corpo de delito) com vista a fundamentação da acusação do Ministério Público em juízo, i.e., tem fins judiciais, levando a que o indivíduo objecto da referida investigação (arguido ou réu conforme a fase processual) seja condenado ou absolvido em competente processo judicial e no respectivo julgamento mediante a convicção carreada pelos elementos de prova assim reunidos.
Em países como Portugal (o exemplo vem menos por mérito do que pela aproximação de culturas jurídicas) a investigação e recolha de provas com fins judiciais é feita pela Polícia Judiciária (PJ) sob direcção do Ministério Público embora a Polícia tenha também órgãos de investigação e recolha de provas, porém, com finalidade diferente (eventualmente a de fundamentar as próprias diligências policiais em relação as matérias ligadas a crimes e outros actos relacionados de que tenha responsabilidade em provar ou investigar).
Nada repugna que Angola siga o mesmo caminho, como aliás muito se tem discutido a esse propósito, i.e., nada impede que paralelamente exista uma DNIC integrada no Ministério do Interior e uma Polícia Judiciária integrada no Ministério Público (PGR) contando que as suas funções e finalidade (competências e/ou atribuições) sejam distintas e para este último órgão se reconheça o papel de conduzir a investigação criminal com fins judiciais. Todavia, em Angola, a função de investigação e recolha de provas é desenvolvida visivelmente pela DNIC (ou DPIC conforme o caso), embora a Lei impõe que a condução da instrução processual (sobretudo em fase de instrução preparatória) seja feita pelo Ministério Público representada pela Procuradoria Geral da República (PGR) que exerce, «ultima ratio» a acção judicial geralmente materializada com a acusação (art.º 12.º - Dec. Lei 35.007 – 13 de Outubro de 1945).
Nada impede que outros órgãos integrem ou participem da instrução preparatória do processo criminal contando que a direcção desta seja assumida pelo Ministério Público (art.º 14.º - Dec. Lei 35.007). O que, desde logo retira a hegemonia do Ministério do Interior, mesmo através da DNIC, de conduzir de modo autónomo a fase da instrução preparatória do processo criminal, ainda que com argumentos de, posteriormente, vir a “depositar” o processo correspondente nas “mãos” da PGR.
A interferência de órgãos não vocacionais e outras anomalias do género ou não que se registam durante a fase da instrução preparatória do processo criminal, são tributários da falta de clareza e definição do sistema de instrução processual angolano que é fortemente dominado pelo Ministério do Interior (DNIC) por razões pacificamente justificadas num passado recente em que as matérias de segurança do Estado estavam no centro das atenções em razão do clima de instabilidade provocada pela guerra civil e pela debilidade do sistema político vigente. Modernamente há uma ponderação obrigatória: a irreversível caminhada para a regularização das instituições legais e democráticas angolanas recomenda uma postura organizante nova e sobretudo orientada para a reposição da normalidade funcional das instituições. O que a acontecer em relação ao sistema judicial e serviços afins ofereceria mais garantias de materialização da justiça em benefício dos cidadãos e outros entes sociais.
(Texto reservado à publicação ao Semanário Angolense)
A edição passada deste semanário surpreendeu o público ao trazer a matéria relativa ao processo de investigação criminal a que está a ser sujeito, Quim Ribeiro, comandante da Polícia Nacional de Luanda suspenso das suas actividades por este facto, dando conta que o mesmo está a ser conduzido por agentes afectos ao SINFO. O que coloca a questão de saber se este organismo pode, à luz da Lei, proceder a diligências investigativas normalmente desenvolvidas pelos serviços de investigação criminal ligados a Direcção Nacional de Investigação Criminal (DNIC). Ou seja, pode o SINFO substituir-se a DNIC?
É uma questão que não se responde directamente sem convocar uma outra questão do tipo: qual deve ser o órgão, em países de regularidade legal, a conduzir tais diligências? Desde logo, é mister considerar que a instrução de um processo criminal, normalmente iniciada com uma denúncia ou auto de notícia do cometimento de uma infracção criminal, se reporta a investigação e recolha de provas (formação do corpo de delito) com vista a fundamentação da acusação do Ministério Público em juízo, i.e., tem fins judiciais, levando a que o indivíduo objecto da referida investigação (arguido ou réu conforme a fase processual) seja condenado ou absolvido em competente processo judicial e no respectivo julgamento mediante a convicção carreada pelos elementos de prova assim reunidos.
Em países como Portugal (o exemplo vem menos por mérito do que pela aproximação de culturas jurídicas) a investigação e recolha de provas com fins judiciais é feita pela Polícia Judiciária (PJ) sob direcção do Ministério Público embora a Polícia tenha também órgãos de investigação e recolha de provas, porém, com finalidade diferente (eventualmente a de fundamentar as próprias diligências policiais em relação as matérias ligadas a crimes e outros actos relacionados de que tenha responsabilidade em provar ou investigar).
Nada repugna que Angola siga o mesmo caminho, como aliás muito se tem discutido a esse propósito, i.e., nada impede que paralelamente exista uma DNIC integrada no Ministério do Interior e uma Polícia Judiciária integrada no Ministério Público (PGR) contando que as suas funções e finalidade (competências e/ou atribuições) sejam distintas e para este último órgão se reconheça o papel de conduzir a investigação criminal com fins judiciais. Todavia, em Angola, a função de investigação e recolha de provas é desenvolvida visivelmente pela DNIC (ou DPIC conforme o caso), embora a Lei impõe que a condução da instrução processual (sobretudo em fase de instrução preparatória) seja feita pelo Ministério Público representada pela Procuradoria Geral da República (PGR) que exerce, «ultima ratio» a acção judicial geralmente materializada com a acusação (art.º 12.º - Dec. Lei 35.007 – 13 de Outubro de 1945).
Nada impede que outros órgãos integrem ou participem da instrução preparatória do processo criminal contando que a direcção desta seja assumida pelo Ministério Público (art.º 14.º - Dec. Lei 35.007). O que, desde logo retira a hegemonia do Ministério do Interior, mesmo através da DNIC, de conduzir de modo autónomo a fase da instrução preparatória do processo criminal, ainda que com argumentos de, posteriormente, vir a “depositar” o processo correspondente nas “mãos” da PGR.
A interferência de órgãos não vocacionais e outras anomalias do género ou não que se registam durante a fase da instrução preparatória do processo criminal, são tributários da falta de clareza e definição do sistema de instrução processual angolano que é fortemente dominado pelo Ministério do Interior (DNIC) por razões pacificamente justificadas num passado recente em que as matérias de segurança do Estado estavam no centro das atenções em razão do clima de instabilidade provocada pela guerra civil e pela debilidade do sistema político vigente. Modernamente há uma ponderação obrigatória: a irreversível caminhada para a regularização das instituições legais e democráticas angolanas recomenda uma postura organizante nova e sobretudo orientada para a reposição da normalidade funcional das instituições. O que a acontecer em relação ao sistema judicial e serviços afins ofereceria mais garantias de materialização da justiça em benefício dos cidadãos e outros entes sociais.
terça-feira, 9 de novembro de 2010
35 ANOS DE INDEPENDÊNCIA DE ANGOLA
O difícil processo de construção de um Estado de todos os angolanos
(Texto original reservado ao bissemanário folha8)
Albano Pedro
Para um balanço sobre os 35 anos de independência de Angola é obrigatório dividir as fases históricas do processo de construção da nação e do Estado em três momentos facilitados pelas reformas constitucionais que deram lugar às três repúblicas desde 1975. Obrigatório ainda é determinar que o processo de conquista da independência sofreu uma das maiores vicissitudes que pesa sobre os angolanos que hoje surge na veste de intolerância política demandando uma verdadeira política de reconciliação nacional. Essa vicissitude é sem dúvidas o desentendimento operado entre os principais movimentos de libertação nacional: FNLA, MPLA e UNITA, tendo causado todas as guerras civis que os angolanos conheceram até aos dias de hoje com fortes sequelas em cada cidadão.
PRIMEIRA REPÚBLICA
Surgida com independência de 1975, a I República caracteriza-se como um projecto de sociedade forçado sobre uma plataforma de conflitos políticos em que o MPLA, partido proclamador da independência, se vê obrigado a afastar a UNITA e a FNLA do Governo de Transição, proposto pelos acordos de Alvor assinado pelos três movimentos armados, como mecanismo de organização e preparação das primeiras eleições livres em Angola depois da colonização portuguesa. Pressionado pelas potências ocidentais, o MPLA-PT prefere governar sozinho submetendo o povo a um regime totalitarista promovendo no Estado nascente uma opção política fundamental de cariz socialista pro-comunista integrando desta feita o bloco socialista no contexto da guerra fria que promoveu a “cortina-de-ferro” contra o bloco capitalista. Com o Governo revolucionário do MPLA-PT, instala-se um ambiente legal, policial e político extremamente repressivo e os direitos, liberdades e garantias fundamentais são suprimidos ao mínimo. O cidadão não é um elemento de plenos direitos constitucionais e como tal vê a sua soberania absolvida pelo partido-Estado que a exerce directamente na legitimação dos órgãos de soberania do Estado. A sociedade civil como tal é inexistente. Apenas o trinómio Estado, partido e povo podem ser configurados dentro do sistema social emergente, embora sejam autorizadas representações de organizações internacionais como as nações Unidas. A economia é estatalizada com toda a propriedade privada transferida para o domínio público e apenas os indivíduos ligados ao sector público têm acesso a salário e ao fornecimento regular em bens de consumo mediante atribuição de cartões de abastecimento. Várias empresas estatais prestando desde serviços básicos aos mais complexos são criadas, muitas sobre património de empresas coloniais nacionalizadas. Há então uma economia informal próximo da evolução artesanal que absorve os indivíduos “marginalizados” pelo sistema por falta de certos requisitos, nomeadamente falta de cumprimento do serviço militar obrigatório, certo grau de ensino geral concluído, documentos de cidadania nacional, etc., que sustenta maioritariamente os cidadãos regressados de países vizinhos (Zaíre, Zâmbia, etc.) por virtude do fim da colonização e dos últimos conflitos produzidas por ela. Após o massacre de 27 de Maio que dizima milhares de angolanos no seio do partido-Estado reforçado com a guerra desencadeada pelos desentendimentos no processo de independência pela FNLA e UNITA e seus parceiros estrangeiros, nasce um ambiente de suspeição generalizada no seu do MPLA-PT que leva o seu Presidente a proclamar mais tarde uma política nacional de clemência visando descomprimir o ambiente de medo entre os angolanos pelo perdão generalizado a todos aqueles que figuravam como “inimigos da pátria” (mormente do Estado socialista). O que proporcionou a rendição progressiva de números significativos de integrantes das forças militarizadas que desenvolviam a guerrilha pela UNITA ou pela FNLA, esta praticamente substituída no terreno militar pela FLEC-FLAC.
Nos finais dos anos oitenta, o projecto de Estado socialista, desgastado pelas guerras civis e por inimigos internos e externos do MPLA-PT era praticamente declarado falido, com os seus múltiplos programas sociais e económicos cronicamente disfuncionais para além do não acatamento efectivo de slogans e palavras de ordens (“o mais importante é resolver os problemas do povo”, “ao inimigo nem um palmo da nossa terra”, etc.) pela consciência colectiva frustrada pelo regime social e económico vigente. As empresas dirigidas maioritariamente por “gestores-guerrilheiros” (indivíduos da confiança do partido com curriculum e experiência duvidosa neste domínio) eram mantidas em situação técnica de falência (não tinham rendimentos) sustentadas por “plafonds” desgastantes para o Orçamento Geral do Estado. O lançamento do Programa de Saneamento Económico e Financeiro (SEF) bem como das “campanhas” de reforma empresarial do Estado pela política de redimensionamento e privatização são dos últimos argumentos na tentativa de salvar um sistema social gravemente atingido pela inoperância económica. Em 1991 os ideais de reforma política convencem o MPLA-PT que admite a democracia pluripartidária forçada pela UNITA e pelas circunstâncias internas do Estado, as conversações para os acordos de paz têm início e em 1992 – com as primeiras eleições livres – é enterrado o sistema social trazido pelo MPLA-PT e com ele desaparece a I República. O balanço é apenas positivo no que toca a admissão da reforma social e económica pelo MPLA sendo catastrófica no que tange as perspectivas de desenvolvimento social e económico. Afinal, o comércio é inoperante e a indústria é inexistente. A actividade informal de cariz artesanal sustenta grande parte da população angolana, o povo está empobrecido carregando consigo problemas sociais gravíssimos misturados com altas taxas de analfabetismo, mortalidade infantil entre outros problemas. Há quem, no desespero, prefira o regresso à colonização portuguesa. O sonho da independência inspirado pelo Primeiro Presidente da República (Dr. António Agostinho Neto) é já uma névoa nas esperanças dos angolanos e os rostos desenham a necessidade de uma salvação política diferente.
SEGUNDA REPÚBLICA
Em 1992 nasce a II República com a cessação dos conflitos armados protagonizados pela UNITA e o MPLA, por força dos acordos de Lusaka em que as duas forças entenderam lançar um país de vocação democrática assente no primado das leis. Mas Angola está destruída pelas guerras e enfraquecida pelos graves problemas sociais. As eleições livres acontecem num clima de suspeições, não produzem os efeitos esperados pelo povo e a frustração das partes leva ao reinício das guerras civis para o desespero de todos os angolanos. Como consequência, as previsões constitucionais de um regime social e económico aberto a participação do indivíduo e à livre concorrência são “arquivados” e o povo vai enfrentar ainda o fantasma do partido-Estado com o MPLA procurando reformar os seus velhos hábitos de gestão da coisa pública. O país mergulha numa economia de concorrência selvagem onde a corrupção e o clientelismo são palavras de ordem para os “novos-ricos”. Há uma confusão nas estruturas sociais onde a permissão de uma economia de livre concorrência é misturada a uma ditadura política persistente desde a primeira República, e como tal a economia privada não nasce ante a um conjunto de constrangimentos políticos.
Contudo, há um Governo de Unidade e Reconciliação Nacional (GURN) que junta partidos da oposição ao MPLA na governação do Estado configurando um “cocktail político dos diabos” em que os que acusam de má governação podem ser vistos a participar dela, sendo contudo uma experiência muito válida para a manutenção de um clima de esperança para dias melhores. Em 2002 está claro que a guerra faz parte do passado, com a morte do líder da UNITA e rendição de todas as suas forças militares. Durante 16 anos as eleições democráticas não aconteceram e o clima de relativa paz vai levar o MPLA a organizar e a realizar as segundas eleições legislativas em 2008 vencendo-a esmagadoramente. Nesta II República, os momentos relevantes são notáveis desde 2002 em que a consolidação do processo de paz iniciado em 1992 é nota dominante e pela primeira vez na história da Angola independente o MPLA dirige sem guerras civis de abrangência nacional (há a descontar as operações militares da FLEC-FLAC em Cabinda). Porém, a situação social requer reformas urgentes e profundas. José Eduardo dos Santos dá então um passo significativo: contrai empréstimos volumosos da República Popular da China para acelerar a corrida contra o subdesenvolvimento, embora os seus termos em muito sejam contestáveis. O crescimento económico proporciona está ousadia e temos então Angola a caminhar para algum lado depois de 1975, mesmo quando persistem os profundos problemas sociais herdados da primeira República.
TERCEIRA REPÚBLICA
Com os últimos resultados eleitorais, a Lei constitucional sofre um duro golpe procedimental dando lugar a uma nova reforma precipitando a III República. O MPLA quer uma direcção isolada (sem o GURN ou sombras de fortes partidos de oposição) para começar a corrida ao desenvolvimento numa estratégia em que privilegia a dimensão económica (infra-estruturas técnicas e sociais) em detrimento das políticas sociais de emergência e sustentáveis. Há uma atenção virada para a reconstrução nacional que inclui áreas não vocacionais como a construção do parque imobiliário residencial e o relançamento do sector empresarial do Estado em áreas de plena concorrência com o sector privado. Os volumosos recursos aí mobilizados não permitem um programa de saúde e educação que inspire novos ânimos. Com a reestruturação do Governo, nasce uma dinâmica que inspira uma acelerada reforma jurídico-legal sobretudo no plano infra-ordinário e pela primeira vez a vontade de prestação pública de contas do Estado que permite uma certa monitorização dos programas executivos. Finalmente acontece um discurso à nação na Assembleia Nacional em Outubro deste ano. As estatísticas no sector social ainda são assustadoras (altas taxas de mortalidade infantil, índices elevados de desemprego e de habitação social condigna entre outros problemas). O executivo porém, persiste “no caminho certo” com o privilégio sobre o plano da reconstrução de infra-estruturas económicas numa visão em que o Estado é o único proporcionador do bem-estar económico e social dos cidadãos diante de uma economia privada inexistente.
OS DESAFIOS DA TERCEIRA REPÚBLICA
Chegados neste ponto, não é difícil delinear os desafios dos angolanos para os próximos tempos: a conversão da economia pública para uma economia privada organizada e crescente, a devolução do Estado ao sector público libertando-se das actividades de natureza privada, a reconciliação nacional que passa pela nova aculturação política do partido no poder e uma nova perspectiva de desenvolvimento (sustentável).
1. Economia privada
A economia privada, esta quimera dos anos 90, esta difícil de parir porque o executivo persiste numa política de estatalização da economia em que o sector público condiciona toda a actividade económica nacional incluindo a actividade da banca comercial. Para que ela nasça efectivamente é necessária uma política de organização e estruturação deste sector que passa pela abertura da Bolsa de Valores e Derivados de Angola como alavanca impulsionadora do mercado financeiro angolano, este proporciona o surgimento de serviços e agentes financeiros que diversificam a sustentação da economia privada nascendo assim uma classe empresarial multissectorial. Os índices de emprego sobem e os salários gerados pela concorrência melhoram as condições de vidas dos cidadãos em particular e os rendimentos dos particulares em geral. O que encoraja o sistema bancário a actuar na economia privada. Para tanto, uma nova política fiscal deve ser estabelecida, o sistema cambial estabilizado, a política aduaneira facilitada e a política comercial aberta à região da SADC e ao investimento estrangeiro entre outras medidas não difíceis de divisar pela boa vontade política.
2. Estado Social
O Estado deve abandonar com urgência a política de mobilização de investimentos públicos para sector de concorrência privada tais como o de fomentos e desenvolvimento habitacional e o do relançamento empresarial. Privilegiando a política de fomento empresarial pelo apoio e o incentivo das parcerias público-privadas. O Estado passa a ter uma intervenção reguladora na economia e deve assumir a política de defesa nacional, saúde e educação concentrando nestes sectores os mais avultados recursos disponíveis, com destaque não já na política de redistribuição da riqueza mas do fomento de emprego pela criação de infra-estruturas económicas que suportem um empresariado nacional facilitado e apoiado pelo Estado através de múltiplos incentivos e facilidades incluindo uma política fiscal motivadora.
3. Partidos políticos democráticos
Angola continua a manter um sistema de privilégios que favorece largamente quem milita nas fileiras do partido no poder. A UNITA e o MPLA dividem os grupos sociais com tendências ao radicalismo exclusivista e a supressão dos interesses nacionais em favor do partido e seus líderes. É a fonte da intolerância política e do medo generalizado do povo que recomenda uma política de reconciliação nacional efectiva e urgente. A reforma da Lei dos Partidos Políticos bem como a prática destes deve orientar-se para a harmonia social e a promoção dos interesses nacionais diluindo o divisionismo social que impede a mobilização e junção dos esforços individuais para o desenvolvimento.
4. Modelo de desenvolvimento
No balanço do crescimento económico o Estado deve projectar um desenvolvimento urgente socorrido por um empresariado nacional crescente que assuma os riscos de investimentos em sectores não vocacionais do Estado, permitindo deste modo a mobilização de recursos para sectores estratégicos para o desenvolvimento sustentável como a educação, a saúde, a defesa nacional com actuação marcada por um intervencionismo indirecto para toda a economia privada. Falaríamos então num desenvolvimento económico sustentável proporcionador do bem-estar social dos cidadãos.
(Texto original reservado ao bissemanário folha8)
Albano Pedro
Para um balanço sobre os 35 anos de independência de Angola é obrigatório dividir as fases históricas do processo de construção da nação e do Estado em três momentos facilitados pelas reformas constitucionais que deram lugar às três repúblicas desde 1975. Obrigatório ainda é determinar que o processo de conquista da independência sofreu uma das maiores vicissitudes que pesa sobre os angolanos que hoje surge na veste de intolerância política demandando uma verdadeira política de reconciliação nacional. Essa vicissitude é sem dúvidas o desentendimento operado entre os principais movimentos de libertação nacional: FNLA, MPLA e UNITA, tendo causado todas as guerras civis que os angolanos conheceram até aos dias de hoje com fortes sequelas em cada cidadão.
PRIMEIRA REPÚBLICA
Surgida com independência de 1975, a I República caracteriza-se como um projecto de sociedade forçado sobre uma plataforma de conflitos políticos em que o MPLA, partido proclamador da independência, se vê obrigado a afastar a UNITA e a FNLA do Governo de Transição, proposto pelos acordos de Alvor assinado pelos três movimentos armados, como mecanismo de organização e preparação das primeiras eleições livres em Angola depois da colonização portuguesa. Pressionado pelas potências ocidentais, o MPLA-PT prefere governar sozinho submetendo o povo a um regime totalitarista promovendo no Estado nascente uma opção política fundamental de cariz socialista pro-comunista integrando desta feita o bloco socialista no contexto da guerra fria que promoveu a “cortina-de-ferro” contra o bloco capitalista. Com o Governo revolucionário do MPLA-PT, instala-se um ambiente legal, policial e político extremamente repressivo e os direitos, liberdades e garantias fundamentais são suprimidos ao mínimo. O cidadão não é um elemento de plenos direitos constitucionais e como tal vê a sua soberania absolvida pelo partido-Estado que a exerce directamente na legitimação dos órgãos de soberania do Estado. A sociedade civil como tal é inexistente. Apenas o trinómio Estado, partido e povo podem ser configurados dentro do sistema social emergente, embora sejam autorizadas representações de organizações internacionais como as nações Unidas. A economia é estatalizada com toda a propriedade privada transferida para o domínio público e apenas os indivíduos ligados ao sector público têm acesso a salário e ao fornecimento regular em bens de consumo mediante atribuição de cartões de abastecimento. Várias empresas estatais prestando desde serviços básicos aos mais complexos são criadas, muitas sobre património de empresas coloniais nacionalizadas. Há então uma economia informal próximo da evolução artesanal que absorve os indivíduos “marginalizados” pelo sistema por falta de certos requisitos, nomeadamente falta de cumprimento do serviço militar obrigatório, certo grau de ensino geral concluído, documentos de cidadania nacional, etc., que sustenta maioritariamente os cidadãos regressados de países vizinhos (Zaíre, Zâmbia, etc.) por virtude do fim da colonização e dos últimos conflitos produzidas por ela. Após o massacre de 27 de Maio que dizima milhares de angolanos no seio do partido-Estado reforçado com a guerra desencadeada pelos desentendimentos no processo de independência pela FNLA e UNITA e seus parceiros estrangeiros, nasce um ambiente de suspeição generalizada no seu do MPLA-PT que leva o seu Presidente a proclamar mais tarde uma política nacional de clemência visando descomprimir o ambiente de medo entre os angolanos pelo perdão generalizado a todos aqueles que figuravam como “inimigos da pátria” (mormente do Estado socialista). O que proporcionou a rendição progressiva de números significativos de integrantes das forças militarizadas que desenvolviam a guerrilha pela UNITA ou pela FNLA, esta praticamente substituída no terreno militar pela FLEC-FLAC.
Nos finais dos anos oitenta, o projecto de Estado socialista, desgastado pelas guerras civis e por inimigos internos e externos do MPLA-PT era praticamente declarado falido, com os seus múltiplos programas sociais e económicos cronicamente disfuncionais para além do não acatamento efectivo de slogans e palavras de ordens (“o mais importante é resolver os problemas do povo”, “ao inimigo nem um palmo da nossa terra”, etc.) pela consciência colectiva frustrada pelo regime social e económico vigente. As empresas dirigidas maioritariamente por “gestores-guerrilheiros” (indivíduos da confiança do partido com curriculum e experiência duvidosa neste domínio) eram mantidas em situação técnica de falência (não tinham rendimentos) sustentadas por “plafonds” desgastantes para o Orçamento Geral do Estado. O lançamento do Programa de Saneamento Económico e Financeiro (SEF) bem como das “campanhas” de reforma empresarial do Estado pela política de redimensionamento e privatização são dos últimos argumentos na tentativa de salvar um sistema social gravemente atingido pela inoperância económica. Em 1991 os ideais de reforma política convencem o MPLA-PT que admite a democracia pluripartidária forçada pela UNITA e pelas circunstâncias internas do Estado, as conversações para os acordos de paz têm início e em 1992 – com as primeiras eleições livres – é enterrado o sistema social trazido pelo MPLA-PT e com ele desaparece a I República. O balanço é apenas positivo no que toca a admissão da reforma social e económica pelo MPLA sendo catastrófica no que tange as perspectivas de desenvolvimento social e económico. Afinal, o comércio é inoperante e a indústria é inexistente. A actividade informal de cariz artesanal sustenta grande parte da população angolana, o povo está empobrecido carregando consigo problemas sociais gravíssimos misturados com altas taxas de analfabetismo, mortalidade infantil entre outros problemas. Há quem, no desespero, prefira o regresso à colonização portuguesa. O sonho da independência inspirado pelo Primeiro Presidente da República (Dr. António Agostinho Neto) é já uma névoa nas esperanças dos angolanos e os rostos desenham a necessidade de uma salvação política diferente.
SEGUNDA REPÚBLICA
Em 1992 nasce a II República com a cessação dos conflitos armados protagonizados pela UNITA e o MPLA, por força dos acordos de Lusaka em que as duas forças entenderam lançar um país de vocação democrática assente no primado das leis. Mas Angola está destruída pelas guerras e enfraquecida pelos graves problemas sociais. As eleições livres acontecem num clima de suspeições, não produzem os efeitos esperados pelo povo e a frustração das partes leva ao reinício das guerras civis para o desespero de todos os angolanos. Como consequência, as previsões constitucionais de um regime social e económico aberto a participação do indivíduo e à livre concorrência são “arquivados” e o povo vai enfrentar ainda o fantasma do partido-Estado com o MPLA procurando reformar os seus velhos hábitos de gestão da coisa pública. O país mergulha numa economia de concorrência selvagem onde a corrupção e o clientelismo são palavras de ordem para os “novos-ricos”. Há uma confusão nas estruturas sociais onde a permissão de uma economia de livre concorrência é misturada a uma ditadura política persistente desde a primeira República, e como tal a economia privada não nasce ante a um conjunto de constrangimentos políticos.
Contudo, há um Governo de Unidade e Reconciliação Nacional (GURN) que junta partidos da oposição ao MPLA na governação do Estado configurando um “cocktail político dos diabos” em que os que acusam de má governação podem ser vistos a participar dela, sendo contudo uma experiência muito válida para a manutenção de um clima de esperança para dias melhores. Em 2002 está claro que a guerra faz parte do passado, com a morte do líder da UNITA e rendição de todas as suas forças militares. Durante 16 anos as eleições democráticas não aconteceram e o clima de relativa paz vai levar o MPLA a organizar e a realizar as segundas eleições legislativas em 2008 vencendo-a esmagadoramente. Nesta II República, os momentos relevantes são notáveis desde 2002 em que a consolidação do processo de paz iniciado em 1992 é nota dominante e pela primeira vez na história da Angola independente o MPLA dirige sem guerras civis de abrangência nacional (há a descontar as operações militares da FLEC-FLAC em Cabinda). Porém, a situação social requer reformas urgentes e profundas. José Eduardo dos Santos dá então um passo significativo: contrai empréstimos volumosos da República Popular da China para acelerar a corrida contra o subdesenvolvimento, embora os seus termos em muito sejam contestáveis. O crescimento económico proporciona está ousadia e temos então Angola a caminhar para algum lado depois de 1975, mesmo quando persistem os profundos problemas sociais herdados da primeira República.
TERCEIRA REPÚBLICA
Com os últimos resultados eleitorais, a Lei constitucional sofre um duro golpe procedimental dando lugar a uma nova reforma precipitando a III República. O MPLA quer uma direcção isolada (sem o GURN ou sombras de fortes partidos de oposição) para começar a corrida ao desenvolvimento numa estratégia em que privilegia a dimensão económica (infra-estruturas técnicas e sociais) em detrimento das políticas sociais de emergência e sustentáveis. Há uma atenção virada para a reconstrução nacional que inclui áreas não vocacionais como a construção do parque imobiliário residencial e o relançamento do sector empresarial do Estado em áreas de plena concorrência com o sector privado. Os volumosos recursos aí mobilizados não permitem um programa de saúde e educação que inspire novos ânimos. Com a reestruturação do Governo, nasce uma dinâmica que inspira uma acelerada reforma jurídico-legal sobretudo no plano infra-ordinário e pela primeira vez a vontade de prestação pública de contas do Estado que permite uma certa monitorização dos programas executivos. Finalmente acontece um discurso à nação na Assembleia Nacional em Outubro deste ano. As estatísticas no sector social ainda são assustadoras (altas taxas de mortalidade infantil, índices elevados de desemprego e de habitação social condigna entre outros problemas). O executivo porém, persiste “no caminho certo” com o privilégio sobre o plano da reconstrução de infra-estruturas económicas numa visão em que o Estado é o único proporcionador do bem-estar económico e social dos cidadãos diante de uma economia privada inexistente.
OS DESAFIOS DA TERCEIRA REPÚBLICA
Chegados neste ponto, não é difícil delinear os desafios dos angolanos para os próximos tempos: a conversão da economia pública para uma economia privada organizada e crescente, a devolução do Estado ao sector público libertando-se das actividades de natureza privada, a reconciliação nacional que passa pela nova aculturação política do partido no poder e uma nova perspectiva de desenvolvimento (sustentável).
1. Economia privada
A economia privada, esta quimera dos anos 90, esta difícil de parir porque o executivo persiste numa política de estatalização da economia em que o sector público condiciona toda a actividade económica nacional incluindo a actividade da banca comercial. Para que ela nasça efectivamente é necessária uma política de organização e estruturação deste sector que passa pela abertura da Bolsa de Valores e Derivados de Angola como alavanca impulsionadora do mercado financeiro angolano, este proporciona o surgimento de serviços e agentes financeiros que diversificam a sustentação da economia privada nascendo assim uma classe empresarial multissectorial. Os índices de emprego sobem e os salários gerados pela concorrência melhoram as condições de vidas dos cidadãos em particular e os rendimentos dos particulares em geral. O que encoraja o sistema bancário a actuar na economia privada. Para tanto, uma nova política fiscal deve ser estabelecida, o sistema cambial estabilizado, a política aduaneira facilitada e a política comercial aberta à região da SADC e ao investimento estrangeiro entre outras medidas não difíceis de divisar pela boa vontade política.
2. Estado Social
O Estado deve abandonar com urgência a política de mobilização de investimentos públicos para sector de concorrência privada tais como o de fomentos e desenvolvimento habitacional e o do relançamento empresarial. Privilegiando a política de fomento empresarial pelo apoio e o incentivo das parcerias público-privadas. O Estado passa a ter uma intervenção reguladora na economia e deve assumir a política de defesa nacional, saúde e educação concentrando nestes sectores os mais avultados recursos disponíveis, com destaque não já na política de redistribuição da riqueza mas do fomento de emprego pela criação de infra-estruturas económicas que suportem um empresariado nacional facilitado e apoiado pelo Estado através de múltiplos incentivos e facilidades incluindo uma política fiscal motivadora.
3. Partidos políticos democráticos
Angola continua a manter um sistema de privilégios que favorece largamente quem milita nas fileiras do partido no poder. A UNITA e o MPLA dividem os grupos sociais com tendências ao radicalismo exclusivista e a supressão dos interesses nacionais em favor do partido e seus líderes. É a fonte da intolerância política e do medo generalizado do povo que recomenda uma política de reconciliação nacional efectiva e urgente. A reforma da Lei dos Partidos Políticos bem como a prática destes deve orientar-se para a harmonia social e a promoção dos interesses nacionais diluindo o divisionismo social que impede a mobilização e junção dos esforços individuais para o desenvolvimento.
4. Modelo de desenvolvimento
No balanço do crescimento económico o Estado deve projectar um desenvolvimento urgente socorrido por um empresariado nacional crescente que assuma os riscos de investimentos em sectores não vocacionais do Estado, permitindo deste modo a mobilização de recursos para sectores estratégicos para o desenvolvimento sustentável como a educação, a saúde, a defesa nacional com actuação marcada por um intervencionismo indirecto para toda a economia privada. Falaríamos então num desenvolvimento económico sustentável proporcionador do bem-estar social dos cidadãos.