domingo, 13 de fevereiro de 2011

O PARADOXO DOS DIREITOS HUMANOS FUNDAMENTAIS II

DAS COMUNIDADES DESFAVORECIDAS PELA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA


Albano Pedro


Há poucos anos atrás, numa comunidade algures na província da Huila, um idoso veio até junto de mim e de algumas pessoas para perguntar (por meio de um tradutor com domínio duvidoso da língua portuguesa) se podia ter esperança de ter a visita do camarada Agostinho Neto (fazia referência ao presidente fundador da República de Angola) na sua aldeia já que esperava por ele há anos (ouvira falar dele de algumas pessoas que passavam pela aldeia e tinha a convicção que era o maior dos sobas e que governava o resto do território que se estendia para além da sua aldeia e dos locais de pasto do seu gado. Reconhecia-lhe grande fama em expulsar estrangeiros que ocupam terras alheias). Revelou-me uma preocupação pontual: Quero que ele venha para nos ajudar a parar os avanços dos “estrangeiros” e dos meliantes que assaltam e roubam o nosso gado! – Segundo ele, os estrangeiros invadiam as terras dos seus ancestrais que ele e a sua comunidade exploravam para sua sobrevivência. O caricato está em que o sinal da presença dos estrangeiros que mostrou indicando o dedo para além do horizonte era a sede comunal, uma escola de ensino de base e outros elementos menores que representavam a presença da administração local do Estado, embora distante (numa outra comunidade). Alegou mesmo que os outros (a comunidade abrangida pela administração local do Estado) já tinham sido dominados e que, em consequência, os seus membros passavam fome. Como alternativa vinham roubar o gado da sua comunidade. Da bandeira do MPLA que flutuava numa árvore ao lado testemunhou dizendo que foi colocada por indivíduos que apareceram na sua aldeia para lhes garantir apoio no combate contra o roubo de gado de que eram sujeitos mas que nunca mais voltaram a parecer. Entendeu tais indivíduos também como estrangeiros interessados em cooperar para a defesa dos seus interesses contra a invasão de outros estrangeiros que integram a administração local do Estado. Da mobilização a que foram sujeitos para colocar os filhos na escola o idoso tinha um claro entendimento: Eles querem nos roubar os filhos para deixarem de pastar o nosso gado e servirem os seus interesses, por isso querem que passem a entrar naquela casa para aprenderem os hábitos deles! – O velho falava furioso, o que se notava pelos nervos tensos e boca espumando. Contive o riso, em várias ocasiões, num esforço espectacular, para evitar ser confundido com um “estrangeiro” indesejado.

Este quadro revela não só o choque (tensão axiológica) entre o Direito positivo (Lei) e o, assim dito, Direito costumeiro, como também revela a crise do Estado no que tange a sua capacidade de compreender todo o território nacional. Nota-se a existência de “ilhas” sociais ou comunitárias em que se incubam bolsas de resistência contra a civilização ou mesmo contra a abrangência territorial do Estado e da sua administração. Muito, por causa da incapacidade da extensão administrativa do Estado e, sobretudo, da crise política que revela a intolerância política bem sensível no resto do território angolano. Tais cidadãos, já não levantam problemas de enquadramento jurídico territorial, visto que a administração local do Estado (embora ligeiramente distante) compreende aquela aldeia, mesmo que os seus habitantes, de tal, não tenham conhecimento. Não deixa, porém, de arrepiar os padrões civilizacionais aceitos. Já que a marginalização civilizacional é bem patente nos pronunciamentos do velho que me abordou.

Assim fica bem claro que, o Estado, afinal, com todo o seu aparato administrativo, não serve os anseios das populações como julga e justifica publicamente. O velho mostrou-me que os interesses perseguidos pela administração pública não coincidem com os interesses das populações locais. Na verdade, esta situação não é apenas visível ou sensível em comunidades de localização remotas. Mas também nas grandes cidades como Luanda. A questão das passagens aéreas para peões instaladas em alguns pontos da cidade é uma prova evidente disto. Não só não foram previstas passagens para indivíduos com deficiência física como não foram previstas passagens para idosos. Resultado: as pontes aéreas são esteticamente interessantes, mas não servem a maioria das populações que as frequentam todos os dias. Está clara a violação do princípio da colaboração entre agentes e órgãos da administração pública e particulares (pessoas, empresas e instituições privadas) destinatários dos serviços públicos, que teria suprido, através de consultas públicas as comunidades locais, o problema da viabilidade das passagens aéreas e demais infra-estruturas comunitárias.

Voltando a questão do velho e da sua comunidade, a realidade sociológica e mesmo jurídica (decantada dos argumentos historicamente ultrapassados), aparentemente caricata, leva-nos a uma profunda reflexão. Interessa, por exemplo, averiguar se o Direito ocidental (tipo kelseniano) que vigora formalmente entre nós a partir de matrizes europeias (por via Portugal), é suficientemente capaz de permitir a emancipação da cultura nacional (na vertente de hábitos e costumes dos povos). Ou se, as opções jurídicas fundamentais reflectem a idiossincrasia dos povos. O problema é suficientemente sério para ser ignorado, já que a sensatez das leis e o sentido de justiça que comportam dependem da sua solução. Por exemplo, debate-se hoje o problema de violência doméstica. Pretende-se que a mesma contemple a repressão de condutas, tidas como violentas para a cultura ocidental, quando, entre os angolanos muitas destas condutas são perfeitamente toleradas até pelas próprias “vítimas”. O meu primo, senhor de uma grande família, quando foi questionado sobre a importância dos “correctivos” sobre as crianças, respondeu: “A surra não educa, mas enquadra!” Tal é a forma como tem administrado as relações e interesses da família, certo dos efeitos positivos daí resultantes. E de facto, se apreciarmos a sua filosofia sem pudores, verificaremos que a educação familiar nos lares pobres é violenta devido a forte propensão dos seus membros em resistir aos comandos superiores dos pais, uma vez que grande parte dos mesmos se sustenta por conta própria através de pequenos “biscates”, para além de fazer da violência um mecanismo de sobrevivência nas relações sociais, tornando-se num “modus essendis et vivendis”. Podemos expor vários motivos como ignorância associada em geral ao analfabetismo e a pobreza, muitas vezes extrema. Mas é a realidade milenar dos africanos completamente contrária a realidade ocidental (europeia, por exemplo). É claro que não pretendemos encorajar a persistência de condutas anti-sociais. Mas a análise sociológica das condutas e a “ratio legis” que lhes subjazem. Portanto, o problema que levanta a crise axiológica do Direito angolano é um problema que cria fissuras epistemológicas graves na percepção dos indivíduos ao ponto de se reflectir na dramática crise de valores que arrasta a actual geração de angolanos ao subdesenvolvimento social e económico, apesar das grandes quantidades de riquezas naturais existentes.

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

O PARADOXO DOS DIREITOS HUMANOS FUNDAMENTAIS I

DAS COMUNIDADES SEM ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA


Albano Pedro



Uma situação simultaneamente caricata e insólita a que tive acesso ilustra que em certa ocasião, numa das aldeias situadas nas zonas mais recônditas da província do Kuando Kubango, algumas pessoas aproximaram-se de uma carrinha do tipo pick-up acabada de chegar a sua comunidade. Imbuídos de manifesta curiosidade visível pelos olhos esbugalhados de surpresa e boca escancarada revelando dentes ora quebrados ou acinzentados de cárie em meio as babas escorrendo, entre crianças, adultos e idosos, mulheres e homens, acercaram-se da viatura ora tocando ora acariciando esperando uma reacção animal do engenho mecânico, ante a surpresa e receio do seu condutor e acompanhantes. No meio deles, um pai e filho. Aquele dirige-se a este dizendo (a língua é nganguela): vês este animal? O filho responde: sim! O pai: pois, ele vai crescer, crescer, crescer até ser muito grande! (o pai aludia a imagem de um enorme camião que vira noutra ocasião como tamanho que a carrinha alcançaria depois de algum tempo). A equiparação de engenhos mecânicos a animais é tal que um helicóptero é percebido (e com forte convicção) como uma mosca gigante e o fumo expulso pelos escapes do motor visto como fezes. O que não percebem é que os dejectos da “mosca” saiam em formas vaporizadas. Mas, o fumo do escape da viatura é perfeitamente percebido como sendo peido, embora estranhem a cor e a frequência do peido do estranho “animal”. É claro que os mais “sábios” entendem ser uma reacção clara de um animal adoentado. Até porque o facto de estar quieto, apesar de roncar, e não fugir ou atacar as pessoas explica tudo.

É uma caricatura com laivos de anedota que parece surreal para quem nunca se embrenhou no extremo e profundo interior de Angola. Mas é a pura realidade de muitas comunidades de Angola, sobretudo daquelas em que a administração pública não só não se faz presente como não tem a sua clara localização ou mesmo a mínima programação administrativa e financeira. Caso para dizer que o Estado (Administração Pública) não está presente em todos os espaços do território angolano apesar de esforços neste sentido. É claro que se afigura ser um problema cuja resolução esta mais na vontade política que passa pela reforma dos modelos administrativos e de gestão financeira do Estado do que nos esforços eleitoralistas dos governantes. Não estaria nada perdido sem as províncias do género, com grandes extensões territoriais, beneficiassem de estatuto económico especial ou de afectação orçamental significativa, pelo menos em razão do tamanho. O kuando kubango é destas províncias (com capacidade de superar a fasquia orçamental destinada à província de Luanda e mais outras duas juntas). De qualquer modo, fica desta realidade, a percepção de que tais comunidades não estão sujeitas as exigências legais impostas pelo Estado. São populações integradas no território nacional sem quaisquer estatutos jurídicos. Não tendo quaisquer identificações que revelem cidadania ou pertença territorial, não podem ser catalogados sequer como cidadãos ou mesmo como estrangeiros. Muito menos como apátridas. Na verdade, aqui o Direito, se empregue na análise fenomenológica, entra em crise. Não podendo mesmo reconhecer quaisquer categorias jurídico-políticas para tais sujeitos. Sem formos ousados na nominação jurídica tais sujeitos ficam próximos de cidadãos-putativos, embora não exerçam a cidadania em momento algum. É uma situação que levanta igualmente outras questões jurídicas interessantes. Por exemplo, coloca-nos na incómoda posição de questionar se não estarão em causa ofensas graves de direitos humanos? Parece absurdo. Mas, a questão-problema nasce do facto de não existir nem Estado nem Lei em tais comunidades. E como a falta de Lei não leva a quaisquer cometimentos de crimes ou delitos civis, o caso recomenda uma análise ontológico-jurídica séria. Pois, não é possível existirem violações lá onde o Direito (Lei no caso angolano) não é vigente. Embora, o Estado (do ponto de vista formal) esteja presente em todos os espaços territoriais delimitados por todos os marcos fronteiriços possíveis, a despeito das falhas administrativas e financeiras neste sentido.

Apesar disto, não é difícil perceber que os membros de tais comunidades não tenham acesso a nada que os leve a perceber da existência de um Estado. Tão pouco, conseguem visualizar um sistema de educação ou saúde pública. Muito menos podem beneficiar de serviços básicos programados no nível central ou local do Estado. E fica ainda mais claro que tais populações não só não estão abrangidas no programa de um milhão de casas como jamais viram alguém que viesse junto dos mesmos para um simples registo eleitoral. Vivem a deriva e a margem da Lei e do Estado para ser mais concreto. Ora, este quadro levanta o problema da dignidade da pessoa humana enquanto desiderato plasmado nas diversas constituições, fruto de acordos internacionais nesta matéria. Angola sendo parte de tais acordos, pode ser encarada como um Estado que “desterra” todos aqueles que não administra retirando-lhes os estatutos de cidadãos. E como tal, não reconhece quaisquer direitos fundamentais e nem materializa junto das comunidades em causa os mais elementares serviços impostos pela necessidade de bem-estar e desenvolvimento dos seus membros. O que sugere a convicção de não reconhecimento de qualquer dignidade a tais populações. Pior que tudo, a estas comunidades não se aplicam critérios econométricos de avaliação do índice de bem-estar alcançados. Por exemplo, não se lhes pode reconhecer pobreza devido ao facto de não se ter conhecimento do grau de satisfação em bens materiais alcançados pelos seus membros, tão pouco se lhes reconhecem capacidades de progressão social e económica dentro do seu espaço comunitário. Enfim, são populações entregues a um completo abandono em pleno século XXI. Era de reconhecida evolução tecnológica, económica e social em que já não se podem reconhecer pessoas estadualmente desenquadradas.