DAS COMUNIDADES SEM ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA
Albano Pedro
Uma situação simultaneamente caricata e insólita a que tive acesso ilustra que em certa ocasião, numa das aldeias situadas nas zonas mais recônditas da província do Kuando Kubango, algumas pessoas aproximaram-se de uma carrinha do tipo pick-up acabada de chegar a sua comunidade. Imbuídos de manifesta curiosidade visível pelos olhos esbugalhados de surpresa e boca escancarada revelando dentes ora quebrados ou acinzentados de cárie em meio as babas escorrendo, entre crianças, adultos e idosos, mulheres e homens, acercaram-se da viatura ora tocando ora acariciando esperando uma reacção animal do engenho mecânico, ante a surpresa e receio do seu condutor e acompanhantes. No meio deles, um pai e filho. Aquele dirige-se a este dizendo (a língua é nganguela): vês este animal? O filho responde: sim! O pai: pois, ele vai crescer, crescer, crescer até ser muito grande! (o pai aludia a imagem de um enorme camião que vira noutra ocasião como tamanho que a carrinha alcançaria depois de algum tempo). A equiparação de engenhos mecânicos a animais é tal que um helicóptero é percebido (e com forte convicção) como uma mosca gigante e o fumo expulso pelos escapes do motor visto como fezes. O que não percebem é que os dejectos da “mosca” saiam em formas vaporizadas. Mas, o fumo do escape da viatura é perfeitamente percebido como sendo peido, embora estranhem a cor e a frequência do peido do estranho “animal”. É claro que os mais “sábios” entendem ser uma reacção clara de um animal adoentado. Até porque o facto de estar quieto, apesar de roncar, e não fugir ou atacar as pessoas explica tudo.
É uma caricatura com laivos de anedota que parece surreal para quem nunca se embrenhou no extremo e profundo interior de Angola. Mas é a pura realidade de muitas comunidades de Angola, sobretudo daquelas em que a administração pública não só não se faz presente como não tem a sua clara localização ou mesmo a mínima programação administrativa e financeira. Caso para dizer que o Estado (Administração Pública) não está presente em todos os espaços do território angolano apesar de esforços neste sentido. É claro que se afigura ser um problema cuja resolução esta mais na vontade política que passa pela reforma dos modelos administrativos e de gestão financeira do Estado do que nos esforços eleitoralistas dos governantes. Não estaria nada perdido sem as províncias do género, com grandes extensões territoriais, beneficiassem de estatuto económico especial ou de afectação orçamental significativa, pelo menos em razão do tamanho. O kuando kubango é destas províncias (com capacidade de superar a fasquia orçamental destinada à província de Luanda e mais outras duas juntas). De qualquer modo, fica desta realidade, a percepção de que tais comunidades não estão sujeitas as exigências legais impostas pelo Estado. São populações integradas no território nacional sem quaisquer estatutos jurídicos. Não tendo quaisquer identificações que revelem cidadania ou pertença territorial, não podem ser catalogados sequer como cidadãos ou mesmo como estrangeiros. Muito menos como apátridas. Na verdade, aqui o Direito, se empregue na análise fenomenológica, entra em crise. Não podendo mesmo reconhecer quaisquer categorias jurídico-políticas para tais sujeitos. Sem formos ousados na nominação jurídica tais sujeitos ficam próximos de cidadãos-putativos, embora não exerçam a cidadania em momento algum. É uma situação que levanta igualmente outras questões jurídicas interessantes. Por exemplo, coloca-nos na incómoda posição de questionar se não estarão em causa ofensas graves de direitos humanos? Parece absurdo. Mas, a questão-problema nasce do facto de não existir nem Estado nem Lei em tais comunidades. E como a falta de Lei não leva a quaisquer cometimentos de crimes ou delitos civis, o caso recomenda uma análise ontológico-jurídica séria. Pois, não é possível existirem violações lá onde o Direito (Lei no caso angolano) não é vigente. Embora, o Estado (do ponto de vista formal) esteja presente em todos os espaços territoriais delimitados por todos os marcos fronteiriços possíveis, a despeito das falhas administrativas e financeiras neste sentido.
Apesar disto, não é difícil perceber que os membros de tais comunidades não tenham acesso a nada que os leve a perceber da existência de um Estado. Tão pouco, conseguem visualizar um sistema de educação ou saúde pública. Muito menos podem beneficiar de serviços básicos programados no nível central ou local do Estado. E fica ainda mais claro que tais populações não só não estão abrangidas no programa de um milhão de casas como jamais viram alguém que viesse junto dos mesmos para um simples registo eleitoral. Vivem a deriva e a margem da Lei e do Estado para ser mais concreto. Ora, este quadro levanta o problema da dignidade da pessoa humana enquanto desiderato plasmado nas diversas constituições, fruto de acordos internacionais nesta matéria. Angola sendo parte de tais acordos, pode ser encarada como um Estado que “desterra” todos aqueles que não administra retirando-lhes os estatutos de cidadãos. E como tal, não reconhece quaisquer direitos fundamentais e nem materializa junto das comunidades em causa os mais elementares serviços impostos pela necessidade de bem-estar e desenvolvimento dos seus membros. O que sugere a convicção de não reconhecimento de qualquer dignidade a tais populações. Pior que tudo, a estas comunidades não se aplicam critérios econométricos de avaliação do índice de bem-estar alcançados. Por exemplo, não se lhes pode reconhecer pobreza devido ao facto de não se ter conhecimento do grau de satisfação em bens materiais alcançados pelos seus membros, tão pouco se lhes reconhecem capacidades de progressão social e económica dentro do seu espaço comunitário. Enfim, são populações entregues a um completo abandono em pleno século XXI. Era de reconhecida evolução tecnológica, económica e social em que já não se podem reconhecer pessoas estadualmente desenquadradas.
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