segunda-feira, 30 de julho de 2012

YURI DA CUNHA CANTA ARTUR NUNES

DA UTILIZAÇÃO DOS DIREITOS DO AUTOR E IMPLICAÇÕES LEGAIS Albano Pedro Este ano o mercado musical angolano conheceu o lançamento da obra discográfica intitulada Yuri da Cunha canta Artur Nunes da autoria do cantor angolano Yuri da Cunha em que este renomado autor musical da nova geração reanima os sucessos de Artur Nunes, músico e compositor angolano já falecido. Em certos círculos, o surgimento deste disco suscitou polémicas sobre a questão da utilização legal da obra musical e no ambiente familiar de Artur Nunes levou a que os seus membros reclamassem de indemnizações sobre danos eventuais causadas pelo uso indevido das músicas do finado, o que promove a oportunidade para uma abordagem, ainda que lateral, dos direitos inerentes aos autores e suas consequências jurídicas. O conceito legal de coisa, communis opinio, compreende elementos tangíveis e intangíveis susceptíveis de integrarem esferas jurídicas singulares ou colectivas por simples posse ou direito de propriedade efectiva. Neles podemos perceber bens materiais e bens imateriais. Neste último grupo podemos aferir a existência de simples ideias como são as criações artísticas, culturais ou cientificas que genericamente integram os direitos de autores. O que não se confunde, obviamente com a obra concreta editada que representa a sua dimensão material e como tal tangível. Um dos problemas que o Direito das Coisas enfrenta é a titularidade efectiva dos bens imateriais por ser de difícil prova. De uma maneira geral os bens materiais são possuídos mediante título de propriedade seja precário ou não. Ao seu titular é reconhecido o direito de usufruir e dispor do referido bem. Antigamente lhe era reconhecido inclusive o direito de se desfazer por meio de destruição. O Direito romano falava em ius utendi, fruendi et abutendi. Modernamente a última acepção tem sido melhor vista pela ideia de alienação. E então o titular lhe é reconhecido o direito de alienar o seu direito, i.é, de transferi-lo na esfera jurídica de outrem, total (coisas infungíveis) ou parcialmente (coisas passíveis de serem vendidas em componentes separados), provisória (arrendamento, leasing, aluguer) ou definitivamente (venda, trespasse, doação, transmissão sucessória). Normalmente o direito sobre a coisa é legalmente reconhecido e protegido. Ou seja, os títulos são legais. Ainda que não suficientes como são os títulos precários. O registo destes direitos joga um papel fundamental no seu reconhecimento a favor do possuidor ou titular. É por isso que em direitos reais (das coisas) a primazia do registo de direitos é um elemento de suma importância na solução de conflitos entre possuidores ou titulares concorrentes da mesma coisa. Assim, aquele que primeiro registar é lhe reconhecido o direito a coisa. Também se verifica que os bens não possuídos ou titulados nos termos legais acabam integrando o domínio público e como tal titulados pelo Estado que determina a forma de aquisição por particulares. Os bens que integram o domínio público normalmente são tidos como abandonados. Seja por falta de exercício de direitos (o titular é falecido ou simplesmente deixou de exercer o direito correspondente) seja por extravio ou perda com os prazos legais vencidos. Fala-se em res derelictae (coisas abandonadas). Outrossim, os bens quando não se lhes reconhecem um titular ou possuidor efectivo e nem integrem o domínio público acabam sendo vistos como bens abandonados. Caso dos animais domésticos e suas crias que acabam estando em estado selvagem por se furtarem dos cuidados dos seus donos ou animais selvagens que tenham tido donos vivendo nas mesmas condições (não é o caso de animais selvagem que por norma integram o domínio público). Fala-se então de res desperditae (coisas perdidas). Há bens que se consideram como nunca tendo sido titulados ou possuídos. Nunca tiveram donos. São considerados res nullius (coisas de nínguem). Em todos os casos referenciados as coisas são susceptíveis de serem possuídos ou titulados nos termos da lei. Ora, a falta de reconhecimento de uma ideia (criação) ao seu titular pelo simples facto de não o ter registado fá-la-ia cair na disponibilidade geral das pessoas e assim ser considerada res nullius. Qualquer pessoa poderia possui-la ou titula-la licitamente, não fosse a generalidade das leis de Direitos do autor reconhecer ipso facto a publicação da obra artística, literária ou científica como sendo do autor correspondente. Por isso, o critério da publicação da obra é tido como o critério suficiente do direito do autor (Lei n.º4/90 de 10 de Março). Deste modo quem primeiramente publica a obra é tido como o autor da mesma. Daí que o plágio e outras formas de imitação ilícitas sejam aferidas a partir de obras já publicadas. A titularidade da obra é sempre reconhecida ao autor. Nos casos de morte ou incapacidade deste o reconhecimento legal beneficia os herdeiros ou terceiros legalmente reconhecidos. O direito de autor compreende direitos morais (inerentes a ideia ou criação) e direitos patrimoniais (inerentes a obra material publicada). Os direitos morais são inalienáveis e imprescritíveis, já os direitos patrimoniais são alienáveis e a sua duração vai até 50 anos (caso de música) depois da morte do autor. Depois deste prazo, a obra integra o domínio público e cabe ao Estado através do órgão de tutela correspondente (Ministério da Cultura) responder pela posse ou titularidade do mesmo e como tal disciplinar, nos termos da lei, o uso e utilização da referida obra por terceiros. A utilização indevida de direitos de autor, seja na linha de direitos morais seja na linha de direitos patrimoniais responsabilizam o seu autor. A lei fala em crime de usurpação para qualificar a conduta criminal de quem faz uso ilícito da obra artística sem a devida autorização do seu autor, ou tendo sido autorizado exceda os limites da autorização concedida. Neste caso o autor é punido com pena de prisão e multa correspondente. A negligência do autor – que utiliza indevidamente a música sem a consciência de o fazer – é punida com pena de multa. E o procedimento criminal não carece de participação criminal, a menos que se fale em violação de direitos morais. A responsabilidade criminal não dispensa a responsabilidade civil do autor. Este deve sempre indemnizar com o fito de reparar os danos causados na esfera jurídica do autor ou seus herdeiros ou representantes, independentemente da pena de prisão ou multa que lhe tenha sido aplicada. No caso vertente, a utilização dos direitos de Artur Nunes a favor de Yuri da Cunha sê-lo-ia legalmente pela via da autorização daquele por meios dos seus herdeiros tendo em conta que o autor original é falecido. Todavia, nada impede que retome o procedimento tendente a autorização da utilização da obra mesmo depois de publicada e ou intentada uma acção indemnizatória pelo uso indevido da mesma. Os conflitos cíveis (entre particulares) são sempre passíveis de transacção em qualquer fase anterior ao julgamento condenatório. Uma vez autorizada a obra de Yuri da Cunha goza igualmente de protecção legal nos termos dos direitos do autor como obra derivada da obra original de Artur Nunes. Dixit.

DIREITO A MORTE

SOBRE A EVOLUÇÃO ÉTICA DO SUICÍDIO E DA EUTANÁSIA (TEXTO PUBLICADO NO SEMANÁRIO ANGOLENSE) Albano Pedro O debate sobre a possibilidade de um Direito a Morte é cada vez mais crescente no mundo actual em que as tecnologias médicas facilitam a antevisão sobre a irreversibilidade das mortes impostas por doenças terminais. Por isso, também, é crescente o debate sobre a necessidade ética da eutanásia enquanto solução médica e enquanto figura perfeita nascida da transformação axiológica do auxílio ao suicídio como tipo criminal consagrado nos diferentes sistemas jurídicos actuais. Durante muito tempo, o suicídio, enquanto acto intencional de matar a si mesmo (do latim sui “próprio” e caedere “matar”, donde suicaedere – lê-se suicedere), foi visto como crime. Mesmo faltando a percepção lógica sobre a possibilidade de se penalizar o seu autor, que afinal deixa de viver, inibindo assim a eficácia de qualquer sanção a si aplicada. Partindo de orientações imperativas da Bíblia Sagrada através da ordem divina expressa pelo Pentateuco: Não matarás (supondo igualmente a ideia de não morrerás - por morte causada a si mesmo), o Direito canónico influenciou o Direito secular em todo o período medieval europeu levando a que o suicida fosse enterrado agrilhoado como prova de sentença devida a perda intencional e culposa da própria vida. Percebe-se que a Igreja Católica entendesse a vida como obra perfeita da natureza e graça divina. Absolutamente inviolável e como tal inadmissível qualquer ideia da sua extinção. Nesta senda, São Tomás de Aquino, eminente Teólogo, terá proclamado ex-cátedra que o suicídio é uma forma de assassinato, cabendo unicamente a Deus o fim da sua existência. Deste modo, o próprio Direito secular, apoiado pelas balizas do jusnaturalismo atendeu a recomendação do clero pela evidente ideia de que a vida não podia ser confundida com res (coisa) e como tal sujeita a disposição do seu proprietário, e nessa condição, passível de ser destruída tal como era admissível para a vida dos animais e dos escravos por falta de reconhecimento da personalidade jurídica destes. Com o advento do movimento constitucional pós-renascentista, apenas o Estado ganhou o direito de infligir a morte enquanto sanção em sociedades em que é admissível a pena de morte, como se percebe em muitas sociedades modernas que têm consagrado constitucional e legalmente essa grave penalidade. O suicídio perdeu a lógica criminal devido a impossibilidade da aplicação de sanções ao seu autor bem como pela intransmissibilidade da responsabilidade criminal dela decorrente, incapaz, por isso, de ingressar a herança, enquanto universalidade de bens e direitos deixados pela pessoa do suicida (neste caso de cujus), cuja responsabilidade é transmitida aos sucessíveis. Mesmo a tentativa ao suicídio ou o suicídio frustrado encontram resistência quanto a sua consagração nos diferentes sistemas penais modernos. Nem mesmo a teoria jurídico-criminal é consensual quanto a sua viabilidade legal. Entende-se que penalizar quem tenha tentado suicidar-se é estimular o próprio suicídio. Afinal, a própria consciência criminal do acto levaria o candidato ao suicídio a empreender todo o esforço para terminar o acto iniciado devido ao receio de sofrer a penalidade correspondente. Alguns sectores científicos entendem que ao suicídio frustrado não cabe qualquer encaminhamento jurídico pelo facto de que o simples escapar da morte por si só representa um correctivo ao próprio candidato ao suicídio, levando-o ao arrependimento e inibindo-o em consequência de voltar a experimentar o acto. Também é verdade que os sistemas jurídicos não conferem espaços de manobras para os variadíssimos actos que induzem a ideia de suicídio. O homicídio suicídio – em que o individuo mata outra pessoa e em seguida matar-se para não ser preso; Ataque suicida – em que a pessoa ataca com violência tendente a provocar morte com custo da própria vida; suicídio em massa ou pacto suicida – em que muitas pessoas concordam voluntariamente em pôr fim as próprias vidas, etc., são actos completamente inadmissíveis e como tais censuráveis pelo menos do ponto de vista ético quando os mecanismos jurídico-legais não sejam suficientemente eficazes. Já a maioria das legislações penais são concordantes quanto a penalização do auxílio ao suicídio (entre nós, cfr. art.º 354.º Código Penal – CP) por ser um instrumento de repressão idóneo para o desencorajamento da extinção da vida humana. Afinal, o suicídio é considerado a 10ª causa mais importante das mortes humanas em todo o mundo e está provado que factores médicos e psicossociológicos, associados geralmente a doenças orgânicas e a transtornos de personalidade, determinam invariavelmente o suicídio. Apontam-se factores de riscos crescentes neste sentido (desemprego, queda de status social, desilusão afectiva, separação conjugal, etc.), sendo por isso preocupante no âmbito das políticas criminais que haja sinais de encorajamentos direccionados ao seu fomento. Actualmente a eutanásia (suicídio medicamente assistido) vai abrindo brechas contra a imperatividade criminal do auxílio ao suicídio dando espaço para um debate ético da sua possibilidade material e da sua viabilidade jurídica. Entende-se que um doente em fase terminal tem o direito de morrer e por isso não faz sentido que quem o auxilie seja penalizado, sobretudo tratando-se de um Médico, quando aquele implora que se ponha fim a vida devido ao sofrimento patente. Mesmo quando ainda se discute a probabilidade terminal das doenças motivadoras de decisões do género, por simples falibilidade da medicina e das tecnologias a ela inerentes ou, pior ainda, arrepie a admissibilidade ética desta técnica no domínio da Medicina. Não está em causa, pois, qualquer permissividade sobre os diversos motivos que levam ao suicídio. Nem a intenção de levar os sistemas jurídicos a flexibilizarem posições para a sua compreensão e incorporação. O que se pretende é tornar aceitável a necessidade médica do suicídio. E foi esse o desafio levado a cabo pelo Médico norte-americano Jack Kevorkian (também conhecido por Dr. Morte) por ter forçado as instituições americanas a admitirem a possibilidade de um Direito a Morte ao iniciar a cruzada que iria dar lugar a necessidade de legitimar a eutanásia. Assunto ainda hoje muito discutido. Enquanto Médico patologista, auxiliou mais de 130 doentes em fase terminal a aceder a morte e esse empreendimento levou-o a enfrentar, várias vezes, as barras dos tribunais acusado como homicida. O que é certo é que deu vazão ao debate sobre o Direito a Morte que vai ganhando cada vez mais atenção quer de cultores da Medicina ou Direito em especial quer de cultores de ciências sociais e humanas em geral provocando diversidade de opiniões científicas e posições políticas em todo o mundo. E desta crescente preocupação que a humanidade vai assistindo nos tempos modernos nascem fissuras consideráveis ao, até então, incólume Direito a Vida de tal maneira que começa uma abalável caminhada rumo a legitimação de um Direito a Morte como até hoje nenhuma sociedade admitiu abertamente em nome de uma Ética conservadora ou de uma insuficiente justificação científica das mais profundas necessidades humanas. Do ponto de vista jurídico, a legitimação de um Direito a Morte, ainda que parcial – na faceta de Eutanásia – representa o ruir da protecção penal da vida imposta através da criminalização do Auxílio ao Suicídio. O que demonstra uma profunda fragilização criminal deste instituto e a consequente redução da importância penal absoluta do Direito a vida, mesmo com o pretexto de positivar uma simples excepção jurídico-normativa por parte de um legislador aberto a historicidade dos acontecimentos e eventos sociais e flexível a fenomenologia do suicídio enquanto facto social. Da mesma forma, desafia a humanidade a uma nova postura ética perante a Morte, admitindo a sua necessidade jurídica como mecanismo de justificação e de protecção dos Direitos de Personalidade (enquanto corolário do Direito a Vida) de quem voluntariamente se candidata a exercer o acto de morrer como um verdadeiro Direito. Dixit.

CANDIDATOS A DEPUTADOS: A QUESTÃO DA INELEGIBILIDADE DOS CRIMINOSOS E OS EFEITOS JURÍDICOS DA POLÍTICA DE CLEMÊNCIA

(TEXTO PUBLICADO NO SEMANÁRIO ANGOLENSE) Albano Pedro O tema epigrafado vem a propósito da inelegibilidade de candidatos a deputado à Assembleia Nacional por terem sido condenados a pena de prisão em consequência de acção judicial, para desventrar a questão da inelegibilidade das pessoas a cargos públicos por prática de actos criminais bem como averiguar os instrumentos jurídicos que tornam possível a inexistência de responsabilidade criminal pré ou pós-condenatória. Admite-se, sem quaisquer reservas, que a condenação por acção judicial transitada em julgado, em determinadas situações e circunstâncias, tem como consequência o impedimento no exercício de direitos, sobretudo políticos. E quanto a inelegibilidade de pessoas condenadas, a Lei Constitucional – LC (Constituição, segundo o legislador) é eloquente. Os deputados à Assembleia Nacional não podem ser eleitos quando tenham sido condenados com pena de prisão superior a 2 anos (art.º 145.º, n.º 1). A ideia, claramente ética, é a da necessidade de uma gestão parcimoniosa e exemplar da res publicae, i.e., dos interesses e património públicos, por aqueles que exercem a soberania do povo de modo representativo no poder do Estado. Neste sentido, a disposição do art.º 11º n.º 1, alínea e) da Lei 36/11, de 21 de Dezembro - Lei Orgânica Sobre as Eleições Gerais – LOSEG é coerente com os princípios normativos constitucionais. A LC e a LOSEG são terminantes. Não permitem quaisquer excepções neste caso. O que provoca o excesso de não admitir pessoas que tenham cumprido as penas e que pelo comportamento de mérito demonstrado desde a saída da prisão tenham sido consideradas socialmente reabilitadas nos termos da lei competente (art.º 127.º do Código Penal – CP), deitando por terra a finalidade social das penas aplicadas aos criminosos perseguida por esta disposição normativa infraordinária. A LC simplesmente “condena” os condenados a nunca acederem ao cargo de deputado à Assembleia Nacional e instala um conflito hermenêutico vertical de comandos normativos entre o CP e a LC cuja solução favorece a supremacia normativa desta. Por razões de economia gramatical, o legislador evitou estender o impedimento à figura do candidato a Presidente da República. Este é antes de tudo, candidato a deputado nos termos do novo modelo de eleição do Presidente da República consagrado constitucionalmente, ao qual certa doutrina jurídica simpática ao status quo político entendeu denominar por modelo atípico. E sobre a inelegibilidade por condenação criminal não restam dúvidas em homenagem a regra hermenêutica “ubi claris non fit interpretatio” (a clareza normativa dispensa a aplicação de regras de interpretação). Questão interessante, e merecedora desta prosa, é a de saber se os candidatos a deputados que tenham sido condenados nas condições referidas acima beneficiam da amnistia constitucionalmente consagrada, podendo, por conseguinte, invocar esta garantia fundamental para requerer, através dos partidos políticos, a candidatura junto do órgão judicial competente. Com efeito, a LC estabelece que “São considerados amnistiados os crimes militares, os crimes contra a segurança de Estado e outros com eles relacionados, bem como os crimes cometidos por militares e agentes de segurança e ordem interna, praticados sob qualquer forma de participação, no âmbito do conflito político-militar terminado em 2002” (art.º 244.º) e garante que “São considerados válidos e irreversíveis os efeitos jurídicos da amnistia praticados ao abrigo de lei competente.” (art.º 62.º). Analisando o conteúdo da amnistia consagrada na LC percebe-se sem dificuldades que o foco teleológico da fixação do sentido hermenêutico de toda a norma jurídica é o conflito político-militar (conflito armado, para precisão semiótica). Assim, apenas os crimes cometidos no contexto do conflito armado são considerados amnistiados. Acresce-se que o conflito armado em causa é aquele que terminou em 2002. Neste caso, a lei dispõe retroactivamente sobre todos os crimes praticados nestas condições desde a independência da República. O que leva ao claro entendimento que os autores das mortes ocorridas em massa que marcaram o célebre “genocídio” de 27 de Maio de 1977 bem como os autores das mortes e destruição de bens e infra-estruturas públicas e privadas resultantes da guerra civil entre as FALA e FAPLA, entre as FAA e FALA, entre as FAPLA e ELNA, entre as FAPLA ou FAA e FLEC que se arrastou desde 1975 a 2002, estão completamente livres de quaisquer responsabilidades criminais, não podendo, nenhum cidadão invocar tais factos para interpor processos crimes contra tais autores. Eis, o alcance histórico desta disposição normativa. Também se percebe que a consagração de uma norma com tamanho alcance espácio-temporal seja no claro intuito de se enterrar o ódio entre os angolanos e evitar quaisquer formas de intolerância política susceptível de levar a sociedade a incerteza e insegurança jurídica. Na verdade, o legislador procurou garantir a assinatura e aplicação do memorando de entendimento do Luena entre o Governo e a UNITA ao tempo da concessão da amnistia. O que acabou por garantir, por arrasto, a elegibilidade da maioria dos governantes e detentores de cargos públicos actuais que num passado recente estiveram envolvidos no conflito armado. Se assim não fosse, estaria bem patente a vulnerabilidade dos dirigentes do MPLA, UNITA e FNLA a condenações por acções criminais certamente em penas superiores a 2 anos e na generalidade relacionadas com homicídio. Levando a que a maioria dos mesmos não tivesse acesso aos poderes públicos por via do impedimento decorrente da condenação tal como ficou claro desde o inicio. A amnistia (esquecer, do étimo grego) é o perdão geral e abstracto, e como tal dirigido indiscriminadamente a generalidade das pessoas suspeitas de prática de crimes e criminosos que se encontrem em determinadas condições ou que tenham praticado certos tipos crimes. A amnistia prevê que todos aqueles que se encontrem nas condições determinada pelo seu conteúdo beneficiem de perdão dos crimes cometidos e sejam esquecidos os efeitos jurídicos, não podendo serem julgados e condenados (para aqueles que estejam livres até ao momento da sua entrada em vigor) ou devendo ser libertos os que tiverem sido condenados. Neste último caso a amnistia tem efeitos retroactivos por beneficiar a pessoa do réu. Desde logo, a amnistia consagrada na LC é aplicável a agentes cujos actos criminais tenham beneficiado as partes beligerantes ou os poderes instituídos contra forças rebeldes e vice-versa. Militares ou civis que tenham praticado crimes de homicídio, de apropriação indevida de bens e de danos patrimoniais em nome das partes beligerantes; dos mandantes e dos que tenham encoberto criminosos ou tenham facilitado acções criminais para favorecer a parte beligerante; dos que tenham vendido bens e serviços contra as normas penais em benefício de exércitos armados, etc., etc. Aqui, o conceito chave é o de crime em benefício de terceiros envolvidos no conflito político-militar. Sejam indivíduos sejam grupos de indivíduos. Excluem-se deste âmbito todas as acções restantes, designadamente acções criminais em benefício próprio ou individual e em benefício de grupos ou colectividades que não tenham tido quaisquer interesses político-militares considerados pelo conteúdo da amnistia. Compete a Assembleia Nacional conceder amnistia (art.º 161º, alínea g) – LC. É diferente do indulto e da comutação de pena pelo facto destes instrumentos serem da competência do Presidente da República – PR (art.º 119.º alínea k) – LC, e serem aplicados em benefícios de certos cidadãos ou estrangeiros dentro das conveniências da sua condição de chefe de Estado. O indulto tem como efeito a extinção total da pena, enquanto a comutação extingue parcialmente a pena, ou seja, estando o réu a cumprir 5 anos de prisão pode ver reduzida para 3 ou 2 anos. O indulto e a comutação de penas beneficiam apenas réus que estejam a cumprir penas de prisão, nunca aqueles que ainda não tenham sido julgados como acontece com a amnistia. A LC não prevê, como a generalidade dos sistemas jurídicos penais, que o indulto ou a comutação de penas seja concedido pelo PR ouvido o Governo pelo facto do Presidente da Republica ser ele mesmo o Governo (titular do Poder Executivo). Também não está claro que apenas o PR concede indulto e comutações de penas, à competência de conceder amnistia assistida a Assembleia Nacional está agregada também a capacidade de conceder “perdões genéricos” que por argumento de maioria de razão (ad maius) incluem o indulto e comutação de penas. De todo o modo, tanto a amnistia quanto o indulto ou a comutação de penas são considerados instrumentos de clemência. A amnistia e o indulto podem sugerir algum diferendo gnoseológico visto serem duas formas de extinção total da responsabilidade criminal e das sanções correspondentes. Com elas as penas aplicadas extinguem-se completamente, deixando seus beneficiários ex-novo no quadro das relações jurídico-criminais. Acontece que existe uma subtil diferença para além diferença dos órgãos com poderes de os decretarem. Enquanto, a amnistia beneficia tantos os criminosos condenados quantos os agentes de crimes que ainda não tenham sido condenados, o indulto (tal como a comutação) de penas beneficiam apenas os criminosos, i.e., aqueles que estejam a cumprir a pena no momento é que é decretado pelo PR. Um outro ângulo de análise do problema está em saber as consequências destes instrumentos de clemência para criminosos que tenham cumprido integralmente as suas penas no momento em que são decretados. Ou seja, que efeitos jurídicos conferem aos criminosos que já tenham cumprido as respectivas penas. A resposta é de ordem teleológica. O surgimento destes instrumentos de natureza penal deveu-se a necessidade de implementação de políticas de clemência com vista a redução da população prisional verificadas determinadas situações. Logo, faz sentido que apenas beneficiem aqueles que ainda estejam a cumprir as suas penas (caso da amnistia, indulto e comutação de penas) e aqueles que ainda não estejam a cumprir penas estando em condições criminais de as cumprirem (caso da amnistia). Contudo, o problema torna-se diferente tratando-se de eliminar os registos criminais das pessoas condenadas e que tenham já cumprido a totalidade da pena. Por argumentos ad maius apenas a amnistia possibilita a eliminação de cadastro criminal dos agentes que tenham cumprido a pena no âmbito temporal em que é aplicada, já que é a única forma de clemência que retroage abrangendo situações jurídicas remotas e como tais ocorridas antes da sua entrada em vigor. O que quer dizer que os efeitos das condenações com pena de prisão cumpridas não produzem quaisquer efeitos no âmbito temporal da aplicação da amnistia. O que já não faz sentido para o indulto e para a comutação de penas porque estas só abrangem as penas em fase de execução para extingui-las (indulto) e para reduzi-las (comutação). No caso específico do indulto, a lei impõe que o réu beneficiário tenha cumprido pelo menos metade da pena ao tempo da sua entrada em vigor (art.º 126.º, parágrafo 1º - CP). Vale prevenir a quem se acha escudado na amnistia - como garantia constitucional - que este “artefacto” normativo “instalado” na LC com puro objectivo político apenas protege os dirigentes angolanos no âmbito interno, i.e., dentro do território angolano. Nada impede que os mesmos sejam condenados por crimes contra humanidade em tribunais internacionais. Porque estes crimes não prescrevem, para além de que a amnistia assim consagrada não tem qualquer efeito no âmbito do Direito Internacional Penal e, como tal, sem reflexos nos respectivos comandos normativos e procedimentos judiciais. A própria LC, colaborando com o sistema penal internacional, admite que se tais crimes (ocorridos no âmbito do conflito armado) forem qualificados como genocídio ou crimes contra humanidade (crimes hediondos ou violentos – para usar a linguagem dispersiva e abstracta utilizada pelo legislador constitucional) não prescrevem e os seus autores não podem ser amnistiados e nem podem gozar de liberdade provisória (art.º 61.º). Também serve de aviso à navegação, que estas formas de clemência analisadas (amnistia, indulto e comutação de penas) não ilibam os seus beneficiários (suspeitas, arguidos ou réus) da respectiva responsabilidade civil. Portanto, estes não deixam de reparar os danos causados por virtude dos crimes cometidos, embora perdoados. Por fim, vale deixar claro que o impedimento invocado para a candidatura se refere pessoas condenadas em julgamento com trânsito em julgado e que em consequência tenham o registo da pena aplicada no seu cadastro criminal. Este impedimento, não se refere a simples arguidos ou suspeitas de cometimento de crime. Se refere apenas aos agentes de crimes aos quais tenham sido aplicadas as respectivas penas e que estas penas tenham duração superior a 2 anos, ainda que não tenham cumprido integralmente a respectivas penas. Dixit.