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segunda-feira, 17 de dezembro de 2012
CANDIDATOS A DEPUTADOS: A QUESTÃO DA INELEGIBILIDADE DOS CRIMINOSOS E OS EFEITOS JURÍDICOS DA POLÍTICA DE CLEMÊNCIA (Publicado no Semanário Angolense) - Albano Pedro
O tema epigrafado vem a propósito da inelegibilidade de candidatos a deputado à Assembleia Nacional por terem sido condenados a pena de prisão em consequência de acção judicial, para desventrar a questão da inelegibilidade das pessoas a cargos públicos por prática de actos criminais bem como averiguar os instrumentos jurídicos que tornam possível a inexistência de responsabilidade criminal pré ou pós-condenatória.
Admite-se, sem quaisquer reservas, que a condenação por acção judicial transitada em julgado, em determinadas situações e circunstâncias, tem como consequência o impedimento no exercício de direitos, sobretudo políticos. E quanto a inelegibilidade de pessoas condenadas, a Lei Constitucional – LC (Constituição, segundo o legislador) é eloquente. Os deputados à Assembleia Nacional não podem ser eleitos quando tenham sido condenados com pena de prisão superior a 2 anos (art.º 145.º, n.º 1). A ideia, claramente ética, é a da necessidade de uma gestão parcimoniosa e exemplar da res publicae, i.e., dos interesses e património públicos, por aqueles que exercem a soberania do povo de modo representativo no poder do Estado. Neste sentido, a disposição do art.º 11º n.º 1, alínea e) da Lei 36/11, de 21 de Dezembro - Lei Sobre as Eleições Gerais – LOSEG é coerente com os princípios normativos constitucionais. A LC e a LOSEG são terminantes. Não permitem quaisquer excepções neste caso. O que provoca o excesso de não admitir pessoas que tenham cumprido as penas e que pelo comportamento de mérito demonstrado desde a saída da prisão tenham sido consideradas socialmente reabilitadas nos termos da lei competente (art.º 127.º do Código Penal – CP), deitando por terra a finalidade social das penas aplicadas aos criminosos perseguida por esta disposição normativa infraordinária. A LC simplesmente “condena” os condenados a nunca acederem ao cargo de deputado à Assembleia Nacional e instala um conflito hermenêutico vertical de comandos normativos entre o CP e a LC cuja solução favorece a supremacia normativa desta.
Por razões de economia gramatical, o legislador evitou estender o impedimento à figura do candidato a Presidente da República. Este é antes de tudo, candidato a deputado nos termos do novo modelo de eleição do Presidente da República consagrado constitucionalmente, ao qual certa doutrina jurídica simpática ao status quo político entendeu denominar por modelo atípico. E sobre a inelegibilidade por condenação criminal não restam dúvidas em homenagem a regra hermenêutica “ubi claris non fit interpretatio” (a clareza normativa dispensa a aplicação de regras de interpretação).
Questão interessante, e merecedora desta prosa, é a de saber se os candidatos a deputados que tenham sido condenados nas condições referidas acima beneficiam da amnistia constitucionalmente consagrada, podendo, por conseguinte, invocar esta garantia fundamental para requerer, através dos partidos políticos, a candidatura junto do órgão judicial competente. Com efeito, a LC estabelece que “São considerados amnistiados os crimes militares, os crimes contra a segurança de Estado e outros com eles relacionados, bem como os crimes cometidos por militares e agentes de segurança e ordem interna, praticados sob qualquer forma de participação, no âmbito do conflito político-militar terminado em 2002” (art.º 244.º) e garante que “São considerados válidos e irreversíveis os efeitos jurídicos da amnistia praticados ao abrigo de lei competente.” (art.º 62.º).
Analisando o conteúdo da amnistia consagrada na LC percebe-se sem dificuldades que o foco teleológico da fixação do sentido hermenêutico de toda a norma jurídica é o conflito político-militar (conflito armado, para precisão semiótica). Assim, apenas os crimes cometidos no contexto do conflito armado são considerados amnistiados. Acresce-se que o conflito armado em causa é aquele que terminou em 2002. Neste caso, a lei dispõe retroactivamente sobre todos os crimes praticados nestas condições desde a independência da República. O que leva ao claro entendimento que os autores das mortes ocorridas em massa que marcaram o célebre “genocídio” de 27 de Maio de 1977 bem como os autores das mortes e destruição de bens e infra-estruturas públicas e privadas resultantes da guerra civil entre as FALA e FAPLA, entre as FAA e FALA, entre as FAPLA e ELNA, entre as FAPLA ou FAA e FLEC que se arrastou desde 1975 a 2002, estão completamente livres de quaisquer responsabilidades criminais, não podendo, nenhum cidadão invocar tais factos para interpor processos crimes contra tais autores. Eis, o alcance histórico desta disposição normativa.
Também se percebe que a consagração de uma norma com tamanho alcance espácio-temporal seja no claro intuito de se enterrar o ódio entre os angolanos e evitar quaisquer formas de intolerância política susceptível de levar a sociedade a incerteza e insegurança jurídica. Na verdade, o legislador procurou garantir a assinatura e aplicação do memorando de entendimento do Luena entre o Governo e a UNITA ao tempo da concessão da amnistia. O que acabou por garantir, por arrasto, a elegibilidade da maioria dos governantes e detentores de cargos públicos actuais que num passado recente estiveram envolvidos no conflito armado. Se assim não fosse, estaria bem patente a vulnerabilidade dos dirigentes do MPLA, UNITA e FNLA a condenações por acções criminais certamente em penas superiores a 2 anos e na generalidade relacionadas com homicídio. Levando a que a maioria dos mesmos não tivesse acesso aos poderes públicos por via do impedimento decorrente da condenação tal como ficou claro desde o inicio.
A amnistia (esquecer, do étimo grego) é o perdão geral e abstracto, e como tal dirigido indiscriminadamente a generalidade das pessoas suspeitas de prática de crimes e criminosos que se encontrem em determinadas condições ou que tenham praticado certos tipos crimes. A amnistia prevê que todos aqueles que se encontrem nas condições determinada pelo seu conteúdo beneficiem de perdão dos crimes cometidos e sejam esquecidos os efeitos jurídicos, não podendo serem julgados e condenados (para aqueles que estejam livres até ao momento da sua entrada em vigor) ou devendo ser libertos os que tiverem sido condenados. Neste último caso a amnistia tem efeitos retroactivos por beneficiar a pessoa do réu. Desde logo, a amnistia consagrada na LC é aplicável a agentes cujos actos criminais tenham beneficiado as partes beligerantes ou os poderes instituídos contra forças rebeldes e vice-versa. Militares ou civis que tenham praticado crimes de homicídio, de apropriação indevida de bens e de danos patrimoniais em nome das partes beligerantes; dos mandantes e dos que tenham encoberto criminosos ou tenham facilitado acções criminais para favorecer a parte beligerante; dos que tenham vendido bens e serviços contra as normas penais em benefício de exércitos armados, etc., etc. Aqui, o conceito chave é o de crime em benefício de terceiros envolvidos no conflito político-militar. Sejam indivíduos sejam grupos de indivíduos. Excluem-se deste âmbito todas as acções restantes, designadamente acções criminais em benefício próprio ou individual e em benefício de grupos ou colectividades que não tenham tido quaisquer interesses político-militares considerados pelo conteúdo da amnistia.
Compete a Assembleia Nacional conceder amnistia (art.º 161º, alínea g) – LC. É diferente do indulto e da comutação de pena pelo facto destes instrumentos serem da competência do Presidente da República – PR (art.º 119.º alínea k) – LC, e serem aplicados em benefícios de certos cidadãos ou estrangeiros dentro das conveniências da sua condição de chefe de Estado. O indulto tem como efeito a extinção total da pena, enquanto a comutação extingue parcialmente a pena, ou seja, estando o réu a cumprir 5 anos de prisão pode ver reduzida para 3 ou 2 anos. O indulto e a comutação de penas beneficiam apenas réus que estejam a cumprir penas de prisão, nunca aqueles que ainda não tenham sido julgados como acontece com a amnistia.
A LC não prevê, como a generalidade dos sistemas jurídicos penais, que o indulto ou a comutação de penas seja concedido pelo PR ouvido o Governo pelo facto do Presidente da Republica ser ele mesmo o Governo (titular do Poder Executivo). Também não está claro que apenas o PR concede indulto e comutações de penas, à competência de conceder amnistia assistida a Assembleia Nacional está agregada também a capacidade de conceder “perdões genéricos” que por argumento de maioria de razão (ad maius) incluem o indulto e comutação de penas. De todo o modo, tanto a amnistia quanto o indulto ou a comutação de penas são considerados instrumentos de clemência.
A amnistia e o indulto podem sugerir algum diferendo gnoseológico visto serem duas formas de extinção total da responsabilidade criminal e das sanções correspondentes. Com elas as penas aplicadas extinguem-se completamente, deixando seus beneficiários ex-novo no quadro das relações jurídico-criminais. Acontece que existe uma subtil diferença para além diferença dos órgãos com poderes de os decretarem. Enquanto, a amnistia beneficia tantos os criminosos condenados quantos os agentes de crimes que ainda não tenham sido condenados, o indulto (tal como a comutação) de penas beneficiam apenas os criminosos, i.e., aqueles que estejam a cumprir a pena no momento é que é decretado pelo PR.
Um outro ângulo de análise do problema está em saber as consequências destes instrumentos de clemência para criminosos que tenham cumprido integralmente as suas penas no momento em que são decretados. Ou seja, que efeitos jurídicos conferem aos criminosos que já tenham cumprido as respectivas penas. A resposta é de ordem teleológica. O surgimento destes instrumentos de natureza penal deveu-se a necessidade de implementação de políticas de clemência com vista a redução da população prisional verificadas determinadas situações. Logo, faz sentido que apenas beneficiem aqueles que ainda estejam a cumprir as suas penas (caso da amnistia, indulto e comutação de penas) e aqueles que ainda não estejam a cumprir penas estando em condições criminais de as cumprirem (caso da amnistia). Contudo, o problema torna-se diferente tratando-se de eliminar os registos criminais das pessoas condenadas e que tenham já cumprido a totalidade da pena. Por argumentos ad maius apenas a amnistia possibilita a eliminação de cadastro criminal dos agentes que tenham cumprido a pena no âmbito temporal em que é aplicada, já que é a única forma de clemência que retroage abrangendo situações jurídicas remotas e como tais ocorridas antes da sua entrada em vigor. O que quer dizer que os efeitos das condenações com pena de prisão cumpridas não produzem quaisquer efeitos no âmbito temporal da aplicação da amnistia. O que já não faz sentido para o indulto e para a comutação de penas porque estas só abrangem as penas em fase de execução para extingui-las (indulto) e para reduzi-las (comutação). No caso específico do indulto, a lei impõe que o réu beneficiário tenha cumprido pelo menos metade da pena ao tempo da sua entrada em vigor (art.º 126.º, parágrafo 1º - CP).
Vale prevenir a quem se acha escudado na amnistia - como garantia constitucional - que este “artefacto” normativo “instalado” na LC com puro objectivo político apenas protege os dirigentes angolanos no âmbito interno, i.e., dentro do território angolano. Nada impede que os mesmos sejam condenados por crimes contra humanidade em tribunais internacionais. Porque estes crimes não prescrevem, para além de que a amnistia assim consagrada não tem qualquer efeito no âmbito do Direito Internacional Penal e, como tal, sem reflexos nos respectivos comandos normativos e procedimentos judiciais. A própria LC, colaborando com o sistema penal internacional, admite que se tais crimes (ocorridos no âmbito do conflito armado) forem qualificados como genocídio ou crimes contra humanidade (crimes hediondos ou violentos – para usar a linguagem dispersiva e abstracta utilizada pelo legislador constitucional) não prescrevem e os seus autores não podem ser amnistiados e nem podem gozar de liberdade provisória (art.º 61.º). Também serve de aviso à navegação, que estas formas de clemência analisadas (amnistia, indulto e comutação de penas) não ilibam os seus beneficiários (suspeitas, arguidos ou réus) da respectiva responsabilidade civil. Portanto, estes não deixam de reparar os danos causados por virtude dos crimes cometidos, embora perdoados.
Por fim, vale deixar claro que o impedimento invocado para a candidatura se refere pessoas condenadas em julgamento com trânsito em julgado e que em consequência tenham o registo da pena aplicada no seu cadastro criminal. Este impedimento, não se refere a simples arguidos ou suspeitas de cometimento de crime. Se refere apenas aos agentes de crimes aos quais tenham sido aplicadas as respectivas penas e que estas penas tenham duração superior a 2 anos, ainda que não tenham cumprido integralmente a respectivas penas. Dixit.
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