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segunda-feira, 2 de setembro de 2013
O PODER DO ESTADO DIANTE DO INQUILINATO - Albano Pedro
A ordem de transferência dada pelo Ministério do Comércio aos armazenistas e retalhistas instalados na zona da Macambira em Luanda para a sua reinstalação na zona periférica do Benfica, não podia deixar de arrepiar a opinião pública longe dos meandros das necessidades do Estado e da imperatividade dos seus órgãos afins ao caso. Já porque se trata de uma transferência que vem a provocar um catálogo de problemas económicos e sociais que começam das próprias empresas e alcançam os clientes habituados àquela zona comercial, atravessando uma fila de interessados divisando investidores, parceiros comerciais, comissionistas, gestores e trabalhadores, para além de assalariados ou “biscateiros” com intermediários a mistura, que enfrentam um verdadeiro “sismo” com os prazos e condições rígidas e nalguns casos impróprios para o tipo de relação jurídica que se estabeleceu entre os empresários e o Ministério da Defesa que assume um contrato de inquilinato comercial com os mesmos. São situações que, por potenciarem um ambiente de instabilidade económica e social, ainda que sensível numa esfera aparentemente reduzida de indivíduos, se estendem, com a sua onda de consequências a toda uma sociedade luandense e não só arrastando consigo os farrapos das dificuldades dos clientes habituados ao local (por razões de distância), das dívidas supervenientes dos locatários, da falência técnica (não judicial, pelo menos) dos agentes económicos e mais do que tudo isso, o desemprego em massa dos trabalhadores que não tiverem condições para manter o vínculo laboral na nova área comercial indicada.
Não está, obviamente, em causa a razoabilidade da ordem dada ou do seu sentido de utilidade pública. Senão, estaríamos obrigados a concorrer para a avaliação do papel constitucional do Estado (seus órgãos e serviços) na observância dos direitos fundamentais dos cidadãos e das empresas que a estes pertencem num exercício exaustivo que nos levaria a “desbravar” um outro texto, para além de nos apartar do caminho que pretendemos deslindar com o título encimado. Prefere-se entender, ainda que com coimas, que há motivos aceitáveis para a tomada de decisão do Ministério do Comércio que levaram ao seu acatamento “automático” num visível espírito de solidariedade institucional pelo Ministério da Defesa que assume directamente a relação de arrendamento com os ocupantes do perímetro comercial que se pretende abandonado nos prazos já difundidos pela comunicação social. Até porque o Estado, é, pelos seus actos normalmente nobres (porque tendentes a satisfazer uma maioria em detrimento dos interesses minoritários legalmente admitidos como sacrificáveis), sempre tomado por uma “pessoa de bem”, i.é, interessada em não prejudicar nada e nem ninguém, sem prejuízo dos questionamentos sobre a lisura dos processos que envolvem os seus actos. Partimos desse facto que confere uma suposta “presunção de inocência” sobre os actos dos agentes do Estado para nos atermos a simples análises procedimentais, muito longe da matéria de facto sobre o qual se inclinam os múltiplos direitos substantivos que podem ser decantados envolvendo as respectivas partes. E é precisamente a propósito da lisura nos procedimentos que nos prestamos em analisar o caso subiudice num exercício pedagógico-social orientado para o avivar das percepções, tanto dos operadores públicos quanto dos agentes económicos envolvidos como partes, sobre a teia de responsabilidades jurídicas que envolve a relação de modo a razoabilizar as posições das partes numa perspectiva de equidade e de justiça.
Importa assentar a teia de relações jurídicas que se impõe ao “caso macambira”, dispensadas as relações entres os armazenistas e lojistas entre si e as que se estabelecem entre os empregadores e os trabalhadores, entre outras mais que pouco ou nada interessam ao caso. Num primeiro plano está o Ministério do Comércio que orienta com os seus prazos e condições a transferência dos comerciantes. Aqui, o Estado assume a sua função natural de proporcionador de bem-estar económico e social, que no caso tem que ver com o reordenamento urbanístico-comercial (pretende que os comerciantes se instalem em zonas adequadas ao plano de ordenamento territorial da província), assistido pelo invariável poder de império (ius imperi), materializado com o privilégio de execução prévia contra o qual particular nenhum pode opor-se sem diluir o papel do Estado, retirando com isso a ideia construtora de uma sociedade assente no primado da lei (Direito) e na observância das liberdades individuais (Democracia). Portanto, é uma ordem para ser cumprida. Embora se lhe questionem os procedimentos e sobretudo os mecanismos de compensação, cuja análise dispensamos neste texto. Num segundo plano, está o Ministério da Defesa que tem assumido uma relação de arrendamento com os mesmos comerciantes. Se o Ministério do Comércio age assistido pelo poder que lhe advém da sua qualidade de ente do Direito Público, o Ministério da Defesa assume uma relação completamente vinculada pela observância de normas do Direito Privado (Direito do Inquilinato) onde o conteúdo do contrato assumido lhe obriga a agir como um particular qualquer colocando-o inclusive no mesmo plano de obrigações e deveres em que estão os comerciantes. Não tem que impor nem mais e nem menos do que está estipulado no acordo e nem tem que agir fora de uma vontade mutuamente acordada. Portanto, está num plano em que não tem poder de agir como Estado usando o seu vasto poder de forçar a vontade dos particulares para aquém ou além dos limites do próprio contrato assumido. Ou seja, se o Ministério do Comércio é o Estado a agir com o seu poder de se impor a vontade dos particulares e como tal veiculado no âmbito do Direito Público, o Ministério da Defesa é o Estado na faceta de um particular, sem poder de impor absolutamente nada aos outros particulares (no caso os comerciantes) a sua vontade unilateral e como tal ao arrepio das normas contratuais. Concluímos assim que no “caso macambira” os comerciantes enfrentam o Estado sob dois prismas, investido por isso, de duas facetas ou “máscaras”, se preferirmos. O que, obviamente, obriga a procedimentos diferenciados da parte dos comerciantes em relação as duas entidades representativas do Estado.
Desde logo, em nenhum momento se afiguraria no ângulo dos interesses dos comerciantes questionarem ou resistirem as ordens do Ministério do Comércio. É um desastre procedimental que arrepia as mais cuidadas operações jurídicas no tratamento do caso. O Ministério do Comércio não é parte do contrato de arrendamento. E por isso, não tem que dar justificações aos comerciantes e tão pouco estes devem esperar quaisquer posicionamentos do mesmo na estabilidade da relação contratual com o Ministério da Defesa. Em rigor, tudo devia ser tratado entre o Ministério do Comércio e o Ministério da Defesa. E este, sim, seria a única entidade a lidar com os comerciantes por ser a contra-parte na relação do inquilinato comercial estabelecida. Tudo se passaria, tal como deve ser visto do ponto de vista jurídico-legal, como se a zona da Macambira, em que se encontram os comerciantes, pertencesse ao Ministério da Defesa que é a final o senhorio. Diante da necessidade de desocupar o local, o proprietário (Ministério da Defesa) é a pessoa lesada de modo directo, já que tem obrigações a observar com os seus inquilinos (tem de cumprir com os prazos do arrendamento e tem de observar integralmente o acordo com os armazenistas e os lojistas). A responsabilidade civil e as vicissitudes exigidas ou caídas aos arrendatários comerciais só podem ser assumidas pelo Ministério da Defesa. E neste caso, tenho dúvidas que uma rescisão urgente retire quaisquer responsabilidades de indemnização e de reparação de danos diversos ao Ministério da Defesa.
Na verdade, o poder de império que assiste o Ministério do Comércio dispensa quaisquer obrigações negociais como as que estão a ocorrer com os comerciantes. As necessidades públicas não se compadecem com as necessidades específicas dos indivíduos e tão pouco se vergam ao tempo ou aos prazos que estes solicitam ou procuram impor, mesmo pela via das negociações. O que devia ter acontecido, era que o Ministério da Defesa na qualidade de senhorio teria cuidado de organizar todos os mecanismos de compensação para assistir os seus inquilinos sob pena de sujeitar o Estado a responsabilidade civil (dever de indemnizar) pela inobservância do contrato de arrendamento com os comerciantes. Quando a ordem foi dada pelo Ministério do Comércio, a corrida para a estabilidade das condições dos comerciantes devia ser assumida pelo Ministério da Defesa e nunca pelos comerciantes, salvo se estes estiverem em condições contratuais irregulares. O que a acontecer, desonera, logicamente, o senhorio de quaisquer obrigações. Ou seja, a negociação seria estabelecida entre o Ministério da Defesa e os comerciantes, estando o Ministério do Comércio equidistante, ou na melhor das hipóteses próximo de acudir o seu “parente directo” (Ministério da Defesa) por meio da chamada solidariedade institucional prevenindo-o de assumir em nome do Estado as consequências resultantes dos prejuízos contraídos pelos comerciantes em todo o processo que impõe a urgente e prejudicial transferência.
Ironicamente, o Ministério da Defesa prefere “transferir” as suas responsabilidades negociais aos comerciantes que, não sei se tecnicamente desassistidos ou se contratualmente enfraquecidos, acabam “se batendo” de modo inglório contra o Ministério do Comércio que, não sendo parte no contrato de arrendamento comercial, nada tem que ver com as suas exigências e os meandros que levaram os comerciantes a instalarem-se naquela “zona comercial” da cidade de Luanda. Essa atitude grosseiramente negligente do Estado-particular assumida pelo Ministério da Defesa só tem de o levar ao endividamento público pela miríade de obrigações de indemnizações que certamente vão florescer em quantidades estonteantes até ao desfecho do “caso macambira”. Da situação assim visualizada só se pode depreender que os advogados ou consultores jurídicos ligados as partes envolvidas não se apresentam com a postura técnico-profissional exigida para um final justo e harmonizado do caso, onde o Estado deve sair menos onerado do que parece já estar e os particulares (comerciantes e tudo o resto) devem contrair o mínimo de danos possíveis. Se os comerciantes devem aguardar por quaisquer reparações de danos, devem fazê-lo na expectativa de que o Ministério da Defesa é a única e suficiente responsável pelos mesmos. Evitando, desviar-se para o Ministério do Comércio que está longe de assumir judicialmente quaisquer responsabilidades para além daquelas que se lhe impõem na qualidade de sujeito de Direito Público no uso de instrumentos como o privilégio de execução prévia que levaram a desencadear a expropriação por utilidade pública que se verifica neste caso. Dixit.
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