No mercado das relações humanas e sociais, a expressão da palavra e a exposição do pensamento são as mercadorias mais preciosas!
sábado, 14 de junho de 2014
RECURSOS JUDICIAIS EM CASOS DE CRIME - Albano Pedro
O Prof. Grandão Ramos, eminente penalista angolano, define o recurso judicial em matéria de crimes como sendo “ o mecanismo processual mediante o qual uma decisão proferida por um tribunal (tribunal «a quo») é reexaminada e reapreciada por outro tribunal funcionalmente superior (tribunal «ad quem») – Cfr: Direito Processual Penal – Noções Fundamentais, 1995, Editora Ler & Escrever – leitores Reunidos, Lda., pág. 391, 1º§ -, estando claro que é a possibilidade de se solicitar a um outro tribunal (hierarquicamente superior) a apreciação da decisão de um determinado tribunal a favor de quem se sente atingido e/ou lesados pelas suas consequências. Sendo certo que o recurso deve ser interposto ao Tribunal Supremo nos termos do ordenamento jurídico angolano vigente nessa matéria. A lógica dos recursos assente no facto de que o juiz que proferir a sentença não pode ele mesmo revê-la sponte sua (voluntariamente) sob pena de ferir os valores da certeza e segurança jurídicas e a própria soberania dos tribunais, uma vez que o juiz julga ouvindo e obedecendo tão só a sua própria consciência orientada para a justiça e em estrito respeito da lei.
Via de regra é a parte condenada a solicitar o recurso para ser ver livre das consequências da sentença proferida contra si – quer ver extinta a punição arbitrada na sentença, quer ver a justiça reposta nos casos que se sinta injustamente condenado e inocente, etc., - mas, há casos em que o recurso interessa a parte queixosa. Imaginemos o caso em que a pena solicitada não seja suficientemente persuasiva e tenham por exemplo exorbitado injustamente o âmbito da moldura penal abstracta. O indivíduo condenado cometeu um crime de homicídio e tenha sido condenado a uma pena que exorbita a pena mínima da moldura penal abstracta de tal maneira que resulta em escândalo para a parte queixosa – o réu condenado (e assim já considerado criminoso) matou com visíveis requintes de crueldade recheado de manifesto dolo, tendo antes levado ao sofrimento extremo a sua vítima, e venha a ser condenado a pena de 10 anos de prisão efectiva, quando o homicídio assim cometido segundo os pressupostos legais levaria a uma pena concreta a ser fixada entre 20 a 24 anos de prisão da sua moldura abstracta assim estabelecida nos termos do art.º 315.º do Código Penal, por se tratar de um homicídio qualificado. Os recursos feitos nestes termos seguem-se a sentença proferida pelo juiz e chama-se recursos extraordinários. Esta espécie de recursos, quando necessária, via de regra devem ser solicitado mediante declaração expressa ou tácita antes do julgamento, i.é, a parte interessada deve antecipar o pedido de recorrer a sentença futura, mesmo que venha a ser benéfica a si. É uma medida de cautela processual que leva o juiz a considerar a possibilidade da sua sentença vir a ser recorrida pela parte manifestante. O recurso ordinário deve ser feito em prazo legalmente sancionado de acordo com a espécie de processo penal em que tramita o caso sub iudice. Quando o recurso ordinário já não seja possível, ou porque o prazo para recurso expirou ou porque a instância de recurso esgotaram (por exemplo a decisão é a última no âmbito da pirâmide judicial, i.é, tenha sido proferida pelo último juiz possível) há lugar ao trânsito em julgado, i.é, diz-se que a sentença judicial transitou em julgado porque já não pode ser recorrida ordinariamente. É nesse momento em que se torna possível uma nova e última espécie de recursos: o recurso extraordinário. Como termo sugere, é extraordinário o recurso que é interposto contra decisões judiciais transitadas em julgado, enquanto os recursos ordinários, que vimos, pressupõe que o processo judicial se mantenha recorrível ou com a decisão sem trânsito em julgado.
Ora, os recursos judiciais de carácter extraordinário tendem a ser reclamados para resolver situações de clamorosa injustiça e, geralmente, nos casos em que a pena já esteja a ser executada – o condenado já pagou a multa (pena pecuniária) ou já está encarcerado (pena de prisão). Existem três tipos de recursos extraordinários em processo penal. O recurso ao Plenário do Tribunal Supremo, que visa a uniformização da jurisprudência numa base comparada entre a sentença com transito em julgada recorrida e uma outra sentença judicial igualmente com transito em julgado sobre a mesma matéria proferida pelo mesmo tribunal (no caso Tribunal Supremo). O objectivo desta espécie de recurso é eliminar a discrepância entre as decisões judiciais sobre a mesma matéria evitando soluções jurisprudenciais dissonantes que afectem a boa e correcta interpretação da lei colocando em perigo a harmonia do sistema jurídico vigente.
Já o recurso de revisão de sentença visa, como o termo sugere, rever o conteúdo material (direitos) e ou formal (regras processuais) quando se percebe que o réu foi injustamente condenado, punido desmedidamente, etc. É um recurso que assenta na necessidade de rever os pressupostos em que se baseou a decisão judicial. Imaginemos um caso de um indivíduo acusado de furto de um veículo de que se vem a perceber ser proprietário da mesma depois de ter sido condenado e estar a cumprir cadeia. O furto, como facto criminal, desaparece dando lugar a inexistência do crime de que foi acusado. Vejamos ainda situação de uma outra pessoa que tenha sido julgado por crime de burla ou extorsão e condenado exemplarmente, mas que vem a provar-se que o facto em que assenta o crime de burla é afinal uma retenção feita no âmbito do incumprimento de um contrato pela contraparte que o acusou. Aqui, a relação contratual afasta a possibilidade criminal por se tratar de uma consequência natural de relações jurídicas disciplinadas pelo Direito Civil, e portanto, no mínimo ser considerado, caso seja, um ilícito civil – se não devia proceder a retenção – e nunca um ilícito criminal. Assim desaparece igualmente a matéria criminal dando lugar a extinção do conteúdo da sentença e da respectiva pena. Ou seja, o recurso de revisão de sentença visa, no essencial, a revisão do conteúdo da sentença por assentar em factos falsos embora juridicamente possíveis e como tais merecedores de uma sentença assim arbitrada. Ou seja, o réu não devia ter sido condenado se o tribunal soubesse da verdade dos factos (matéria de crime) ou não tivesse observado certas normas ou pressupostos da tramitação judicial (matéria processual), pois que a verdade formal; aquela que é apurada no respeito das normas processuais é a que é considerada contrariamente a verdade material que a mais das vezes encontra muitas causas de justificação – exclusão criminal – na própria lei. É o caso de um indivíduo condenado que efectivamente matou alguém podia ser condenado por crime de homicídio, todavia, veio a saber-se que é um doente mental devidamente atestado pelos serviços médicos. O que exclui a culpa e a consequente possibilidade de ser condenado. A demência torna-o inimputável e em consequência não pode ser condenando conduzido a cadeia. Aqui a verdade formal nega a verdade material e provoca o sentimento de injustiça no senso comum que leva a pensar que os tribunais favoreceram aquele que devia ser considerado criminoso. Pelo menos as pessoas assim pensam e se manifestam contrariados quando o juiz decide pela verdade formal em detrimento da verdade material, crua e nua na mente das pessoas vulgares. Portanto, no caso de uma sentença de revisão o objectivo é excluir a culpabilidade do réu refazendo os pressupostos da sua condenação.
É diferente do recurso da cassação (recour du cassation – do francês), o último tipo de recurso extraordinário na ordem de análise que estabelecemos, que visa a extinção da própria sentença e os respectivos feitos. Não se fala em rever a sentença aplicando uma outra em substituição e cuja novidade dos factos carreados seja favorável ao réu devidamente condenado ao abrigo do processo que impendeu sobre a sua acusação. Não. Aqui pretende-se que a sentença deixe de existir pura e simplesmente devolvendo a pessoa do réu a liberdade como se o julgamento nem sequer tivesse existido. Portanto, o recurso de cassação assenta no erro sobre a pessoa, sobre o facto ou sobre o tipo e pressupostos do processo de um julgamento que proclama uma injustiça clamorosa nos termos dos quais a condenação resulta em manifesta injustiça. Ou seja, enquanto o recurso de revisão vai contra uma sentença justa mas baseada em pressupostos falsos ou com fraco poder probatório contra o réu, o recurso de cassação vai contra uma sentença injusta; uma sentença ab initio vista como impossível de ser proferida por juiz sensato e a luz de um julgamento justo. E.g: o réu foi condenado por um tribunal de natureza penal que não devia ter arbitrado a sentença por se tratar de um ilícito cível e não criminal; o réu foi condenando a cumprir cadeia por um facto que nem é crime a luz do ordenamento jurídico vigente, ou porque o facto foi despenalizado a luz de uma nova lei vigente ao momento da condenação ou porque o facto foi erradamente qualificado como crime quando afinal é um mero ilícito civil, ou na pior das hipóteses nem sequer é um facto jurídico. Recordemos do exemplo fáctico que debitamos num artigo publicado neste periódico dando conta de uma sentença de dissolução matrimonial de um casamento religioso e que como tal não chegou a ser formalizado pelo registo civil a luz do ordenamento jurídico angolano. Ora, para a Lei, esse casamento não existe e portanto a própria sentença não existe igualmente. Portanto, o objectivo da Sentença de cassação é eliminar as sentenças baseadas em erros de julgamento. Erro sobre pessoa do réu – error in persona - (o individuo condenado pelo crime de furto nem sequer estava no local do furto quando tudo aconteceu ou se prova que é parecido ao verdadeiro autor do crime segundo um retrato falado ou imagem real do acontecimento).
Questão interessante em recurso de cassação, e que nenhum penalista angolano responde ou debita com necessário interesse doutrinal, é a de saber a razão do prazo dessa espécie de recurso ser apenas de 2 anos nos casos regulares e de 4 nos casos devidamente justificados. Parece que o legislador socorre-se da regra axiológica dormientibus non socurrit ius (correspondente ao dito popular: “camarão que dorme, a onda leva”) em homenagem a necessidade de celeridade do réu interessado em se abstrair da situação de falso julgamento que impende sobre si, inocentando-se a luz da lei. Há como que uma aceitação do “comportamento masoquista” do réu em ver-se graciosa e orgulhosamente na pele de um criminoso. Pois, vencido o prazo, o réu suporta a condenação injusta a que esta submetido. Portanto, pesa sobre ele uma condenação por inobservância de meros pressupostos processuais e não por ter efectivamente cometido o crime. Se o recurso de cassação não é interposto no devido momento, o réu cumpre a pena como se tivesse cometido o crime embora as autoridades judiciais e o público em geral saibam que o não cometeu efectivamente; embora todos saibam que é inocente. Apenas um indulto ou a amnistia pode salvar o réu de cumprir integralmente a pena nos casos em que possa ocorrer. Dixit.
Sem comentários:
Enviar um comentário