quarta-feira, 28 de janeiro de 2009

A DECISÃO DOS TRIBUNAIS EM NOME DO POVO, SEGUNDO CREMILDO PACA


Albano Pedro


Da sua recente obra técnico-literária entitulada: DIREITO DO CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO ANGOLANO lançada em Portugal sob a chancela da prestigiada editora Almedina, Cremildo Paca traz ao público angolano sobretudo a classe de juristas e legisladores, elementos de grande valia para reflexão e reforma do sistema judicial e do ordenamento jurídico angolano, sendo oportuno o debate em torno da mesma, já pela actualidade da agenda sobre a elaboração e aprovação da nova Constituição da República de Angola.

Feliz ventura, esta de ler, em pouco tempo, dois nomes (Lazarino Poulson e Cremildo Paca) lançados no mundo da literatura jurídica administrativa anunciando passagem da autoridade técnica a nova geração de juristas angolanos. A sistemática da obra reflecte a docência que exerce em Direito Público com ênfase para as matérias administrativas, embora o título confine a obra ao contencioso administrativo angolano. É sensível o rigor textual e a oportunidade técnica da terminologia usada descrevendo uma mente bem treinada e com surpreendente capacidade expositiva. Muito há para ler, estudar e analisar nesta obra, contudo o que é superior é a combinação do discurso expositivo e o indagativo. Em cada capítulo os assuntos correm em harmoniosa descrição ao mesmo tempo que são questionados ou respondidos de modo que o leitor entremeia-se num verdadeiro diálogo com o autor da obra numa leitura cumplicizante que proporciona uma compreensão em crescendo. Ao primeiro contacto com obra, não resisti o reconhecimento da magnitude do empreendimento que é de longe o mais profundo dentre os escritos jurídicos produzidos por angolanos dos últimos dez anos com excepção de muito poucas. Porém, umas das questões levantadas elevam a obra a uma categoria muito superior e o adequa ao momento histórico vivido com a organização do ordenamento jurídico angolano.

Ao abrirmos a página 55 em nota de rodapé encaramos-nos com ela: “Com que fundamento” – indaga Cremildo Paca – “Os tribunais decidem em nome do povo?”. Esta questão já se me avizinhou quando Walter Ferreira, activista social, orador e estudioso angolano em matérias políticas e jurídicas, em debate personalizado procurou demonstrar a falta de legitimidade popular dos tribunais, em termos em que os juízes deviam ser eleitos pelo povo. A lógica da inquietação assenta no facto de que representatividade do povo, por qualquer órgão do Estado é feita mediante mandato. Sendo este, sempre conferido livremente pelo povo através do sufrágio universal, directo e secreto nos termos das regras democráticas modernas. Terá o legislador angolano relevado um mandato indirecto para fundamentar está pretensão ou estaremos perante a transportação inconsciente do espírito legislativo colonial ao qual a reforma constitucional não foi suficientemente revogador para afastar a sua previsão do actual ordenamento jurídico angolano?

Tais inquietações políticas encorpadas pelo Direito levam Cremildo Paca a adiantar-se no debate sobre a questão sustentando que “ Se o legislador constitucional consagrou o princípio democrático assente nos princípios da soberania popular e da representação democrática, nos termos em que o “povo é, ele mesmo, o titular da soberania do poder, mas também o povo é o titular e o ponto de referencia desta mesma legitimação” [Gomes Canotilho, Direito Constitucional, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7ª Edição, Almedina, 2003, p. 287], a questão que pode ser levantada é a de saber se, de facto, os tribunais podem decidir em nome do povo. Na verdade, nos termos da teoria da representação democrática, o órgão a quem se confere o mandato, uma vez legitimado, age e exprime a vontade geral em nome do povo que representa. A propósito, diz Reinhold Zippelius que “o povo actua através da vontade dos seus representantes a quem confere mandato para exprimir a vontade em seu lugar” [REINHOLD ZIPPELIUS, Teoria Geral do Estado, 3ª Edição, Fundação Calouste Gulbenkian, 1997, 238]. Significa que os representantes devem ser mandatados pelo povo, porquanto é no mandato popular que reside o fundamento legitimador do poder dos representantes, bem como o poder de decidir em nome desse mesmo povo, pelo que urge indagar com que fundamento os tribunais angolanos administram a justiça “ em nome do povo” (art.º 120.º/1 da L.C), sendo que estão desprovidos de órgãos de carácter representativos, por falta de legitimidade directa, própria ou típica do princípio democrático, previsto no artigo 3º da Lei Constitucional. Ora, não havendo delegação e/ou representação formal e material do povo, a actividade e “posição constitucional do juiz não é pautada pela relação de representação ou pelo carácter de representatividade” [Gomes Canotilho, Direito Constitucional…ibidem], de tal modo que a formulação constitucional que determina que os tribunais angolanos administram a justiça “ em nome do povo”, pelo menos, não é de aceitar e é de alcance duvidoso, por os tribunais angolanos terem uma mera legitimidade legal e não democrática. Logo, não é aceitável falar-se em decisão judicial ou administração da justiça em nome do povo, como se o mesmo povo tivesse conferido mandato. Os tribunais angolanos, enquanto órgãos de soberania, decidem em nome do estado que integram e da Lei. Na verdade, quem na ordem constitucional angolana legitimamente decide e exerce poderes de representação em nome do povo são o Presidente da República (L.C, 56.º/1; 57.º/1) e a Assembleia Nacional (L.C, 78.º/1).” (vide: nota de rodapé 51, pág. 55).

Não será novidade nenhuma se sustentarmos que tal indagação nasce de um exercício de lógica elementar, i.e., é claro que se os tribunais decidem em nome do povo devem ser mandatados para o efeito. Para além de que a possibilidade de eleição popular de juízes não é completa novidade. Em alguns países os Juízes de Paz (Brasil) ou Juízes de Direito (Estados Unidos) são eleitos pelo voto popular. Da mesma forma, está fora a vulgar discussão doutrinal levantada com a questão de saber se os juízes devem ser eleitos pelo voto popular ou aceder aos cargos mediante selecção e formação orientada, donde correntes que “chumbam” o voto por permitir que a “populaça” socorrida por emoções seleccione os piores magistrados (entre velhacos, astutos e incompetentes) a semelhança de outros poderes, comprometendo gravemente a paz social mais do que é comprometida pelos restantes órgãos soberanos.

Entretanto a novidade está em que o discurso leva a descortinar o véu sobre o problema da legitimidade popular do poder judiciário como terceiro órgão soberano do Estado, que ao longo de anos e anos de estudos científicos passou encoberto aos olhos de investigadores e especialistas do Direito. De tão elementar, precisaram-se decádas, para o descobrir (situação digna do retrato essencial de ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA de José Saramago). É por isso uma conquista doutrinal para o Direito angolano e não só. Afinal, com que fundamento mesmo os tribunais sem mandato popular decidem? Eis, a paixão que desperta o discurso!

O que é certo é que Cremildo Paca ajuda-nos a retirar a venda e panoramizar o mandato dos juízes em Angola. Nos termos do artigo 44.º da Lei 18/88 – Lei do Sistema Unificado de Justiça o Juiz Presidente, o Juiz Vice-Presidente e os demais juízes do Tribunal Supremo são nomeados e exonerados pelo Presidente da República. Assim, nem mesmo se fala em legitimidade legal. O mandato é derivado de um órgão soberano – é indirecto – e portanto ensaiou, o legislador angolano, a legitimidade popular indirecta, espécie, esta de “alcance duvidoso” parafraseando Cremildo Paca.

Mesmo em países de democracia aperfeiçoada, como os EUA em que os juízes federais são eleitos entre si, estabelecendo aí o princípio da separação de poderes entre os órgãos de soberania, é no uso de autênticos poderes despóticos que o fazem com todos os títulos (meritíssimo, venerando, etc.) e “praxes” em que se escudam. Pois, se não são eleitos pelo povo como ousam falar em nome deste? Mais. Cremildo Paca ajuda-nos a perceber que no âmbito dos órgãos soberanos, o poder judicial é o único que “encravou” no tempo revelando fortes nuances dos sistemas feudais e imperiais, característicos dos reinos, ante aos sistemas democráticos modernos pontuados pela figura do Estado. Onde vem então o estatuto de órgão soberano?

A inversa também é verdade! E Cremildo Paca propõe: “Daí que, a semelhança do que se disse em relação aos tribunais, seja, também, necessário reanalisar a terminologia legal para aprovação de leis, prevista no art.º 6.º da Lei 18/93, de 30 de Julho, sobre o formulário de diplomas legais. Estará mais conforme com os princípios da soberania popular e da representação democrática, consagrados na Lei Constitucional, se, no formulário de diplomas legais, no acto legislativo parlamentar, ao invés da fórmula adoptada no formulário legal e utilizada para aprovação de leis, se consagrar a seguintes redacção: “Nestes termos, ao abrigo do artigo 88.º da Lei Constitucional, por mandato do Povo (ou em nome do povo), a Assembleia Nacional aprova a seguinte Lei”. Só com base na formulação proposta e os tribunais a decidirem em nome do Estado e da Lei, estaremos a preencher as dimensões materiais e as “dimensões organizativo-procedimentais” [Gomes Canotilho, Direito Constitucional…ibidem] dos princípios da soberania popular e da representação democrática na ordem constitucional angolana.” (vide: nota de rodapé 51, pág. 55). E não é verdade? Se os órgãos soberanos eleitos pelo povo exercem o poder em nome deste, porque não decidir sempre em nome do povo? Porque não os próprios parlamentares sempre que aprovem um diploma legal? Porque não assinar o diploma legal “em nome do povo”. Finalmente, o presidente da República, em nome do mandato popular, nunca devia falar em seu nome pessoal!

Que dizer pois, do discurso proposto? Desde logo Cremildo Paca aparta-se da orientação metodológico-legalista do Direito procurando desfazer-se dos modelos rígidos dos sistemas políticos e de governo clássicos. Abandona a navegação cega dos neo-positivistas kelsenianos e integra a esquerda jurídica em meio ao legalismo rígido das “escolas” do Direito angolano pela proposta de reforma jurídico-legal e cria uma “ruptura epistemológica” (parafraseando o sociólogo angolano Rafael Aguiar) com a sua geração isolando-se numa frente nova. Esta postura técnico-literária tem desde logo de ser novidade! E é de facto! Em Portugal onde a obra foi lançada, corrente sobre a legitimidade dos juízes começa a fazer escola pela novidade que traz. Ter esgotado nas bancas ao primeiro lançamento é uma justificação óbvia. Não é por acaso que o ilustre Marcelo Rebelo de Sousa, proeminente jus-publicista português atesta em posfácio que “É, pois, bem-vinda a publicação destas lições, além do mais pioneiras e promissoras.” Finalmente, Cremildo Paca inscreve a sua obra na primeira fila de escritos técnicos com importância doutrinal para o universo jurídico nacional e internacional. Que sirva sobretudo aos legisladores a bem da nação!

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