sexta-feira, 30 de janeiro de 2009

QUANDO A VIGÊNCIA DO DIREITO É EXPRESSÃO CULTURAL

PARA HOMENAGEAR CARLOS CÔSSIO
O egologismo cossiano versus positivismo kelseniano*

Albano Pedro

(Publicado no Jornal de Angola, suplemento Vida Cultural sob título: Direito como expressão cultural)

Um dos debates pouco desenvolvido entre operadores do Direito angolano, quando desventradas as entranhas da Filosofia do Direito é o referente a ontologia das normas jurídicas. Debate este que serviria para apurar um assunto de fundo que se coloca com a questão de saber se o Direito Positivo angolano deve manter a matriz ocidental (raiz romano-germânica) ou fundar-se na cultura dos povos de Angola (matriz costumeira) e assim aproximar-se mais a natureza cultural dos angolanos, diminuindo a tensão epistemológica (comportamento-acção) nos indivíduos. Este debate que procura analisar a essência da norma jurídica é semelhante aquele que analisa, no domínio metafísico, a ratio essendi do Direito enquanto realidade social segundo as perspectivas do Positivismo Kelseniano ou Neo-positivismo e do Egologismo de Carlos Côssio. Para entender o problema revela-se imperioso destacar um esquema de análise preliminar assente em questões como: Existe alguma identidade entre o conteúdo das leis vigentes em Angola e o sentimento social e cultural dos angolanos? Servirá o Direito Positivo angolano de origem ocidental a consciências nacionais radicadas em raízes tradicionais africanas? Ou procurará o Direito Positivo angolano exprimir valores da cultura europeia num ideal de unificação das consciências ou de unidade nacional?

Para semelhantes questões Hans Herald Kelsen (filósofo e jurismetodologista alemão) baniria o conflito de compreensão in limine com a lógica básica do legalismo: A Lei é a única expressão válida do Direito Positivo. Assim, se é legítimo (por poder transmitido pelo povo) o órgão (Assembleia Nacional) que aprova as leis escritas, logo é legítima a sua vigência, não importando quem esteja satisfeito ou insatisfeito com as mesmas. Assim, a situação em que se envolveu o antigo Governador da Província do Cuando Cubango (vide caso Kamutukuleni julgado em Angola pelo Tribunal Supremo que expõe a morte de velhos acusados de feitiçaria por suposta ordem daquela autoridade administrativa) na necessidade de se decidir entre a imposição das regras do costume e a vigência imperativa das Leis revela um conflito jurídico desnecessário, visto que a Lei é aqui um imperioso, incontornável e absoluto instrumento de socialização (o que torna válida a condenação por crime de homicídio contra o mesmo nesta óptica). Eis a posição de Kelsen, também conhecida por Positivismo Legalista ou Positivismo Kelseniano e feita trave mestra de todos os sistemas jurídicos romano-germânicos vigentes em quase toda a Europa continental e países colonizados donde o Direito Positivo angolano. A Lei “como realidade pura e dura” (para parafrasear o urbanista angolano Cláudio Furtuna) é vista em Kelsen com a lupa das ciências exactas passeando toda a sua ostensiva geometria ao ponto de afastar materialmente as demais fontes do Direito como Direito Costumeiro (apenas necessária quando comporta normas conforme a Lei consuetudo secundum legem), Jurisprudência (as decisões dos tribunais são validadas pela própria Lei) e a Doutrina (como já mera opinio iuris sem por isso mesmo qualquer influência reformativa sobre a Lei vigente). É contra esta corrente, insensível a humanização das regras de sociabilização, que se opõe uma outra: Teoria Egológica do Direito ou Egologismo. Devido a perspectiva cultural que toma o nosso estudo impõe-se a análise do problema colocado a partir desta visão conceptual do Direito de Carlos Côssio.

Carlos Côssio nasceu na Argentina. Tendo concluído a sua formação em Filosofia foi, contudo, aluno do próprio Kelsen a quem viria replicar através do ensino da Filosofia do Direito. A primeira vista a terminologia que concebe para identificar a sua corrente trai a nossa compreensão arrastando-nos a um conceito próximo referente a preservação do meio ambiente. Porém, Carlos Côssio preocupa-se com algo mais profundo – enquanto centro da própria existência natural – o homem, o sujeito, o ego. E o determina como base da origem da norma, da acção legal e do comportamento jurídico. Como bom discípulo procura não discordar dos ensinamentos do mestre senão com a augusta pretensão de aprofundá-lo como o fez Platão em relação a Sócrates. Por isso, Carlos Côssio não levanta problemas como os relativos a crise instrumental do direito como os que surgem quando nos remetemos a análise comparada entre os Direitos romano-germânicos e os Direitos anglo-saxónicos em que se debatem e rebatem postulados lugares-tenentes como a oralidade e a escrita como fundamentos da positividade jurídica. Ao invés, Carlos Côssio justifica a Lei como instrumento suficiente de sociabilização humana.

Quando Hans Herald Kelsen sustentou que a validade do Direito consiste na unidade normativa do sistema, ou seja, que apenas a coerente concatenação de ponta a ponta entre a Constituição, as leis ordinárias e os regulamentos passando pelas sentenças judiciais e actos administrativos emitidos com base neles se exprime como norma fundamental necessária a validade do sistema jurídico, Ota Weinberg reagiu dizendo que a validade de um sistema jurídico não está na ordem jurídica mas nas instituições sociais. È preciso, diz este filósofo alemão, alargar o campo de observação para as instituições sociais, como o Estado, a família, a propriedade privada e outras para obter a validade jurídica; a validade de um sistema normativo como ordem jurídica é um facto sociológico-institucional, que só pode ser conhecido mediante observação sociológica.

Carlos Côssio porém adentra-se na análise da validade do sistema jurídico e proclama uma nova visão em três dimensões: O Sentido da Conduta Humana, O Tempo Jurídico e a Intersubjectividade. A validade da norma assenta na legitimidade e isto está não no sistema jurídico mas em cada cidadão. É o que Carlos Côssio entende por Direito Subjectivo. É desnecessário fazer das normas precedentes a base das normas em vigência pois não há qualquer garantia que o legislador tenha uma ideia coerente de unidade jurídica ao ponto de nesta se desencantar a validade do sistema. Portanto, as pessoas agem de acordo com o direito que tem introjectado nelas e não conforme a norma vigente e é isso o critério não só da validade como o da justiça. Não se conseguirá uma decisão mais coerente conforme a Lei do que aquela que se funda no ego humano. E é isso a realidade! A norma gélida e imóvel no momento da sua entrada em vigor é porém animada pelas relações de choques entre os sujeitos. Do plano estático transfere-se para o plano móvel através da conduta, do juízo dos próprios agentes do Direito.

Mais. O critério da validade deve ser subjectivo, porque o Tempo Jurídico é sempre virtual. O Juiz não julga no tempo em que realmente aconteceu o acto, logo o tempo não é real para que a norma jogue o papel de validade absoluta como desejado pelo Professor Kelsen. Até ao julgamento, verificam-se vários processos, passa muito tempo, sendo possível neste lapso de tempo que a conduta por julgar deixa de ser censurável (deixa de ser crime por exemplo) e até mesmo perder o sentido da conduta humana. É por isso, lógico que cessant ratione legis cessant lex ipsa.

Finalmente, a intersubjectividade como determina o egologismo é a base das relações sociais estabelecidas pelo Direito. O homem não é senão uma plataforma egocêntrica a qual repousa o “cosmos” da valoração ética e moral da norma pública ou privada geometricamente concebida e “parida” do âmago do poder público enquanto mecanismo consensual de sociabilização da comunidade. É pois, na relação entre um indivíduo e outro que nasce o juízo concreto da norma, a sua oportunidade histórica, a sua validade.

Carlos Côssio terá sido um pioneiro na humanização da norma jurídica? Te-lo-ia, decerto, se o jus naturalismo ao longo dos séculos não reclamasse já de tamanho realismo no processo de validade das normas jurídicas. Com efeito, a questão da validade é subjectiva na medida em que o homem é o critério do que seja justo. Já Emmanuel Kant quando proclamou “Age de tal modo que a máxima da tua ação se possa tornar princípio de uma legislação universal.” como base da percepção jurídica, segundo juízos apriorísticos derivados do imperativo categórico, terá seguramente pensado a subjectividade normativa como critério da expressão formal do Direito.
Nos quimbos (enquanto microcomunidades socioculturais angolanas) o direito é pensado e materializado segundo padrões subjectivos da realidade cultural como de resto é a natureza ontológica do Direito Consuetudinário. Que falar então da regra do precedente judiciário que anima os direitos de raiz anglo-saxónicos?

Destarte, não restam dúvidas que a validade do sistema jurídico assenta na humanização da norma, sendo o Direito expressão clara da cultura dos povos. Entretanto, o mérito de Carlos Côssio está em fazer a “enxertia” do Direito Natural ao Direito Positivo, tornados numa unidade de coerência necessária.

Contudo, a teoria egológica de Carlos Côssio, não prevaleceu ante a opulência alcançada pelo pensamento do seu mestre. Hans Herald Kelsen com a sua Teoria Pura do Direito é o “deus” do Direito europeu continental contemporâneo e o mentor-mor do positivismo jurídico moderno. Sem nunca ter visto proclamado o seu “acto revolucionário” no direito moderno em 1983 Carlos Côssio faleceu.


* BIBIOGRAFIA COMPULSADA

- LARENZ, Karl – Das Problem der Rechtsgeltung, 1929, 2ª ed.;
- SAVIGNY, Friedrich K – Juristische Methodenlehere, Editada por G. WESENBERG, 1951;
- WEINBERGER,Ota – Rechtslogik, 2ª Edição, 1989; Norm und Institution, 1988; Recht, Institution und Rechtspolitik, 1987;
- CÔSSIO, Carlos – Teoría Egológica del Derecho y el Concepto Jurídico de la Libertad, 1944.

1 comentário:

  1. Parabéns padrinho pelo Brilhante e hodierno Artigo. Uma verdadeira aula de sapiência que nos convida à uma viagem para a necessidade do debate ontológico sobre o Direito Positivo Vs Direito Costumeiro em Angola.
    Boa Nova: cessant ratione legis cessant lex ipsa.

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