domingo, 25 de janeiro de 2009

QUESTÕES PÚBLICAS DO DIREITO ANGOLANO
O problema da moral no exercício de direitos humanos fundamentais

Albano Pedro

(Texto publicado no Semanário A CAPITAL)

Várias escolas teóricas nasceram a propósito da relação de precedência entre o Direito e a Moral. A do “mínimo ético” é a mais proeminente delas. Exposta pelo filósofo inglês Jeremias Bentham e aperfeiçoada por vários autores, dentre os quais, o alemão Georg Jellinek está teoria procura aclarar a ideia de que em toda a norma jurídica esta imanente uma regra moral. Ensaio esta abordagem a propósito de uma questão desenvolvida em televisão (Entrevista apresentada pelo canal 2 da TPA a 19 de Maio de 2008) pelo meu par nas lides do Direito, Lazarino Poulson, o qual, a dado passo da entrevista, defendeu a ideia próxima da necessidade de, no comportamento interactivo dos cidadãos, dever invocar-se mais a Moral que o Direito, visto que o simples cidadão despido da mais estruturante ideia da coisa jurídica não está preparado para defender-se com normas em face a demanda social na composição de conflitos e imposição de interesses. Esta ideia também defendida, em entrevista radiofónica, em tempos que levam anos pelo então Procurador Municipal Moisés Moma Capeça, também meu par nas lides do Direito, em termos de ser expressa como a sociedade angolana regista uma gritante falta de cultura jurídica razão pela qual os criminosos superabundam, levanta um debate que propõe um discurso jurídico organizante, visto que esta corrente se generaliza a galope pela perigosa superficialidade com que trata o fenómeno jurídico no social angolano.

Nos dias que correm, é de defensibilidade precária a ideia de que a Moral deve ser invocada antes do Direito no quadro dos comportamentos sociais. Este pensamento pretende a pretensa ideia de que numa sociedade estatalizada a Moral é de relevante necessidade. Não é assim desde o iluminismo contratualista de John Locke, Jean-Jacques Rousseau, Voltaire, Montesquieu e outros importantes nomes em que se pensou no Estado como uma entidade integradora de vontades formalizadas pela Constituição, tornando-se, esta no principal acordo entre os homens e ipso facto no Código de conduta das sociedades desde então. A Estatalização das sociedades modernas retirou, há muito, a pretensão medieval de se fazer conduzir as sociedades humanas através dos supremos ditames da Moral laudamente defendidos pelas regras religiosas infundidas pelo catolicismo romano. Com a organização das sociedades modernas na modalidade de Estado, a sociedade estabeleceu-se e organizou-se em termos de ser permitido um único instrumento de conduta dos homens: o Direito.

É pois certo que a Moral é uma realidade necessária a manifestação do Direito. É uma verdade de inelutabilidade tal que não existe Direito sem Moral. Esta é uma realidade substantiva àquela donde a ideia Espinosiana de realidade sub estante, i.e., aquilo que está por detrás, ou o que sustenta. Não sendo de aceitabilidade gratuita a ideia de existência de uma norma jurídica se quer cuja integração sistemática no conjunto normativo do Direito não seja assistida pelas mais elementares bases da Moral, sendo por isso uma realidade anterior a própria conduta jurídica. É assim que a Boa-Fé, enquanto reservatório de toda acção do Moral, se tornou no princípio estruturante de todo Direito, amplamente identificado no Direito Privado, quer inspirando os actos quer estruturando os contratos com outros princípios a ele devedores como o da Liberdade Contratual, da Vinculatividade, da Pontualidade (Pacta Sunt Servanda), da Irrevogabilidade e Intangibilidade, da Estabilidade (Rebus Sic Stantibus), da Prioridade Temporal da Constituição ou Registo das Relações de Créditos entre outros. Ainda no domínio dos contratos, enquanto realidade dominante no mundo jurídico, constatamos que pela base da Moral (representada pelo Princípio da Boa-Fé) são admissíveis importantes desvios aos princípios da Vinculatividade, da Pontualidade e da Irrevogabilidade e Intangibilidade através da instrumentalização de regras contratuais como a Reserva de Propriedade (Pactum Reservati Domini), a Excepção do não Cumprimento da Obrigação, a possibilidade ex-lege da Resolução do Contrato entre outros importantes engenhos legais. Para sustentar a estreita relação entre a Moral e o Direito muitas figuras e exemplos podem ser chamados a colação com toda a facilidade que permite a operação mental de um Jurista, sem deixar de referir que a própria materialização social do Direito só é possível pela conduta moral dos indivíduos e mesmo das instituições, quando juridicamente pessoalizadas.

Defender um projecto discursivo nos termos do qual se pretende entender a Moral como uma realidade socialmente invocável é admitir a rotura contratual dos homens através do Estado e aceitar o recurso ao passado histórico bíblico ou darwiniano em que as sociedades humanas estavam próximas do exercício instintivo da coexistência social. Vem daí que, não há anomalia nenhuma quando o comportamento do cidadão angolano é infestado pela invocação e convocação quase crónica do Direito e seus comandos em todos os seus actos, sobretudo em face das instituições públicas. O problema estará certamente na disfuncionalidade do Estado angolano que se capacitou e se especializou como um instrumento cerceador dos mais elementares direitos dos cidadãos, quer pela inoperância do sistema de justiça quer por ineficácia das instituições públicas em geral ao ponto dos cidadãos se sentirem na obrigação de os reclamarem continua e progressivamente.

Em Estados organizados o cidadão, embora consciente dos seus Direitos, não tem necessidade de os invocar pelo simples facto de ter as instituições judiciais e administrativas do Estado em pleno funcionamento. A própria sociedade civil organizada, multisectorizada e maturada pelo senso de justiça social surge muitas vezes muito mais interessada na defesa dos direitos dos particulares ao ponto de suavizar a necessidade de recurso particular ao expediente legal ou jurídico. Não é, infelizmente, o caso de Angola em que o cidadão empobrecido e entregue a si mesmo pelo Estado – enquanto pessoa jurídica de condão comportamental público – com cariz ora errante ora predador (subsídios colhidos da obra Abordagem Metodológica das Classes Sociais em Angola, da autoria do eminente cientista político angolano Nelson Pestana “Bonavena” publicado na Revista LUCERE – revista académica da UCAN, 2 de Junho de 2005, páginas 55 a 71), se obriga a auto-tutela de todos os seus interesses chegando mesmo a se ver muitas vezes no dever sobrevivencial de se defender contra o próprio Estado.

Vem deste raciocínio que o Estado angolano, actualmente resistindo de modo regular na veste de Estado-Predador (embora eventualmente esta historiometrização não coincida com a do autor ora citado) e muitas vezes se elevando ao sumo estatuto de Estado-Criminoso, passe a marginalização do princípio penal societas delinquere non potest, sempre criou argumentos relevantes para o simples cidadão se ver constantemente ameaçado. Este, fartas vezes se vê espoliado, usurpado, vilipendiado e até economicamente empolado pelo próprio Estado. São exemplos patentes, que perfilam aos milhares, os casos das expropriações abusivas de moradores dos bairros da Boavista, Cambambas e tantos outros em Luanda e outras províncias de Angola sem quaisquer compensações dignas de um cidadão como tal, a greve mais duradoura do mundo operada pelos trabalhadores da extinta ANGONAVE terminou impune como todas outras ilegalidades, abusos de direitos e mesmo barbaridades protagonizados pelos senhores do poder. Não estranha por isso que a par da invocação constante do Direito o cidadão se faça socorrer de uma gravosa e quase inexplicável incredulidade para com as instituições do Estado e para com todo o sistema de justiça material angolano. Dixit.

Sem comentários:

Enviar um comentário