SOBRE A POSSIBILIDADE DE RECONHECIMENTO DE UM DIREITO A MORTE
Albano Pedro*
Para este tema, não vem a propósito a questão da permissibilidade da morte como um direito reconhecido ou reconhecível aos homens. Tema, aliás, afastado quer da jurisdicidade dos valores sociais e humanos quer da ética das macro organizações sociais modernas – em que sobressai o Estado, já que a sobrevivência dos valores mais elementares das comunidades humanas está estreitamente relacionada com a preservação da vida. A vida como valor fundamental a existência social é defendida em todas as realidades políticas, permitindo-se em muitos poucos casos a sua extinção.
Porém, a morte como um instrumento de solução de situações juridicamente tuteladas é enquadrada de forma insuspeita na cultura dos povos, já quando se permite o aborto – para atender a casos especiais em que esteja em causa a integridade física (sobrevivência condicionada da mulher grávida) ou moral (aborto permitido em casos de violação) da mãe. A pena de morte não se afasta desta realidade. A aplicação desta grave penalidade surge na sequência da tutela de bens jurídicos fundamentais a sociabilidade humana que a pessoa do delinquente põe em causa.
Ponto assente é o “acórdão” lavrado entre a maioria dos Estados modernos sobre o afastamento da possibilidade da morte como direito autónomo. Angola é parte deste espírito quer prescrevendo de forma directa quando consagra a proibição da pena de morte (artigo 22º, n.º2 da Lei Constitucional – Doravante LC) quer de forma indirecta quando estabelece a protecção da vida (artigo 20º, in fine e artigo 22º, n.º1 - LC), mesmo em situações excepcionais (artigo 52º, n.º 2 –LC), embora seja um dado valorativo da moderna constituição angolana.
Passe o quadro desenhado, verifica-se nos dias de hoje a tendência universal de se razoabilizar a possibilidade da morte como um instrumento ao serviço da medicina sobretudo para os casos clínicos irreversíveis. Surge o debate para a sua institucionalização na forma de eutanásia ou suicídio assistido. Embora, correntes de especialidades procuram não confundir um e outro com argumentos juridicamente irrelevantes uma vez que numa e noutra situação há a morte “administrada” com fundamentos clínicos aceitos pelo paciente assim contemplado.
Esta realidade é legalmente vivida em alguns países. O Estado de Oregon (EUA) foi o primeiro a permitir explicitamente a um médico prescrever drogas letais com vista ao termo da vida do paciente. A Holanda tem legalizado a Eutanásia desde o ano de 2002. O movimento pró-eutanásia é hoje crescente procurando impor a necessidade de uma morte digna aos doentes terminais subtraindo-os de um prolongado e desnecessário sofrimento. A figura de Jack Kevorkian (apelidado Dr. Morte), médico americano preso por crime de homicídio, após um julgamento polémico e mediatizado, por ter administrado drogas letais a pedido do seu paciente e consentimento dos familiares deste desencadeou o movimento que hoje ganha tribuna nos debates legais da maioria dos estados dos Estados Unidos e no mundo inteiro.
A verdade é que a eutanásia encontra uma “folga” legal deixada pela maioria dos sistemas penais que não estabelece a criminalização do suicídio. O que levanta a questão de saber se o auxílio ao suicídio deve ser incriminado. Nem o suicídio nem a tentativa de suicídio são criminalizados em muitos países. O suicídio não é penalizado por motivo evidente: o suicida morre e, por isso, não pode ser punido. Argumenta-se que a tentativa de suicídio não deve ser penalizada para facilitar que as pessoas que a cometem possam recorrer a ajuda antes de a morte chegar e acresce-se que não há necessidade de penalizar quem já sofre com um mal que a leva a dar tão ousado passo. A tendência legal moderna é a de punir, apenas, quem incitar outra pessoa a suicidar-se, ou lhe prestar ajuda para esse fim. O código penal angolano estabelece esta previsão pelo artigo 354º acrescendo no seu parágrafo único a impossibilidade legal da eutanásia por essa via.
Vale lembrar que o movimento pró-eutanásia desenvolve “campanhas” que se assemelham as do movimento pró-aborto. Em comum têm que ambas procuram propagar a “filosofia da morte preventiva”. Passe a similitude material das duas realidades que se apresentam nos pólos contrários da existência humana (o início e o fim da vida), os argumentos para a “morte digna” procuram mobilizar o senso do sofrimento indefinido e tortuoso gerado pela “morte certa” decretada pelas incertezas médicas na superação de doenças, por isso, catalogadas como terminais. Tal como o aborto, na maior parte dos casos, procura prevenir o mesmo sofrimento. A dúvida sobre a possibilidade não terminal da doença assim catalogada torna-se um assunto de trato metafísico, com dignidade religiosa, cabendo neste campo o “veto” contra tendência de “emancipação”da morte misericordiosa. Alheio, por isso, aos interesses científicos que projectam e renovam os dados culturais das sociedades.
Legalizada ou não a eutanásia na sua forma passiva, consistindo no não prolongamento da vida do paciente terminal pela não administração dos medicamentos devidos, seja por custos avultados do tratamento médico seja pela irreversibilidade clínica, é uma realidade comummente aceita e praticada pela classe médica. Este facto, a semelhança das causas que levam a discussão e a legitimação do aborto, deve ser encarado com a merecida responsabilidade. Não se vá olhando com indiferença legal uma realidade evidente, levando ao reconhecimento material de um verdadeiro direito a morte.
*JURISTA
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