terça-feira, 19 de outubro de 2010

ATENTADO CONTRA A LIBERDADE DE IMPRENSA - O CASO GRAÇA CAMPOS

Albano Pedro

A condenação do jornalista Graça Campos por suposto crime de injúria, calúnia e difamação vibrou como um martelo sobre a comunidade dos operadores da comunicação social e faz eco sobre todo um sistema social, levantando questões como: Até onde vai a liberdade de expressão? Até que ponto os crimes assim tipificados correspondem as inspirações de uma sociedade fundada em princípios democráticos? Qual deve ser o limite do exercício da liberdade de imprensa? Quando é que estamos em face de um crime de injúria, calúnia e difamação? etc. E certamente por falta de respostas a estas questões, a maioria dos jornalistas e profissionais da comunicação social se sente agora ameaçada de exercer livremente o seu ofício.

Oferece ainda um verdadeiro teste aos princípios democráticos para a actual Lei de Imprensa revelando a sua frágil envoltura sustentada permanentemente pelo espírito da antiga Lei de Imprensa quanto a sua vocação antidemocrática e totalitarista. Precipita ao debate a sua ineficiência e ineficácia no plano dos direitos, liberdades e garantias dos profissionais de imprensa em particular e do povo em geral colocando em risco a sã convivência e a plena complementaridade entre a Lei de Imprensa e o Código Penal bem como arriscando a sua utilidade e oportunidade no plano jurídico-constitucional.

O Código Penal surge como o complexo de normas subsidiárias a Lei de Imprensa de tal sorte que esta apenas se limita a desenvolver subtipos criminais como os crimes de “abuso de liberdade de imprensa” e os crimes de “desobediência” enquanto condutas específicas das empresas e profissionais da mídia. Sendo certo que societas delinquere non potest (as sociedades não têm capacidade criminal) entende-se que o legislador ordinário angolano pretendeu com a responsabilização de empresas da mídia modelar nas condutas assim tipificadas nesta Lei o vínculo obrigacional sustentador da responsabilidade civil, ao invés daquilo que pode ser um lapsus calami (erro de objectivação escrita) que é a criminalização das mesmas condutas. Acresce-se que, a previsão penal da calúnia, difamação e injúria sem qualquer excepção para o exercício da liberdade de imprensa, não só viola gravemente este direito e todos desta natureza (liberdade à informação, liberdade de expressão, liberdade de reunião e manifestação, etc.) como inviabiliza o próprio exercício da liberdade de imprensa perigando gravemente a construção e a sustentação da democracia e do primado da lei em Angola.

Na verdade, o Código Penal é impreciso na tipificação dos crimes de injúria, calúnia e difamação. Não define os referidos conceitos, deixando a interpretação, muitas vezes distorcida e como tal abusiva, ao critério do juiz da causa. Tão pouco é claro quanto ao seu conteúdo deixando a triste, pobre e quase confusa redacção de «…se alguém difamar outrem publicamente, de viva voz, por escrito …imputando-lhe facto ofensivo a sua honra e consideração…» para o crime de difamação (art.º 407º Código Penal – Doravante CP); «O crime de injúria, não se imputando facto algum determinado, se for cometido contra qualquer pessoa publicamente, por gestos, de viva voz, ou por desenho ou escrito publicado…» para o crime de Injúria (art.º 410º CP) e «…Se não se provar a verdade das imputações, será punido como caluniador com prisão até um ano e multa correspondente» para o crime de calúnia (art.º 409º CP), deixando apenas a vaga ideia de que os crimes de calúnia e injúria são meras variações situacionais derivadas do crime de difamação.

O que será difamar? O que será facto ofensivo a honra e consideração? Qual será a honra e consideração de um ladrão ou de um demente incurável? Será ela diferente da de um politico corrupto ou de um líder religioso charlatão? E qual será a honra e consideração de um líder politico exemplar como Nelson Mandela ou Mahtma Ghandi? Para a resposta a questões levantadas haverá lugar a especulações valorativas subjectivas que a semelhança do critério ético estabelecido pelo Direito Civil na base da fórmula valorativa de bonus pater família (valores morais e éticos inerentes ao cidadão médio de uma sociedade) não conferem precisão uniformizada para os factos que se apresentam como enquadráveis nas normas incriminadoras em questão. Assim, a norma penal, por plasmar conceitos, como este, imprecisos e indeterminados, permite que o ofendido defina o próprio âmbito e conteúdo da ofensa a honra e consideração, reforçado inclusive com a previsão do parágrafo único do art.º 410º nos termos do qual «Na acusação por injúria não se admite prova sobre a verdade de facto algum, a que a injúria se possa referir.».

Vem daí que, as previsões sucessivas dos crimes de difamação, injúria e calúnia aparecem como verdadeiras ameaças aos princípios democráticos por imprecisão e arcaísmo; excessivas, desproporcionais e perigosas para o exercício das liberdades fundamentais em geral protegidas pela Lei Constitucional vigente. O que levanta um verdadeiro confronto entre a Liberdade de Imprensa e Os Direitos de Personalidade Criminalmente Tutelados, colocando ainda o problema da prevalência de interesses entre o valor individual (interesse particular) e o valor colectivo (interesse público), quando é certo que o exercício da liberdade de imprensa, enquanto a mais ampla e poderosa manifestação da liberdade de expressão, não só procura impor o interesse público como anima a própria existência de um Estado Democrático e de Direito.

O “pacto” estabelecido entre o Direito Civil e o Direito Comercial nos termos do qual determinados factos que desencadeiam a Responsabilidade Civil (dever de indemnizar o ofendido) em Direito Civil são considerados práticas correntes e normais em Direito Comercial, sem os quais o comerciante dificilmente sobreviveria (Vide: a persuasão astuciosa de um comerciante que leva o cliente a comprar um artigo contra o seu próprio gosto), mesmo quando os dois ramos de Direito sejam da mesma família (Direito Privado), serve certamente de exemplo para estabelecer limites e vizinhanças necessárias a preservação de interesses entre o Direito de Imprensa e o Direito Penal. Sendo razoável e de utilidade democrática que determinados factos considerados difamatórios, caluniadores ou injuriosos não o deveriam no exercício da Liberdade de Imprensa, visto prosseguir-se aqui interesses públicos e não veleidades pessoais conformados com o dolo imputável a subjectividade particular de que o direito penal procura combater.

Foi a percepção da necessidade de preservação deste limite, que levaram os americanos a decidir sobre a consagração constitucional da extensão do conteúdo da liberdade de expressão enquanto pilar da democracia, quando admitiram que pela caricaturização e ridicularização de figuras públicas muitas vezes é alcançada a verdade dos factos necessária a informação do povo (Vide: caso verídico representado pelo filme The people versus Larry Flynt – em que a Suprema Corte de Justiça Americana considerou constitucionalmente protegida a ridicularização feita numa publicação pornográfica de grande tiragem contra um importante líder religioso americano que sentiu gravemente ofendida a sua honra e consideração).

O quadro condenatório sub iudice viabilizado a luz do actual sistema jurídico (Código Penal, Código Civil e Lei de Imprensa) revela gravosas insuficiências da Lei de Imprensa e a sua subtil e perigosa vocação de agredir os próprios interesses da classe dos jornalistas e dos operadores da comunicação social, a saber:

Que a tripla condenação ocorrida ao abrigo do Código Penal (Calúnia, injúria e difamação), salvo entendimento mais aguçado, tem como consequência para o jornalista Graça Campos o impedimento de exercer as funções de Director do Semanário Angolense ou de qualquer outro órgão de comunicação social por 3 anos nos termos prescrito pela actual Lei de Imprensa.

Que a Lei de Imprensa não procura afastar as graves penalidades dos crimes de calúnia, injúria e difamação pela concretização de normas especiais que protejam os profissionais da comunicação social quando em face de tais factos. O que seria homenagear o princípio hermenêutico Lex specialis derrogat lex generalis (as normas especiais da Lei de Imprensa afastariam as do Código Penal em matéria de Calúnia, Injúria e Difamação subtraindo os jornalistas de os cometerem no exercício das suas actividades).

Que a similitude dos critérios dozimétricos penais inspirados entre a actual e a anterior Lei de Imprensa e representados no caso Graça Campos revela a manutenção legal do projecto de um Estado totalitarista e de viabilidade histórica remota que procura abafar o surgimento de uma sociedade livre e justa pela via da aplicação de pesadas penalidades susceptíveis de suprimirem a liberdade de expressão dos cidadãos.

Que a falta de uma oportuna regulamentação concretizadora da Lei de Imprensa inviabiliza a interpretação dos conteúdos e limites precisos sobre os factos susceptíveis de imputação criminal e consequente impugnação judicial.

Não será, certamente inteligente, a ideia de manter a incriminação de tais condutas em sede do Direito de Imprensa (desnecessariamente subsidiado pelo Código Penal) sob pena de exaltação de um Estado centralizador de opinião já sacrificadamente ultrapassado pela história recente de Angola. O Direito de Imprensa se bastaria com a mera responsabilização civil de condutas deontológicas inconvenientes contra direitos de personalidade legalmente protegidos. Resultando daí indemnizações e outras espécies de desvantagens de natureza sancionatória próprias do Direito Civil.

Recomenda-se em suma que, pela via da impugnação judicial da actual Lei de Imprensa por manifesta inconstitucionalidade, haverá, pois, que fazer vincar uma Lei de Imprensa que preveja medidas civis e não criminais. Uma Lei de Imprensa que reduza os excessos previsionais do crime de calúnia, injúria e difamação tipificados no Código Penal. Tamanha solução atrairia o espírito de convivência democrática e o respeito a um dos mais elementares direitos dos cidadãos: o Direito a Informação.

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