sexta-feira, 15 de outubro de 2010

MOVIMENTO UNIVERSITÁRIO

MEMÓRIA SOBRE A VIOLÊNCIA DO ESTADO NA PRIMEIRA MANIFESTAÇÃO DE ESTUDANTES UNIVERSITÁRIOS DA ERA PÓS-COMUNISTA EM ANGOLA

(Texto comemorativo do 8º ano da ocorrência da primeira manifestação dos estudantes da Universidade Agostinho Neto no pós-comunismo como marco histórico da reivindicação dos direitos e liberdades civis pelos estudantes universitários)


Albano Pedro

(Antigo Coordenador para os Assuntos Jurídicos da Comissão Instaladora da Associação dos Estudantes da Universidade Agostinho Neto e co-promotor da 1ª e 2ª Manifestação dos Estudantes da Universidade Agostinho Neto em 2002 e 2003 respectivamente)

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“Memória dedicada em especial ao Dr. Gilberto Figueira, o maior líder estudantil que conheci; à minha família, pois os filhos que tenho vêem da cumplicidade universitária marcada pelas manifestações e à todos os colegas da Universidade Agostinho Neto que nela participaram destemidamente sem pôr em causa a boa-fé dos seus objectivos e dos seus líderes. Ad Perpetuam Rei Memoriam”


I. CAUSA DA MANIFESTAÇÃO

No pretérito dia 8 de Outubro do ano em curso, ter-se-ia comemorado o Dia do Estudante Universitário Angolano em alusão a primeira manifestação de estudantes universitários realizada nesta data do ano de 2002, se a data proposta pela AE-UAN (Associação dos Estudantes da Universidade Agostinho Neto) através do seu Chanceler Geral, Gilberto Figueira (então Estudante do ISCED-LUANDA) tivesse sido aprovada pela Assembleia Geral da Universidade Agostinho Neto. Mais de oitocentos estudantes marcharam em Luanda a partir da Faculdade de Economia da Universidade Agostinho Neto até a Reitoria da mesma Universidade preenchendo completamente a estrada da Avenida Marginal numa manhã de um dia útil pleno de actividade laboral para manifestar a solidariedade para com os professores universitários que estavam numa greve que ameaçava anular o ano lectivo em todo o sistema de ensino universitário público. O projecto de solidariedade a favor da reivindicação dos direitos dos docentes foi esboçado por um grupo heterogéneo de estudantes (representando distintas faculdades e institutos) e implementado por estudantes que estavam em risco de ver perdido o ano lectivo devido ao desentendimento entre o Sindicato dos Professores Universitários liderado pelo Doutor Carlinho Zassala e o Ministério da Educação representado pelo Ministro Burity da Silva.


II. OS PREPARATIVOS DA MANIFESTAÇÃO

Semanas antes, os estudantes tomaram conhecimento da resistência do Governo em satisfazer as exigências dos professores, que consistia fundamentalmente em aumento salarial e melhoria de algumas condições de trabalho dentre outras exigências clássicas em Angola devidamente apresentadas através de um Caderno Reivindicativo. Veio então a notícia que a falta de satisfação do caderno reivindicativo levaria a paralisação do ano lectivo em toda a universidade (na altura a Universidade Agostinho Neto era a única universidade pública e com abrangência territorial nacional). Certos dos graves e irreversíveis prejuízos desta possibilidade a então-Comissão Instaladora da Associação dos Estudantes da Universidade Agostinho Neto introduziu o debate no seio dos estudantes sobre a necessidade de intervir no litígio que opunha as partes com vista a persuadir quer o Governo quer o Sindicato dos Professores Universitários a encontrar uma solução que não levasse a anulação do ano lectivo visto que os estudantes, seriam em última análise os prejudicados. Aconteceram encontros com o Sindicato dos Professores Universitários em informaram as usas razões e os impasses havidos no processo negocial com o Estado. Ficou visível a falta de vontade do Governo em resolver os problemas colocados. Estava clara a posição certa a tomar pelos estudantes. Quando se pensou na possibilidade de uma manifestação em solidariedade para com os professores universitários, a comissão Instaladora entrou em crise organizacional interna quando se concluiu que alguns estudantes tinham ordem do partido MPLA para não participar em manifestações. Deu-se a ruptura interna que levou a saída de tais estudantes para formar uma segunda Associação da Universidade Agostinho Neto no intuito de fazer oposição aos estudantes que entenderam certo organizar uma manifestação pacífica. Começou então uma guerra de grandes proporções que oporia um pequeno grupo de estudantes contra outros estudantes guiados pelo partido MPLA, contra o próprio MPLA e até contra o Governo. Em consequência, a comunicação estatal (Rádio Nacional de Angola e TPA fundamentalmente) viciava a intenção nobre dos estudantes decididos em levar a cabo a manifestação rotulando a mesma como sendo suportada pela UNITA e outros partidos da oposição e que era completamente ilegal, espalhando um clima de receio e suspeição sobre a justeza das reivindicações em toda a comunidade universitária em particular e em toda a sociedade em geral. Estudantes interessados pendiam entre a necessidade de aderir numa manifestação livre e o receio de represálias políticas no seio dos vários núcleos do MPLA espalhados pelas faculdades e institutos da Universidade Agostinho Neto. A Comissão Instaladora da AE-UAN como composição de representantes de várias associações de estudantes da Universidade Agostinho Neto viu a desistência dos representantes das associações da Faculdade de Direito (liderada por Bernardino Quaresma), da Faculdade de Medicina (liderada por Manuel de Lemos coadjuvado por João Mulima), Faculdade de Economia (liderada por Domingos Mate) e do Instituto Superior de Enfermagem – ISE (liderada por Vasco Matemba) que foram orientados pelo MPLA para formar nova associação. Para enfrentar tamanha pressão política e arregimentar a incerteza dos estudantes em torno da necessidade de realizar uma manifestação pacífica o destino fez cruzar jovens estudantes de têmpera irredutível unidos por traços de carácter em que predominava o sentido de justiça e persistência, aos quais o então Decano do Instituto Superior de Ciências da Educação (ISCED), o Doutor Victor Kajibanga apelidou de “jovens turcos”. Seriam então estes jovens livres de preconceitos políticos e unicamente interessados na causa dos estudantes que levariam a cabo a missão de enfrentar o MPLA em todas as suas formas de manifestação social como jamais tinha sido imaginado apenas para fazer valer uma manifestação legalmente aceite e democraticamente irrepreensível.

III. OS PROMOTORES DA MANIFESTAÇÃO

A necessidade de reestruturar uma Comissão Instaladora da AE-UAN decidida a avançar com a manifestação porém fragilizada pela dissidência das associações acima descritas e respectivos estudantes levou a incorporação de novos estudantes para reforço. Estes seriam Albano Pedro (4º ano da Faculdade de Direito), Adriano Cristóvão (4º Ano da Faculdade de Medicina), Adalberto Costa (2º ano da Faculdade de Economia) encontrando representantes das associações restantes, nomeadamente Gilberto Figueira (3º ano de Matemática e Presidente da Associação dos Estudantes do ISCED), Rafael Aguiar (3º ano de Sociologia e Secretário Geral da Associação dos Estudantes do ISCED), Luís Valente (4º Ano de Engenharia Civil e Secretário Geral da Associação de Estudantes da Faculdade de Engenharia), Celso Gomes (3º ano de Geofísica e Presidente da Associação dos Estudantes da Faculdade de Ciências), Paulo Aguiar (3º ano de Geologia e Secretário Geral da Associação dos Estudantes da Faculdade de Ciências). Formou-se então o núcleo duro que organizaria uma manifestação forçada pela situação generalizada de ameaça de greve dos professores na única universidade pública.

A denominação de “jovens turcos” dada por aquele renomado sociólogo e docente universitário angolano não foi por acaso. Em termos de verticalidade, dignidade e convicção era da melhor casta de estudantes da Universidade Agostinho Neto naquele ano. Cada membro tinha a fama de ter intervenções críticas e de difícil sustentação na sua respectiva faculdade contrariando as tendências de professores com fraco domínio académico durante as aulas ou fora delas bem como contra as debilidades do sistema de ensino e aprendizagem. Eram polémicos e reivindicadores natos que juntavam à suas características estudantis o facto de terem percepções sobre assuntos científicos que ultrapassavam o âmbito das suas formações. Argumentavam com propriedade e seus adversários evitam quaisquer formas de confronto verbal. Para liderar jovens com tais características, ainda por cima tendencialmente livres, era necessária uma liderança iluminada, convincente e não impositora. O que era difícil de descobrir entre os estudantes daquela época. Porém, o destino tinha colocado este líder mesmo no seio do grupo e a sua “química” arregimentou tais cérebros em torno de um projecto quase impossível de se concretizar numa sociedade fechada pela ditadura da anti-democracia. Este jovem foi Gilberto Figueira. Ele mesmo um líder nato. Sua capacidade de harmonizar posições e pensamentos difusos, podia ser fruto da orientação académica para as matemáticas, mas o que se sabe é que era unanimemente aceite a sua capacidade de liderança sem a qual, o grupo muito dificilmente teria protagonizado os feitos que iriam acontecer. O resultado desta rara liderança é que os membros, polémicos e muitas vezes irredutíveis nas suas posições individuais, conseguiram afunilar os seus antagonismos num pensamento que harmonizava as intenções nobres do grupo. Neste particular, eram famosos os debates irreconciliáveis entre Rafael Aguiar (já com têmpera de sociólogo experimentado), Adriano Cristóvão (Médico de forte vocação), Luís Valente (calculista produzido pela engenharia que cursava), Paulo Aguiar (com frieza de psicólogo refinado perdido num curso de Geologia), Celso Gomes (de veia humanista apurada), Adalberto Costa (Com a aura de um Filósofo, porém entregue ao curso de Economia) e Albano Pedro (jurista mais ou menos feito pelas intervenções que já fazia na imprensa) quando fossem viabilizar quaisquer actos que reflectissem a organização e funcionamento do grupo. As reuniões demoravam horas para serem reflectidas numa conclusão bem orientada pela capacidade de síntese e visão de um estudante de Matemática com forte instinto filosófico que era Gilberto Figueira. A ligação lógica, intelectual e sentimental era tal entre os membros que Adalberto Costa melhor interpretou o sentimento comum com as celebres palavras: “Não conheço outro ambiente de debates em que me sinta tão em casa!”. Era dos poucos espaços em que se podia exercer a liberdade de consciência e em que as pessoas se identificavam perfeitamente. Na verdade não apetecia abandonar as sessões. Uma sensação de liberdade que resultava do facto de a Universidade Agostinho Neto ter sido sempre controlada por uma forte censura política e partidária onde os estudantes eram intelectualmente manietados e como tal incapazes de exprimir livremente os seus pensamentos.

Gilberto Figueira trazia o seu carisma da liderança da Associação dos Estudantes do Instituto Superior de Ciências de Educação tida como a mais terrível das unidades orgânicas da Universidade Agostinho Neto. Era famosa por cruzar “espécies estudantis” completamente antagónicas na forma de ser e de estar. Vocacionada a ministrar cursos de forte implicação racional como Filosofia, Pedagogia, Sociologia, Psicologia, Matemática, etc., o ISCED tinha a virtude de comportar os mais famosos “alicates” (denominação dada à estudantes com a fabulosa missão de executar actividades de espionagem em nome do MPLA e dos serviços da bófia, muitos dos quais não eram estudantes efectivos, cumprindo ciclos académicos durante anos a fio como forma de vigiar a comunidade estudantil adversa ao regime) e os mais implacáveis polémicos (incentivadores de debates multifacéticos) em toda a comunidade estudantil da Universidade Agostinho Neto. Liderando uma lista, por si mesma antagónica, que misturava “alicates” com estudantes sérios ganhara as eleições para Presidente da Associação dos Estudantes do ISCED de forma incontestável demonstrando assim a sua vocação para conciliar o impossível. Apesar do antagonismo dos seus estudantes, o ISCED veio a tornar-se no bastião da rebelião contra as regras anti-académicas impostas a comunidade estudantil, espalhando a sua fama em toda a Universidade Agostinho Neto e não só, e incentivando as respectivas iniciativas. Por isso, tornou-se no local ideal para instalar o “Quartel-General” da Manifestação dos Estudantes e os seus líderes associativos tornaram-se imprescindíveis para a criação da Associação dos Estudantes da Universidade Agostinho Neto.

Embora, fossem acusados de gozar de apoios de partidos políticos da oposição, entre os membros do grupo estavam militantes e simpatizantes do MPLA que simplesmente acreditavam que o exercício de uma liberdade fundamental, como é o direito a manifestação, não podia ser confundido com actos de traição partidárias sobretudo por se tratar de reivindicar direitos como o dos docentes universitários com efeitos obrigatórios para os estudantes. A motivação moral e ética era tal que mesmo sem quaisquer apoios materiais externos o grupo resistia a todas as dificuldades no processo de implementação dos seus projectos.

IV. A REALIZAÇÃO DA MANIFESTAÇÃO

Na véspera da realização da manifestação havia a clara consciência de que o país tinha sido dividido em tendências contra e pró manifestação. Como consequência, de um lado estava o MPLA com todas as suas forças institucionais e partidárias (Governo, Polícia, comunicação social estatal, grupos de estudantes e professores universitários mobilizados, Governo Provincial de Luanda, etc.) e do outro o resto da sociedade (incluindo associações cívicas e partidos políticos da oposição) entregue a um silêncio de morte com visível receio de assumir um conflito com o Estado, tendo ficado patente a gigantesca hegemonia do partido-Estado. As consequências foram óbvias: O Governo Provincial de Luanda não se pronunciou ao pedido de realização de manifestação, a comunicação social estatal informava a opinião pública nacional e internacional que a manifestação dos estudantes universitários era completamente ilegal, a nova associação de estudantes composta por dissidentes orientados pelo MPLA desmobilizava os estudantes inocentes ou mal informados entre outros actos multissectoriais que demonstravam a força impositiva do MPLA contra o pequeno grupo de estudantes interessado na manifestação, Gilberto Figueira não teve a oportunidade de justificar a manifestação junto da Televisão Pública de Angola porque o espaço solicitado no programa Ecos & Factos então concedido acabou favorecendo intervenções da ala desmobilizadora, circulavam informações caluniadoras e difamatórias contra os membros do grupo. Este sabia que teria de contar com a unidade dos seus membros e com ajuda de Deus. Depois da campanha nefasta contra a manifestação desenvolvida na imprensa estatal pelos partidários do MPLA, havia ainda o esforço de mobilizar e manter firme as poucas centenas de milhares de estudantes corajosos que estavam na incerteza dos acontecimentos. Nessa noite o grupo viveu o maior terror de todas as fases de organização da manifestação. Receava-se desaparecimento físico de membros do grupo, dada a forte atenção que a sociedade mobilizada pelo MPLA tinha sobre o mesmo. Os membros decidiram não se separar até que a manifestação acontecesse e ficou determinado que se os membros morressem seria por uma causa justa. E assim foi o repto para lançar à rua a manifestação. Valeu a coesão do grupo e o MPLA e seus “artefactos sociais” foram ludibriados pela certeza que ganharam na noite anterior que estava estancada a iniciativa da comissão organizadora da manifestação, surpreendendo-se com a informação veiculada pelos líderes da manifestação nas primeiras horas da manhã do dia exacto junto da Rádio Ecclésia e LAC (Luanda Antena Comercial) de que a manifestação seria realizada fosse qual fosse o custo, numa altura em que nem mesmo aos organizadores se desenhavam esperanças de ver acontecer a famosa manifestação.

Quando o grupo se concentrou na parte externa da Faculdade de Economia tinha conhecimento que a manifestação não tinha sido autorizada pelo Governo Provincial que se fartou de anunciar publicamente e que os agentes da polícia estavam mobilizados para a reprimir a todo o custo. Os estudantes foram se aproximando ainda embebidos de incertezas até se formar um grande aglomerado humano de centenas de almas jovens. O roteiro consistia em levar um Manifesto dos estudantes, espelhando solidariedade com os professores e as preocupações dos estudantes decorrentes das actividades destes mesmos professores entre outros assuntos, à Reitoria da Universidade Agostinho Neto (situada no edifício do Hotel Le President Meridien na Avenida Marginal junto ao Porto de Luanda) e em seguida rumar para o Ministério da Educação (nas imediações da Rádio Nacional e TPA próximo do largo da independência) num percurso de alguns quilómetros que levaria a percorrer várias artérias da cidade de Luanda em pleno dia de trabalho com milhares de viaturas pulverizadas em engarrafamentos. Quando a marcha começou os estudantes eram já calculados em dezenas de centenas e a avenida Marginal ficou completamente preenchida de um lado ao outro não dando espaço para movimento a quaisquer veículos. A chegada à Reitoria foi pacífica e o contacto com os seus responsáveis ocorreu num ambiente de diplomacia. Contudo, verificava uma longa demora que levou alguns estudantes a suspeitar das intenções dos membros da Reitoria em arrastar gratuitamente o tempo dos líderes em cerimónias desnecessárias. Veio, porém a saber-se que o Governo Provincial de Luanda havia solicitado a Reitoria que entretesse os estudantes enquanto a polícia de choque (vulgo anti-motim) se deslocava para o local com o intuito de dispersar os estudantes inibindo-os de prosseguir com a manifestação. Quando as falsas cerimónias terminaram e a manifestação retomou o percurso (de volta a Faculdade de Economia e desta para o Ministério da Educação) já a Polícia estava a espera do grupo na avenida Marginal um pouco adiante do Ministério do Interior em direcção ao Porto de Luanda em que saiam os manifestantes. Deu-se então a interpelação. Um dos oficiais da corporação policial chamou pela liderança do grupo para dar a conhecer que a manifestação não podia acontecer por ordem do Governo Provincial de Luanda. Felizmente nesta altura já imprensa privada nacional (Rádio Ecclésia, LAC) e internacional (Voz da América, RTP África) fazia cobertura do evento numa espécie de relato de futebol.

A viabilidade da manifestação deu-se por erro administrativo do Governo da Província de Luanda que não curou de dar tratamento do requerimento a si dirigido pelo grupo de interessados pela manifestação. Operou-se então um fenómeno jurídico tecnicamente conhecido como “autorização tácita”. O que acontece sempre que a autoridade pública normalmente competente para autorizar a prática de determinado acto pelo particular não se pronuncia tempestivamente. Com efeito, a Lei Sobre o Direito de Reunião e Manifestação (Lei 16/91 de 11 de Maio) estabelece que a não notificação dos promotores da manifestação sobre a posição da administração é considerada como não havendo objecção para a realização da manifestação (art.º 7º). O Grupo beneficiou desta cláusula para realizar a manifestação ao arrepio dos condicionalismos antidemocráticos estabelecidos por Lei para a realização de manifestações públicas. Pois, se houvesse autorização nos termos da Lei, ela teria acontecido apenas no fim do dia (período pós-laboral) ou no fim-de-semana e em local bem determinado. Tal é a inconstitucionalidade desta Lei que quarta o exercício de uma liberdade fundamental. Felizmente, Deus favoreceu o grupo com a incúria habitual dos agentes da administração pública.

Todavia, a Polícia não estava interessada em ouvir os argumentos dos líderes do grupo suportados por documento comprovativo do pedido de manifestação protocolado pelos competentes serviços do Governo da Província de Luanda. Tinham orientações claras: Impedir a realização da Manifestação e ponto final. Começou então um jogo de “empurra-empurra” que levou os estudantes a pressionar a larga barreira policial até ao eixo-viário no Largo do Ambiente (imediações do Atlético Petróleos de Luanda). A falta de autorização para usar da violência levou a que os polícias cedessem a pressão de perto de mil estudantes tendo sido empurrados ao longo de quase um quilómetro de distância da zona de interpelação. Quando tudo parecia perdido para os polícias o grupo de manifestantes sentiu então a reacção militar com agentes a espancar os estudantes com coronhadas das armas e outros instrumentos de uso militar, granadas de fumos largaram-se sobre os ambientes de estudantes e uma grande zaragata se instalou. Uma nuvem de poeira e fumo misturou agentes da polícia e estudantes num clima de violência séria. Os agentes da polícia procuravam deter os líderes da manifestação enquanto os estudantes procuravam ripostar os ataques da polícia com pedras e utensílios diversos usados como armas improvisadas para enfrentar a força numerosa da elite policial angolana. Uma estratégia digna de estudantes universitários levou a que alguns estudantes em pequenos grupos fizessem coberturas localizadas para cada membro da direcção do grupo. Gilberto Figueira e Rafael Aguiar foram prontamente levados por um grupo de estudantes do ISCED, enquanto Celso Gomes teve o pulso preso e o corpo arrastado por estudantes da Faculdade de Ciências entre os quais se achava o seu irmão. Da mesma forma, Paulo Aguiar viu-se levado por um grupo de estudantes em meio a multidão. Albano Pedro teve a cobertura de um grupo de estudantes da faculdade de Economia entre os quais se achava o Amaro. O processo foi tão rápido, que em pouco minutos os líderes da manifestação estavam a salvo dos agentes da polícia e muitos destes agentes queixavam-se de dores pelo arremesso de pedras dos estudantes. Era a primeira vez que a Polícia de Choque enfrentava um grupo de manifestantes tendo sido posto aprova desde que fora criado no início dos anos 90.

A manifestação acabou dispersada, alguns colegas foram detidos e os líderes estavam a correr para novas posições para reconfigurar a situação e geri-la da melhor maneira. Rafael Aguiar foi parar no edifício das Nações Unidas para pedido de apoio, Albano Pedro seguiu com um grupo para a Rádio Ecclésia para denunciar as atrocidades e as detenções arbitrárias. Era agora o clima de perseguição que pairava sobre a liderança da manifestação. Era preciso procurar ajuda urgente contra quaisquer tentativas de violência subsequentes, incluindo prisões. Graças a presença da imprensa privada nacional e internacional as denúncias foram difundidas para a Comunidade Internacional. Em menos de 24 horas o jornal Washington Post tinha denunciado a violência contra os estudantes universitários angolanos nos Estados Unidos da América. A RTP África e muitos outros canais difundiram a informação e mundo rapidamente ficou a saber que MPLA conduzia um GURN com o braço de um ditador, violando as liberadades democráticas dos cidadãos. A Amnistia Internacional e outras organizações internacionais foram accionadas e o grupo (Liderança) pôde reunir-se novamente sem temer represálias junto do Ministério da Educação local de destino, exigindo a libertação dos estudantes detidos como condição dada ao Ministro que procurava conversar com os manifestantes. Associação Mãos Livres e alguns advogados independentes emprestaram a sua solidariedade na luta para a soltura de alguns estudantes detidos e estes acabaram soltos horas depois. Dentre os detidos é de referência obrigatória citar a Lizete, estudante da Faculdade de Direito que rapidamente atraiu atenção da comunidade nacional e internacional pela coragem que teve em libertar o Gilberto Figueira, enquanto líder da manifestação, das garras de um agente da polícia vindo a ser detida em troca. Formou-se então um cordão de grande solidariedade e os estudantes concentraram-se determinados a passar a noite em vigília até a soltura dos colegas. Perto das 18 horas os estudantes detidos foram soltos com ajuda prestimosa do Dr. David Mendes (Mãos Livres) que soube provar que havia falta de argumentos legais para a prisão preventiva que os instrutores da Direcção Nacional de Investigação Criminal defendiam e Lisete foi recebida como uma princesa. Nesta altura, repórteres de órgãos de comunicação social estatal (TPA e Rádio Nacional de Angola) aproximaram-se para reportar o sucedido, tendo sido expulsos a pedradas pelos estudantes furiosos com as manipulações que tinham feito na informação pública sobre as boas intenções da manifestação.

No dia seguinte ocorreu o encontro, adiado pela exigência de libertação dos estudantes detidos, com o Ministro da Educação representado pelo seu Vice-Ministro Mpinda Simão que recebeu o Manifesto dos Estudantes e tratou de esclarecer a situação da greve dos professores e as soluções encontradas entre outros assuntos. Graças a violência do Governo contra os estudantes universitários e o receio que pairou no ambiente dos governantes e chefes do partido no poder de sofrerem interpelações internacionais por violações de direitos dos cidadãos – ainda por cima estudantes universitários -, a greve dos professores foi levantada em consequência da repentina flexibilidade do Governo para com as reivindicações dos professores. Os estudantes saíram vitoriosos numa batalha de proporções políticas inconscientemente enfrentada por aqueles que não temeram ameaças de um regime anti-democrático. Finalmente, foi organizada uma conferência de imprensa no Centro de Imprensa Aníbal de Mello com a presença de uma comunicação social nacional e internacional. As sessões de perguntas e respostas foram animadas com intervenções multilingue (Português, inglês e Francês) dos líderes da manifestação para esclarecer as intenções simples e nobres dos estudantes que resultaram no grande incidente que foi a violência do Estado. O que se sabe é que as imagens captadas pela Televisão Pública de Angola durante toda a sessão da conferência de imprensa nunca foram apresentadas publicamente. Como aliás aconteceu com todo a manifestação cuja importância social foi pura e simplesmente ignorado pela imprensa estatal provocando um desconhecimento quase total na sociedade angolana sobre a sua ocorrência.

Este dia não é comemorado porque o grupo de estudantes que organizou a manifestação teve que fazê-lo contra os interesses do Governo e da maioria de estudantes presos por disciplina partidária imposta pelo MPLA e que ainda aterroriza a classe estudantil seja a que nível for. A tentativa de ver proclamada a data foi desde então inglória. De todo o modo, foi um verdadeiro marco histórico na luta pelas liberdades civis e motivo sustentador de muitas manifestações que passaram a acontecer.

No ano seguinte, uma nova manifestação de estudantes universitários foi organizada pela AE-UAN Associação dos Estudantes da Universidade Agostinho Neto (com os organizadores da anterior manifestação na direcção da mesma) pelos mesmos motivos, envolvendo centenas de milhares de estudantes, sem contudo acontecerem novos incidentes com a polícia. Esta pelo contrário, acompanhou a manifestação provendo segurança aos estudantes como manda a Lei. Embora tenha acontecido mais uma autorização tácita, o Governo Provincial de Luanda não estava interessado em provocar mais um clima de mal-estar com a comunidade internacional. Certamente, está manifestação terá sido a única que se conhece em que não foi usada violência a apesar de contrária aos interesses do regime. Fruto da grande vitória alcançada contra o Governo na manifestação anterior.

V. O MOVIMENTO UNIVERSITÁRIO

No intervalo entre as duas manifestações foram empreendidos vários esforços no sentido de extinguir a Associação dos Estudantes da Universidade Agostinho Neto liderada por Gilberto Figueira. Uma nova associação, com a mesma denominação, foi criada pelos dissidentes liderados por Bernardino Quaresma da Faculdade de Direito mantendo a base humana (Vasco Matemba, João Mulima, Manuel de Lemos, Domingos Mate, etc.) porém, reforçada por figuras recrutadas pelo partido como Victorino Mário (Faculdade de Direito), Jinga Niza (Faculdade de Medicina), etc. Vencidos no terreno da manifestação estudantil esta ala foi incentivada pelo MPLA a adoptar uma nova táctica: forçar a inclusão do grupo organizador da manifestação numa nova plataforma associativa em que os seus mentores estariam confortavelmente representados numa maioria mobilizada para o efeito. Impôs-se um impasse legal. Não era possível a existência de duas organizações com a mesma denominação, visto que a associação integrada pelo grupo organizador da manifestação tinha cumprido com os procedimentos legais que culminou com a sua legalização. Os dissidentes não tinham legitimidade para reclamar para si o direito sobre a denominação. Invocaram-se novos argumentos. A maioria dos estudantes, diziam, estava do lado da nova associação (todos mobilizados a partir das células do partido instaladas nas distintas faculdades). Surgiram novos debates com vista a eliminar o diferendo entre os dois grupos. São célebres os encontros marcados no Centro Social da Universidade Agostinho Neto (dirigido pelo mesmo Bernardino Quaresma que era igualmente funcionário da Reitoria da Universidade Agostinho Neto). Os argumentos invocados eram marcadamente jurídicos e os grupos mobilizaram os seus melhores agentes neste domínio. A força argumentativa e recheada de factos verosímeis de Albano Pedro (5º ano de Direito) derrubou de modo incontestável as manipulações técnicas sobre os factos veiculadas por Adão de Almeida (3º ano de Direito) em encontros que as duas delegações trocaram acusações fartas sobre assuntos diversos. Não podendo impor-se sobre o grupo organizador das manifestações a nova associação enveredou pela sua melhor táctica: infundir confusão no seio da comunidade estudantil universitária com argumentos de que os estudantes ligados à verdadeira associação eram manipulados por partidos políticos da oposição e como tal veiculavam programas e projectos estranhos aos estudantes. Argumentos utilizados igualmente na táctica difamatória adoptada pela UNE-ANGOLA (liderada por Domingos Mate da Faculdade de Economia), enquanto agremiação congregadora de todas as associações estudantis angolanas que nela se revissem. O que veio a inibir um número significativo de estudantes (mais emotivos do que racionais) em aderir às causas defendidas por esta associação, sem contudo provocar qualquer desânimo aos seus dirigentes já “calejados” com as intempéries da primeira manifestação. O grupo prosseguiu sempre coeso para outras frentes empreendendo projectos confederativos com outras associações ligadas à universidades privadas prevendo um movimento universitário nacional inclusivo e verdadeiramente consciente do seu papel na comunidade estudantil universitária angolana.

Não fartos das perseguições políticas em que se tornaram autênticos “experts”, Bernardino Quaresma e seus correligionários entenderam, já depois da segunda manifestação estudantil, penetrar nas hostes da Associação dos Estudantes da Universidade Agostinho Neto através da participação no seu processo eleitoral, introduzindo para o efeito estudantes “parasitas” (entre “alicates” e traidores de vocação) que pudessem inviabilizar a reeleição de Gilberto Figueira e seus pares. Aconteceu que foi escolhido para liderar a Comissão Eleitoral Albano Pedro, uma vez que era o único promotor da manifestação estudantil sem perspectivas de assumir quaisquer cargos na associação. Ele mesmo com um historial interessante neste domínio. Um ano antes havia liderado o processo eleitoral na Faculdade de Direito que conduziu a eleição de Bernardino Quaresma ao cargo de Secretário-Geral da Associação dos Estudantes em que este derrotou a forte presença de Adão de Almeida em representação de uma outra lista apoiada pelo Secretário-Geral cessante. Devido a forte ligação partidária de Adão de Almeida (sobrinho de Roberto de Almeida, então-Presidente da Assembleia Nacional) era esperado que a sua lista ganhasse as eleições contra um Bernardino Quaresma visivelmente amedrontado pelas “patentes” do concorrente. O segredo estava na organização eleitoral. Eram necessários homens de confiança e próximos por razões de afinidade no nível do curso. Albano Pedro foi escolhido por ser colega de Bernardino Quaresma pelo grupo de estudantes com maior ascendente sobre a associação e por se achar entre os estudantes de nível avançado, que por tradição são solidários com a sua classe quando se tratar de espezinhar caloiros ou estudantes de níveis mais abaixo. Contudo, o processo eleitoral foi de tal ordem organizado que não houve o mínimo espaço para a fraude ou qualquer favorecimento. O irónico é que tinha sido escolhido por grupos simpáticos ao Bernardino Quaresma que esperaram “facilidades” no processo eleitoral. Porém, a ala de Bernardino Quaresma por pouco perdia a possibilidade de participar das eleições por não preencher alguns requisitos exigidos pelo Regulamento Eleitoral. Solicitou em vão a compreensão da Comissão Eleitoral acabando por procurar fórmulas de última hora para superar as insuficiências apontadas. Veiculou-se então a fama do rigor imprimido por Albano Pedro, seguindo-se epítetos generalizados como “o incorruptível”, “o carrasco” entre outros. Ao conduzir o processo eleitoral ao nível da Associação dos Estudantes da Universidade Agostinho Neto, Albano Pedro era mais uma vez o pesadelo de Bernardino Quaresma e seus correligionários na nova tentativa de assaltar a Associação dos Estudantes da Universidade Agostinho Neto. Todas as tentativas de sabotagens e manipulações foram vãs diante da extraordinária e impressionante transparência do processo eleitoral. Dentre os actos de sabotagens consta a tentativa de Domingos Mate (Presidente da Associação dos Estudantes da Faculdade de Economia e da UNE-ANGOLA) de persuadir os estudantes da faculdade de economia a absterem-se de participar do acto eleitoral, impedindo inclusive a delegação eleitoral que ali tinha sido instalada. Os factos chegaram aos ouvidos de Albano Pedro que prontamente se deslocou para aquela unidade orgânica com objectivo de exigir justificações do Presidente da respectiva associação. Sabe-se que quando Domingos Mate apercebeu-se através dos “alicates” da sua associação que Albano Pedro estava a caminho, pôs-se a fresco sem dar satisfações aos seus correligionários que acabaram sendo “achincalhados” pela conduta desordeira manifestada. Tal era o temor sobre o Presidente da Comissão Eleitoral que se tinha espalhado pela Universidade Agostinho Neto através da ala de Bernardino Quaresma.

Gilberto Figueira foi reconduzido à liderança da AE-UAN por aclamação da comunidade estudantil universitária sem quaisquer facilidades da Comissão Eleitoral que até instou a lista em que se achava candidato para cumprir com um requisito que a mesma julgava insignificante para tamanha exigência que se impunha. Terá sido Rafael Aguiar a manifestar que os membros da lista que representava estavam arrependidos de ter confiado Albano Pedro para Presidente da Comissão Eleitoral pelo excessivo rigor que impunha no processo. A comunidade universitária teve a oportunidade de participar de um processo visivelmente transparente que levou a derrota a ala de Bernardino Quaresma apesar das dificuldades organizativas impostas pelas associações das faculdades hostis ao grupo organizador da manifestação.

VI. FIM DA LIDERÂNÇA DO MOVIMENTO UNIVERSITÁRIO

Os “jovens turcos” estavam em fim de carreira universitária (quase todos finalistas de licenciatura dos respectivos cursos) perdidos entre o afinco para o término dos cursos e a necessidade de manter a força do movimento estudantil na universidade. Era necessário transmitir o “know-how” para as novas gerações de estudantes universitários. Mas, os líderes não se fazem, nascem. As circunstâncias históricas e seus condicionalismos propõem as suas próprias lideranças escolhidas entre aqueles que apelam pelos valores da alma em detrimento das necessidades materiais. Conheceu-se então uma fase de estudantes universitários conformados com a necessidade de favorecimentos de acesso a cargos públicos no fim do curso e com ela a necessidade de manifestações foi recalcada. Deste modo, com o fim do consulado de Gilberto Figueira a testa da Associação dos Estudantes da Universidade Agostinho Neto terminaram as manifestações neste subsistema de ensino, o que não impediu que o seu sucessor no cargo de Chanceler Geral, Rafael Aguiar, sustentasse iniciativas do género ao nível do ensino médio. Assim é que, em 2004 e 2005, alunos do ensino médio encabeçados por Nfuca Mfuacaca Muzemba (Líder do MEA - Movimento dos Estudantes Angolanos) protagonizaram manifestações para reclamar passes sociais de acesso aos transportes públicos para estudantes, ambas fortemente reprimidas por um aparato policial mais determinado em estancar reivindicações de estudantes a força, arrastando milhares dos seus integrantes em confusão com a polícia tendo resultado em danos provocados em autocarros públicos e detecção dos seus líderes. De lá prá cá, não se tem ouvido mais actos do género, embora os problemas decorrentes do ensino universitário ou médio se agravem de ano após ano.

É de referir que o consulado de Rafael Aguiar já não viveu as intempéries provocadas pela ala de Bernardino Quaresma e seus correligionários. Com o fim das manifestações de estudantes universitários o MPLA perdeu interesse em “patrocinar” os seus sabotadores e estes perderam o protagonismo social que tinham em virtude do combate que levavam a cabo contra a Associação dos Estudantes da Universidade Agostinho Neto. Como consequência a associação criada para o efeito perdeu importância estratégica para os seus mentores, o que ditou o fim de todo o movimento universitário da época. Para que as novas gerações de estudantes universitários não pensem que esperam ser pioneiros nestas lides, aqui fica um testemunho. E espera-se que aqueles que tenham vivido os acontecimentos aqui narrados venham a enriquecê-los com novos detalhes e factos não citados de modo a termos uma História cada vez mais completa sobre as manifestações de estudantes em Angola.



Viana, 13 de Outubro de 2010. (fontes relacionadas: http://www.nexus.ao/view.cfm?m_id=6642&cat_02=NOTICIAS )

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