Albano Pedro
Um caso para análise dá conta do seguinte: Dois padrinhos casados entre si testemunharam na Conservatória do Registo Civil o casamento de dois jovens noivos. Após algum tempo, por razões pouco claras, o padrinho veio a estabelecer relação matrimonial com a ex-noiva, de quem foi testemunha, passando a viver com ela, sem contudo divorciar-se da esposa com quem testemunhou o casamento. O que é certo é que o ex-noivo (depois esposo) não aparece no final deste filme, por razões que não constaram do depoimento recolhido. Sabe-se, enfim, que corre um processo de divórcio por julgar, mandado instaurar pela ainda esposa e a relação matrimonial entre o padrinho e a afilhada de casamento já é um facto público. É uma situação verídica que por razões deontológicas não pode ser identificada com os necessários pormenores.
Não há dúvidas de que uma das questões que desafiam a estabilidade normativa do Código da Família angolano é a subtileza com que a poligamia se entremeia e se vulgariza na sociedade ante a rigidez do instituto do casamento, apesar da tutela civil e penal de que goza. Na verdade esta situação resulta da fricção entre o costume europeu tradicionalmente vocacionado a monogamia e o costume africano ancestralmente voltado para a poligamia. As razões de tais opções fundamentais na organização e orientação familiar resultam das formas distintas de organização política e económica das sociedades cujo modelo para os africanos remonta ao período pré-colonial em que a base alargada da família era o factor condicionador do desenvolvimento da economia familiar. Assim, as mulheres que estabelecem relação marital com um único homem, pai de uma numerosa prole, garantiam a estabilidade social e económica da família integrada numa comunidade em que a cultura da solidariedade se impunha aos valores individuais e egocêntricos próprios das culturas ocidentais onde o conceito de família se reduz aos indivíduos estritamente necessários a continuação da espécie humana e como tal constituída apenas por pais e filhos. São realidades constitucionais distintas. O problema angolano nasce a partir do momento em que esta realidade constitucional ainda vigente na maioria das regiões angolanas, sobretudo rurais, não encontra correspondência na Lei Constitucional que procura impor o modelo cultural ocidental completamente estranho à realidade dos angolanos. Fala-se então em tensão valorativa da Constituição em que os valores consagrados na constituição originária (valores políticos fundamentais) contrariam a constituição derivada (normas fundamentais consagradas a partir dos valores políticos fundamentais).
Analisada a questão apenas pelo prisma da Lei, é, «cum granus salis» (descontados os exageros legais nesse sentido), fácil perceber que o casamento monogâmico é plenamente aceite como valor fundamental na estruturação da sociedade a partir da Lei Constitucional (art.º 35º n.º 1 – Lei Constitucional). O que transpira uma certa harmonia valorativa ao nível das normas fundamentais. E nesta base surgem elementos de tutela jurídica interessantes como a incriminação de condutas que atentem contra o sentido de unidade matrimonial como forma de preservar o casamento baseado na escolha livre de um único parceiro matrimonial.
Acontece porém, que ao nível do Código da Família a necessidade de preservar o matrimónio monogâmico despoletou um conflito valorativo considerável, do qual a sociedade angolana tem fraca consciência, fruto da pressão da realidade cultural inscrita na constituição angolana mesmo não integrada na Lei Fundamental. Na tentativa de proteger o casamento monogâmico sem deixar legalmente desprotegidos os interesses realizados nas relações matrimoniais constituídas fora dele, o Código de Família consagrou o instituto da União de Facto (art.º 122º - Código da Família) como mecanismo de tolerância com funções contraditórias, i.e., por um lado pretende preservar certos direitos adquiridos pelas mulheres fora do casamento e por outro pretende ser um meio de reconhecimento indirecto da existência do casamento como relação legalmente admissível e como tal única.
Na verdade, o instituto da união de facto tem utilidade preciosa. Por exemplo, se uma mulher que habita com homem em simples regime de cama e mesa por anos consideráveis, com quem tem filhos, e tem constituído património confortável, ver o marido não casado partir para uma nova relação que acaba por formalizar em casamento mediante regime de economia integrada (A lei fala em regime de bens adquiridos) arrisca-se a perder os bens constituídos por anos de sofrimento em favor de uma mulher «outsider» que eventualmente queira o bem-estar proporcionado pelo homem a partir daquela base patrimonial, se o marido entender que tais bens (a maioria pelo menos) são seus. Para proteger a mulher abandonada, vem o serviço legal da união de facto (caso de reconhecimento por ruptura). E é igualmente útil nos casos em que o marido morre deixando uma fortuna considerável que constituiu com a mulher com quem viveu sem casar (caso de reconhecimento da união de facto por morte). Neste último caso a falta do reconhecimento da união de facto arrastaria a mulher à miséria pelo facto de não ter direito a meação (partilha dos bens do casal) e pela falta de acesso à herança, nos casos em que a esposa possa herdar.
Todavia, a união de facto, com toda a sua boa intenção, surge como um mecanismo de promoção de relações poligâmicas sem oposição legal possível. Primeiro porque inutiliza a eficácia do casamento como relação matrimonial suficiente já que a Lei atribui à união de facto reconhecida os mesmos efeitos do casamento (art.º 119.º - CF), i.e., a mulher que reconhece a união de facto exerce os mesmos direitos de uma mulher casada, sobretudo no que tange aos bens patrimoniais – que é no fundo a razão de ser da união matrimonial. É claro que o reconhecimento da união de facto só pode ser feito, por regra, se o homem e a mulher reunirem certos pressupostos legais como a singularidade da relação matrimonial (art.º 113.º n.º1 – CF). Acontece porém, que esta condição só oferece obstáculos para o casamento celebrado, ou seja, apenas a mulher casada é que tem protecção legal contra o reconhecimento de uma união de facto. Não a outra mulher não casada. Esta, se não reconhece a relação matrimonial (por via da união de facto) não existe como esposa à luz da Lei e como tal a relação matrimonial que a suporta é inexistente. O que permite que o homem tenha várias relações matrimoniais contando que não as queira reconhecer como união de facto ou não as deseje formalizar em casamento. É a grande brecha deixada pelo Código de Família e legislação afim. Nem mesmo o crime de bigamia pode ser imputado ao marido que tem mulheres nesta situação. Porque o crime de bigamia é perfeito apenas nos casos em que o homem casado ou com a união de facto reconhecida desposa com casamento ou união de facto reconhecida uma outra mulher (art.º 337.º e SS - Código Penal). Na mesma linha o Crime de Adultério (art.º 401.º e SS - Código Penal) não tem qualquer efeito neste caso já que esta conduta acontece também quando o homem adúltero e a mulher de quem foi infiel (ou vice-versa) são casados ou têm a união de facto reconhecida. Portanto, a Lei nada faz para proteger a relação matrimonial e interesses conexos quando a união de facto não é reconhecida.
Contudo, e apesar da controvérsia funcional do Código da Família em matéria de relações matrimoniais, tem o mérito de procurar estabelecer um «pacto» entre o costume angolano tendencialmente poligâmico e a cultura jurídica ocidental consagrada no sistema jurídico angolano favorável a relação matrimonial monogâmica. Embora de forma tácita reconheça a poligamia impregnada no sistema social angolano. Por isso, o caso fotografado acima não configura crime de bigamia desde que o novo matrimónio não seja reconhecido como união de facto ou seja transformado em casamento. O que não dispensa a imputação do crime de adultério ao padrinho que «roubou» a lua-de-mel ao afilhado, se a mulher casada assim entender, contando que reúna os factos probatórios necessários.
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