A QUESTÃO DOS DIREITOS DE PERSONALIDADE VERSUS INTERESSE PÚBLICO
Albano Pedro
A problemática das escutas telefónicas – visando o acompanhamento da informação trocada por via telefónica e outros meios de comunicação afins entre indivíduos no interesse público – prende-se com a questão da privacidade dos indivíduos inseridos na sociedade em que como cidadãos têm direitos e interesses garantidos pelas Leis – a começar da Lei Constitucional – prevendo o livre desenvolvimento da personalidade e a reserva do espaço íntimo configurado pela privacidade, estão integralmente salvaguardados (art.º 80.º - Código Civil). Não é por acaso que levanta um certo alvoroço porque trata-se de invadir o indivíduo no seu espaço de existência mais íntimo em que a segurança sobrevivencial diante da sociedade, por vezes atroz, é por si próprio garantido. Por se tratar de um espaço de tutela necessária do individuo, a Lei trata de preserva-lo estatuindo condutas contrárias e cominando sanções correspondentes. A invasão da privacidade negada pela lei é um exemplo especial neste sentido. Todavia, existem interesses que se impõe a sociedade que não podem ser pura e simplesmente reservados a esfera da intimidade do indivíduo sob pena de pôr em perigo a existência harmoniosa (segurança, sobretudo) da sociedade. Por exemplo, não é razoável admitir que um grupo de meliantes troquem informações envolvendo tráfico de armas visando a invasão de um determinado espaço social sem que as forças de ordem tenham acesso a tais informações ou que certas informações prevendo a destruição de importantes infra-estruturas públicas (prédios, pontes, etc.) sejam gratuitamente veiculadas entre indivíduos ligados ao mercenarismo militar ao arrepio do controlo das forças de ordem. É do interesse da comunidade que tais informações sejam controladas para que os respectivos actos e efeitos sejam controlados e, se possível estancados. Portanto, é do interesse público que determinadas informações, embora circulando em áreas de reserva íntima sejam controladas. Aqui coloca-se o problema do interesse público contra o interesse do indivíduo. É o problema que se coloca no âmbito da escutas telefónicas.
A questão das escutas telefónicas é interessante porque por um lado facilita o controlo da informação necessária a constituição de meios de provas, fundamentalmente em se tratando de provas para crimes de natureza público – que em Angola faz toda a oportunidade depois da aprovação Da Lei da Probidade Pública, Lei dos Crimes Contra a Segurança do Estado, Lei do Branqueamento de Capitais e Financiamento do Terrorismo entre outras que visam a estabilidade social e económica da sociedade e do Estado. Porém, a questão da privacidade do indivíduo é fundamental. Não é cómodo admitir que qualquer cidadão tenha o seu telefone sob escuta, estando sob pressão psicológica constante de estar a ser perseguido a todo o tempo e por quem não se sabe. Com isso, a paz e segurança individual desaparece e o Estado perde a sua função primeira que é a garantia da segurança e paz dos indivíduos. Ou seja, com a invasão arbitrária da privacidade dos indivíduos não há razão para manter o Estado e o caos instala-se promovendo a anarquia à semelhança da desordem natural da selva. A privacidade é o último recurso da existência harmoniosa da sociedade. Entende-se o problema?
Sobre esta questão Miguel Júdice – eminente Advogado português – assenta: “ a escuta telefónica está a tornar-se o equivalente no Século XXI para a tortura de épocas pretéritas (…)”. Pois trata-se de um mecanismo de grande incómodo social para o indivíduo. Contudo, vale examinar quando começa e até aonde vai a escuta telefónica para vermos se a privacidade do individuo é salvaguardada ou não.
Desde logo, é importante notar que as escutas telefónicas são admissíveis apenas nas fases da instrução preparatória de crimes visando processos judiciais e julgamentos correspondentes. Ou seja apenas nos casos em que alguém é arguido ou réu e processo judicial pode ser alvo de escuta telefónica. É o que o Projecto de Lei sobre Escutas Telefónicas prevê (art.º 1º). E não em quaisquer crimes. O mesmo projecto prevê que apenas nos crimes de a) Terrorismo, criminalidade violenta ou organizada, b) Crimes contra s Segurança do estado, c) Contra paz e humanidade, d) Tráfico ilícito de estupefacientes, armas, engenhos e materiais explosivos, e) branqueamento de capitais, falsificação de moeda ou títulos equiparados e fuga ao fisco, f) Tráfico ilícito de diamantes, e g) Todos os crimes puníveis com pena maior. É claro que prever escutas telefónicas a todos os crimes puníveis com pena maior e contra quaisquer crimes enumerados sem os devidos doseamentos axiológicos podem resultar em exageros e como tal invadir em maior ou menor grau a esfera jurídica permitida pela reserva íntima do cidadão. De qualquer modo, verifica-se alguma salvaguarda dos direitos e interesses dos cidadãos. E não basta. É necessário que um despacho devidamente fundamentado do Ministério Público (PGR) autorize a escuta e com tempo devidamente acautelado. Aliás, o facto de termos as escutas admitidas em fase de processo judicial (não importa o momento) é por si só uma garantia de não invasão generalizada da privacidade dos cidadãos, i.e., não está aberta a todos os cidadãos como não era de se esperar.
Aqui verifica-se um ligeiro “beliscar” da Lei à privacidade absoluta do indivíduo (certo tipo de indivíduos, no caso) que em sociedades multiorganizadas e cada vez mais complexas não deve ser um monopólio invicto ante a necessidade de salvaguarda de interesses da colectividade representada pelo resto dos cidadãos, embora a Lei nem sempre admita a pura disposição deste Direito por parte do seu titular. Ainda assim coloca-se o problema de admitir esta invasão mesmo se tratando de indivíduos à conta com a justiça. A este propósito Miguel Júdice, citado Advogado, rebate “…A situação está, portanto, intolerável. Quanto mais não seja porque a generalização de escutas como método de investigação significa a destruição na prática do direito do arguido em não cooperar com a sua própria condenação”. E não é menos ofegante esta constatação. Se por um lado é admitido a presunção de inocência do arguido no processo judicial, mediante o qual este não é obrigado a confessar o crime – colocando o tribunal na condição obrigatória de o investigar –, por outro lado a escutas telefónicas pretende ser uma arma contra o arguido negando o direito de proclamar a sua própria inocência com a devida protecção da Lei. É nesta linha fronteiriça entre o direito de personalidade e o interesse público que se coloca a polémica do debate a volta das escutas telefónicas em que é de privilegiar a maior restrição possível das esferas e momentos em que são admissíveis.
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