quarta-feira, 25 de maio de 2011

OS ANIMAIS DE ESTIMAÇÃO E A SUA PROTECÇÃO SOCIAL

Albano Pedro

Numa altura em que a necessidade de materialização dos direitos humanos preenche os discursos reivindicativos dos povos da África no geral e dos países em que estão estabelecidos governos pouco abertos à democracia ao ponto de alimentarem a onda de manifestações que vem abalando o mundo nos últimos tempos, em especial, parece esdrúxulo falar da protecção animal, sobretudo dos animais de estimação. Mas estes, tais como os homens, preenchem a nossa realidade social e vivem os nossos problemas, embora em intensidade e grau diversos, e como tal não é nada incomum uma abordagem temática a propósito da sua “inserção” social, “maxime” na vertente da protecção, senão jurídica, pelo menos social. Na verdade, a sugestão temática mais próxima da questão em abordagem é a intolerância social (para não dizer política) contra os animais. Isto porque o debate sobre a protecção dos animais de estimação, embora periférico em relação aos estrangulamentos económicos e às assimetrias regionais de que Angola enferma, começa a tornar-se urgente. Por um lado, devido a distracção social (falta de atenção das autoridades públicas e mesmo da sociedade civil) perante o fenómeno da violência contra os animais e por outro lado, devido ao facto de serem, a semelhança dos homens, agentes de doenças com repercussões endémicas ou pandémicas consideráveis, embora nessa vertente os agentes oficiais da administração sanitária pública tenham alguma presença de nota, ainda que tímida.
Na vertente da violência animal, a questão vem a liça a propósito da evolução do processo de convivência social entre os animais e pessoas em Angola desde a independência, sobretudo nos grandes centros urbanos, que sofreu flutuações consideráveis com as turbulências sociais inicialmente registadas pelo fim do processo de descolonização (Verbi gratia: o êxodo de portugueses em saída forçada para Portugal e outros países estrangeiros) e fortemente marcadas pelo conflito armado que se estendeu até os mais recentes tempos. Tamanho processo é, pela complexidade e magnitude sociopsicológica, digna de estudos e pesquisas de grande rigor que podem dar vazão à um programa ou plano nacional de protecção dos animais.
É verdade que, entre nós, o ordenamento jurídico não reconhece direitos para animais ao contrário de certos países em que chega a ser possível constituir um animal de estimação em herdeiro de parte ou totalidade da fortuna deixada pelo seu proprietário, para exemplos mais exagerados (exemplos de países anglófonos como os Estados Unidos da América e outros tantos); ou que reconhecem um conjunto de direitos em animais que configuram uma base sólida de protecção contra a violência do homem, para exemplos mais regulares (não estamos a fazer referência à convenções internacionais que proíbem o comércio e tráfico de animais selvagens entre os quais espécies raras que merecem a protecção de todo o mundo pelo perigo de extinção a que estão sujeitos ou pela influência negativa aos seus respectivos habitat). Em Angola, e segundo a Lei, o animal é uma coisa (res) susceptível como tal de uso, abuso e destruição (ius utendi, fruendi et abutendi) no exercício mais extremo do direito de o dispor do seu proprietário, embora esta última asserção (a do reconhecimento da capacidade de destruir o bem) já não seja tão eloquente no exercício dos direitos de propriedade desde o sistema jurídico romano clássico em que o instituto da propriedade sobre as coisas foi reconhecido. Se matarmos um animal (desde que não seja alheio ou uma espécie selvagem protegida), nenhuma consequência jurídica daí advém. Aliás, mesmo nos casos em que o animal é alheio, a causa da responsabilidade jurídica é sempre devida ao dano (por perda) contraído pelo dono do animal perecido e nunca pela morte em si, como acontece entre os humanos. Acresce-se que como coisa, o animal é susceptível de ser apropriado em caso de se encontrar em estado de abandono, i.e., é classificado como res nullius. O Direito Civil angolano estabelece que os danos causados pelos animais responsabilizam em determinadas situações os seus proprietários (art.º 502º), o que consuma a ideia de que o animal é um mero objecto ao dispor do seu dono.
Entretanto, com a independência de Angola muitos animais de estimação foram abandonados e nos grandes centros urbanos muitos deles ganharam uma condição de animais sem donos ou “quase-selvagem” (para usar uma terminologia que os coloca numa condição de abandono total) e obviamente foram se reproduzindo e como tal multiplicando o seu número sem o controlo das autoridades públicas. Nos anos 80 em que o trânsito automóvel e fluência demográfica nas grandes cidades (Luanda, Benguela, Huambo e outras) não tinham a intensidade dos dias de hoje, era fácil perceber essa condição em muitos animais mesmo durante o dia. Estamos lembrados de pombos em centenas de milhares aglomerados nas estações do comboio; dos gatos que habitavam zonas próximas das residências e que usavam estas como locais de sustento ou mesmo dos cães que viviam em zonas circunvizinhas e que se reuniam em matilhas durante a noite quando fossem a procura de alimentos e de parceiros para acasalamento. É uma realidade que hoje vai sendo cada vez mais rara devido ao “reinserção” social que muitos destes animais abandonados foram sujeitos com o tempo através do mecanismo de apropriação de coisa sem dono. Ao longo do conflito armado os animais não viram a sua condição social protegida pela sociedade através de leis e outros mecanismos que os tornassem seguros na convivência com os homens, salvo a vigência de raras medidas administrativas com fins de preservação da saúde pública. E como tal toda a violência contra eles vertida não tem sofrido repúdio público digno de nota. É fácil percebermos esse facto quando nos dirigimos à uma esquadra de polícia para participar o roubo ou furto de um cão, um gato, um macaco ou de um outro animal de estimação qualquer. Perante a participação da ocorrência, os agentes da polícia reagem, em regra, sem qualquer interesse em exercer a acção policial. As autoridades públicas têm a noção generalizada de que os animais são meras “coisas” e como tais susceptíveis de substituição ou reposição (que é, infelizmente, um comportamento conforme a Lei). Em consequência, os animais configuraram uma realidade social violenta e como tal reagem em conformidade. Enquanto, em certos países (europeus sobretudo), os pombos são animais muito afeiçoados às pessoas que os alimentam a mão, em Angola estes afastam-se logo à primeira aproximação humana e mesmo até do seu proprietário. O mesmo se passa com os gatos e os cães, que reconhecem perfeitamente o perigo que se interpõe no seu relacionamento com o homem. Paira em Angola um ambiente de violência notória que o instinto animal tem bem registado e que é bem patente na sua reacção contra os homens. Por isso, é fácil notamos os pombos a desaparecerem a nossa aproximação, os cães ou gatos a reagirem agressivamente em troca da violência que recebem de nós quando se nos deparam.
Nos tempos de normalização social (sobretudo política) que correm em Angola, em que o fenómeno da violência doméstica e outros actos que perigam a normal convivência entre os homens começam a ganhar terreno no campo das atenções de governantes e legisladores, se afigura oportuno enquadrar a questão da protecção dos animais contra a violência dos homens entre as prioridades normativas, através da elaboração e aprovação de pacotes legais dirigidos a este fim e outros que contribuam para a sã convivência entre os homens e os animais em centros urbanos, principalmente. Pois, trata-se de materializar o processo global de estabilização social estendendo a segurança e a tranquilidade pública aos animais que muitas vezes se encontram inseridos nos nossos ambientes familiares como se fossem membros.

terça-feira, 24 de maio de 2011

DOS CRIMES CIBERNÉTICOS E DAS ILICITUDES NO CIBERESPAÇO

A PROPÓSITO DA LEGISLAÇÃO SOBRE OS CRIMES DA ERA DIGITAL

Albano Pedro



Os avanços tecnológicos que seguiram a segunda guerra mundial deram lugar a profundas alterações nas relações económicas e até políticas entre os povos, pois que da revolução industrial surgiu a revolução tecnológica dando lugar a sociedade de informação que estabelece novos padrões no comportamento dos indivíduos e das sociedades. Como consequência, a dinâmica económica e social acelerou consideravelmente e o conceito material de trocas comerciais alterou para um conceito virtual onde o factor espaço e tempo ganharam novas dimensões na prática comercial e na percepção das pessoas. Assim, uma nova visão sobre os fenómenos sociais é chamada a assistir os chamados “actos cibernéticos” que operam por uso e utilização de equipamentos informáticos. Vem disto, que a aplicação do Direito nesta nova realidade não tem sido fácil e nem facilitada. Pelo contrário, ela conhece obstáculos consideráveis que muitos países que lidam há mais tempo e com maior intensidade com as tecnologias de informação nem por isso têm superado. Os dois principais obstáculos são sem dúvidas a natureza reparadora do Direito e a crise espácio-temporal trazida pelos actos cibernéticos, i.e., por um lado, perante a velocidade dos acontecimentos sociais o Direito vem a regular os factos sempre com algum atraso. Uma situação inevitável que se instalou na mecânica jurídica devido ao facto de se legar ao Direito a função de prever factos ora existentes e por isso experimentados na realidade fáctica (já que não se podem prever normas sobre condutas não existentes na realidade circundante). Situação essa que é muito mais acentuada em países de matriz jurídica Romano-germánica em que a sempre atrasada Lei impera no comando das normas reguladoras das sociedades em detrimento do sentido de prontidão dos sistemas jurídicos anglo-saxónicos (Reino Unido, EUA e a maioria dos países anglófonos) que privilegiam um instrumento de aplicação imediata sobre as condutas emergentes que se manifesta com a regra do precedente judiciário (case law). Por outro lado, o conceito de tempo e espaço na mensuração dos actos jurídicos praticamente desapareceu colocando problemas básicos inerentes a aplicação das normas jurídicas. Por exemplo, é frequente assistirmos a relações de compras e vendas complexas como esta em que um interessado residente na Índia, com estadia turística em Angola, adquire, via internet, um bem patrimonial (viatura, no caso) nos EUA através de um (site) sítio localizado em França com o local de entrega do bem na Austrália onde se encontra a esposa. Colocando o problema do local da compra do bem assim como a questão de determinar a Lei (de que Estado) a aplicar em caso de conflito entre as partes envolvidas no contrato.

Por estas principais dificuldades de penetração do Direito nesta realidade, novos problemas (complexos e numerosos) vão surgindo, desafiando o engenho previsional do Direito. Entre os quais é a exposição da privacidade das pessoas a uma realidade globalizante, onde a possibilidade de controlo e prevenção contra os actos violadores da mesma são ultrapassadas a cada dia pela velocidade das transformações tecnológicas (agressão a imagem, a direitos e a propriedade). O que tem tornado urgente e necessário a regulação da sociedade de informação em todos os países. Angola não podia deixar de se envolver neste magno desafio em que a invasão dos “actos cibernéticos”, a mais das vezes, trazem consigo situações simultaneamente enigmáticas e perigosas para a realidade social tal como a conhecemos. O que, desde logo, sugere que o surgimento de uma Lei de Combate à Criminalidade no Domínio das Tecnologias de Informação e de Comunicação e dos Serviços da Sociedade de Informação (doravante LCCTICSS) tem a oportunidade de vir a acudir a nossa realidade social destas inoportunas invasões.

Paradoxalmente, diante de uma miríade de “actos cibernéticos” susceptíveis de perigar a segurança dos indivíduos e da sociedade envolvente perfilando entre posse indevida de dados, invasão a sistemas bancários gerando fraudes significativas, a transferência ilícita de conteúdos informáticos, entre outros a LCCTICSS privilegia actos de somenos importância para a segurança dos indivíduos (e nalguns casos necessários a inserção dos indivíduos na era digital). Foge do enquadramento multissectorial da actividade potencialmente criminal dos cibernautas operante no mundo digital para tipificar condutas que se confundem com aquelas já previstas em diplomas legais de natureza penal de enquadramento histórico duvidoso. Por exemplo, é triste perceber que o diploma legal (proposta) em apreço insiste em prolongar a capacidade repressora da Lei dos Crimes contra a Segurança do Estado em si já inconstitucional em múltiplos aspectos, ou em provocar a inibição no uso massivo das novas tecnologias de informação nas relações sociais, quando nos dias que correm as sociedades são encorajadas a superar o subdesenvolvimento e a má governação pelo uso massificado das mesmas.

É de esperar que o sentido tipificador, para as condutas potencialmente criminais no âmbito da sociedade de informação, caminhe para os actos cibernéticos internacionalmente conhecidos como violadores de interesses individuais e colectivas para os quais as sociedades de uma maneira geral procuram afunilar os esforços preventivos e repressivos das normas jurídicas em nome do interesse de uma maioria difusa, ao invés de privilegiar o controlo de interesses contra a própria sociedade que se emancipa no contexto mundial através crescente utilização das tecnologias de informação.

segunda-feira, 2 de maio de 2011

CONSTITUIÇÃO OU LEI CONSTITUCIONAL?

DO CONFLITO ENTRE A DIMENSÃO MATERIAL E A DIMENSÃO FORMAL

Albano Pedro

Recentemente tive acesso a uma questão colocada no meu blogue em que um internauta anónimo, a quem agradeço a abordagem, interrogava a razão de eu utilizar a terminologia Lei Constitucional em vez de Constituição, uma vez que o texto da Lei Magna vigente consagra esta última terminologia. Não é a primeira vez que sou assaltado por questões dessa natureza, as quais já me debrucei em conferências e entrevistas públicas, e também este texto não reflecte a primeira defesa escrita nesse sentido. Tenho publicado um outro texto em que justifico a utilização do conceito de Lei Constitucional que pode ser acessado na internet a partir do meu blogue ou no Club-K. De qualquer modo, nunca é demais apresentarmos outras e novas perspectivas da nossa defesa a esse respeito.
Entendo, como de resto a Ciência do Direito Constitucional faz questão, que a Constituição, enquanto documento magno que reflecte a contratualidade da existência social dos homens, fruto do movimento constitucional desencadeado pelo iluminismo europeu e que derrubou a monarquia, comporta uma dimensão política e uma dimensão jurídica. Aquela tem sido considerada pela Teoria da Constituição como sendo Constituição Originária e esta, Constituição Derivada (os textos do constitucionalista português J.J. Gomes Canotilho muito em voga na nossa praça académica são eloquentes nesse sentido). A Constituição reflecte-se assim em dois momentos: um momento material (vontade política) e um momento formal (vontade jurídica). Sendo esta expressão clara daquela. Vem disto que o estudo da Constituição não é monopólio da Ciência Jurídica. É reclamada em igual dimensão pela Ciência Política. Tal é razão metodológica dos estudos sobre a constituição serem feitos, nas faculdades de Direito, em cadeiras em que são aglutinadas as duas ciências, i.e., Ciência do direito Constitucional e Ciência Política. O processo constituinte é expressivo nesse sentido. Há uma dimensão política da constituição, constituída pelo sentimento de nação, que é monopólio do povo enquanto detentor do poder originário ou Constituição Originária (dimensão material) que é transferida por meio de voto (processo eleitoral) aos seus representes parlamentares que como mandatários políticos ganham o poder de formalizar (mediante texto) a mesma constituição. A vontade do povo (Dimensão Política) transfigura-se em texto (Dimensão Formal). O que nada impede que chamemos a essa última dimensão de Constituição Formal como é usual entre os estudiosos da Constituição.
E quando estamos perante uma Constituição? Como é lógica a falta de coincidência entre a vontade originária do povo e a vontade manifesta dos deputados, é obvio que a constituição aprovada por estes sofre declives epistemológicos e fissuras hermenêuticas significativos ao ponto de ser evidente uma nova dimensão completamente independente (dimensão formal). Vem disto que a Constituição Originária raramente é interpretada pela Constituição Derivada o que quebra a unicidade lógica que o levaria a ser efectivamente chamada Constituição. Assim, quando estamos perante um texto constitucional que não coincide com a vontade política da sociedade (Constituição Originária ou Material) estejamos certos de estarmos apenas perante uma Lei Constitucional, i.e., perante uma simples dimensão formal da Constituição que como tal não revela o seu aspecto material. É esta quebra epistemológica que potencia os conflitos políticos das sociedades. Pois, quanto mais coincidentes forem as dimensões formal e material da Constituição menor é o grau de conflitos sociais e maior é a possibilidade de afirmação de uma verdadeira Constituição. Podemos falar que aqui a dimensão ética do povo coincide com a dimensão jurídica, i.e., as leis reflectem a vontade do povo. É o que se passa em países com grau de civilização avançada como Inglaterra, para citar um exemplo, em que a dimensão material se aproxima tanto da dimensão formal da Constituição ao ponto da Ética se confundir com o Direito.
Portanto, é por razões de coerência científica e académica que chamo Lei Constitucional, para não trairmos o aprendizado e a doutrina maioritária e convencional vigente. Em Angola, como podemos calcular, não há espaço histórico para uma verdadeira Constituição como se pretende com tamanha avidez. Calculo que a Lei Constitucional é um começo para a aproximação de ambas as dimensões, já que Angola é uma das sociedades políticas, como a maioria das sociedades africanas, em que o nascimento do Estado (Constituição Formal) antecede ao nascimento da Nação (Constituição Material). Sendo uma infeliz inversão provocada pela História Colonial dos povos de África. Revela-se assim, uma tendência para fazer nascer uma dimensão formal que vá de encontro a uma dimensão material, porém (aqui está o problema) de forma impositiva ou forçada pelas opções ideológicas e políticas que persistem desde a independência da Angola em detrimento de uma maturação histórica natural como consequência da emancipação política do povo.
É minha percepção que, a tendência para a manipulação do conceito de Constituição tem mera finalidade política. Visa infundir a ideia de que a vontade jurídica é totalmente coincidente com a vontade do povo. Levando a uma obediência cega à lógica de governação em detrimento da afirmação de uma identidade nacional desenvolvida pelo sentido de liberdade dos indivíduos.