sexta-feira, 16 de setembro de 2011

AS MANIFESTAÇÕES POPULARES E AS CONDIÇÕES PARA A CONDENAÇÃO DOS SEUS ORGANIZADORES

(Texto recomendado pelo Semanário Angolense)



Albano Pedro



À luz da Lei Constitucional – LC (para o legislador: Constituição da República) já não é possível surpreenderem-se manifestações ilegais. Desapareceu a força do argumento da autorização imposta ao abrigo da Lei n.º16/91 (Lei Sobre o Direito de Reunião e de Manifestação – adiante LDRM) para que as mesmas sejam realizadas porque a LC deixa claro que as manifestações não carecem de autorização (art.º 47.º), embora devam ser exercidas ao abrigo da lei ordinária competente (LDRM). Na verdade a LC devolveu a manifestação a sua verdadeira natureza jurídica que é a de ser uma liberdade fundamental. As liberdades por serem inerentes ao homem não carecem de serem atribuídas, e como tais autorizadas, são apenas reconhecidas pelo Estado e pelos respectivos sistemas jurídicos. Afinal as liberdades existem antes de qualquer sociedade. São intrínsecas ao homem enquanto indivíduo e correspondem ao estádio mais puro dos direitos do homem. Daí estarem estreitamente ligadas a linha dos direitos naturais com toda a pureza que os caracteriza (ius naturale est quod semper aequum et bonum est). E a dispensa de autorização no novo texto constitucional torna essa realidade evidente. Representando assim uma grande conquista no plano dos direitos humanos fundamentais.

De todo o modo, as manifestações devem ser comunicadas para que sejam organizadas com os auspícios das autoridades públicas sem prejuízo dos direitos e liberdades de quem delas não toma parte ou não tenha interesse. O que não quer dizer que as manifestações não comunicadas não devam ocorrer. Por esse argumento hermeneutico-constitucional é que são admitidas as manifestações espontâneas. A comunicação às autoridades obriga estas a criarem condições para que as manifestações ocorram num ambiente pacífico, pela prevenção de actos de puro vandalismo e sabotagem que normalmente ocorrem nesses casos, seja por terceiros estranhos aos propósitos da manifestação, seja pela animosidade dos próprios manifestantes. Uma outra consequência da comunicação as autoridades é torná-las responsáveis pela desordem que se verificarem durante a manifestação regularmente comunicada já que a responsabilidade pela manutenção da ordem passa em depósito das autoridades, normalmente policiais. Embora, a experiência, em Angola e no mundo, demonstre que quando a polícia receba ordens para impedir a manifestação a eclosão da desordem e violência se torne inevitável, o que confere oportunidade bastante para a polícia deter os manifestantes com alegação de faltar com as normas da ordem pública. A comunicação é a simples informação escrita dirigida com cópia a autoridade competente nos termos da LRDM. Não é para discutir roteiros, tão pouco para acertar datas como pretendem muitas vezes os governos provinciais quando comunicados. Precisamente porque estes “entretantos” administrativos já não condicionam a realização de quaisquer manifestações que sejam. Por razões cívicas e de colaboração com as autoridades públicas, os manifestantes podem modificar alguns procedimentos, não sendo contudo obrigados a fazê-lo por lei.

É verdade que a LDRM mantém no seu corpo de normas, um conjunto de condições impeditivas para a realização de manifestações, como horários e locais apropriados, autorização da administração pública, prazo mínimo para comunicação, etc. Contudo, os condicionalismos colocados pela LDRM tornaram-se inconstitucionais e facilmente podem ser alegados como tais, por qualquer defesa que delas lance mãos, em processos judiciais que pretendam julgar organizadores e participantes de manifestações consideradas ilegais. Há muito se vem chamando atenção sobre a inconstitucionalidade parcial da LDRM e a necessidade de colocá-la fora do sistema jurídico nacional mediante declaração de inconstitucionalidade a ser proferida pelo Tribunal Constitucional. A nova LC recomenda esse procedimento com urgência já que a nova previsão normativa fundamental tornou perigosa a aplicação do diploma legal em referência. Mas, não deixa de prevalecer a ideia de que o objecto da manifestação tem de ser lícito. Por exemplo não se admitem manifestações contrárias a ordem pública, susceptíveis de provocar ódio entre os cidadãos, e sobretudo contrárias aos ditames legais e aos bons costumes. As manifestações legalmente inadmissíveis estão elencadas na lei (LDRM) em benefício da paz pública.

Do que se expendeu fica claro que ninguém pode ser condenado por participar em alguma manifestação por alegada ilegalidade da mesma. Senão pelo fim ilícito que tenha perseguido. Em face disto, restam poucas ferramentas probatórias com idoneidade para serem consideradas como elementos suficientes de acusação em juízo. Entre elas estão os danos provocados pelos manifestantes e os pronunciamentos injuriosos devidamente provados.

No que toca aos julgamentos (em meio a prisões, maus tratos entre outros actos pouco aceitáveis) que estão a ser sujeitos os jovens manifestantes cuja notícia passeia actualmente a imprensa mundial, é de considerar que o argumento da ilicitude das manifestações é claramente descartado porque a acusação dela não se tem socorrido. Na verdade, a inteligente assessoria que a Polícia Nacional (PN) demonstra ter, levou-o a trilhar fora dessa vereda acusatória invocando ao invés o argumento da agressão contra os seus agentes entre as outras acusações fora do âmbito da ilicitude da manifestação em si. Lamenta-se ainda assim que a acusação não tenha força probatória convincente para vingar em juízo pela grosseira inverosimilhança das provas apresentadas. Uma vez que as provas reais captadas em imagens de vídeo e fotográficas, bem como o grosso das testemunhas oculares, favorecem claramente a inocência dos organizadores da manifestação. Contudo, nos parece que a luta pela verosimilhança das provas foi em desfavor dos jovens que acabaram condenados. O que não implicou falta de idoneidade das mesmas pelo que ficou demonstrado pela defesa que procurou alega-las em juízo com pouco sucesso, visto que a parcialidade do julgamento a dada altura se mostrou notória em favor da acusação. Fica o consolo do recurso interposto para o Tribunal Supremo para o último julgamento realizado. Contudo, fica subjacente, nesse julgamento pouco imparcial, a ideia da inibição do exercício da liberdade de manifestação. Os argumentos políticos que podem ser invocados para fundamentar o vício do processo judicial e a opinião pública formada a propósito situa-se na ideia de que as manifestações tendem a instaurarem distúrbios contra a sociedade. Taxando seus mentores e organizadores de cidadãos irresponsáveis com epítetos discriminatórios como “arruaceiros” entre outros. O que faz reduzir tendencialmente o valor e a importância da conquista das liberdades fundamentais pelos angolanos como fundamento para a construção do edifício do primado da lei e da democracia em Angola. Dixit.

terça-feira, 13 de setembro de 2011

DIREITO A VIDA I

COMO MOTIVO DA PARTICIPAÇÃO PÚBLICA DOS CIDADÃOS



Albano Pedro



A vida humana por si só não é um direito, embora essa constatação não seja vista de modo unânime entre os teorizadores das ciências jurídicas. Contudo é digna de protecção jurídica a partir de uma previsão normativa positiva da própria Lei Constitucional – LC (Direito à vida - art.º 30º) ao todo restante da legislação infraordinária. E assim também se compreende in puris naturalibus, uma vez que dela depende a sobrevivência e continuidade da espécie humana. Pode ganhar uma dimensão patrimonial em geral (ser objecto de responsabilidade civil), e por vezes financeira em especial (ser objecto de contrato de seguro – conhecido por seguro de vida) dos quais resultam a sua reparação em caso de ameaça ou perda. Mas, é perfeitamente aceite nas academias jurídicas que a vida seja classificada como um bem. E dos mais importantes na hierarquia dos bens jurídicos sendo elevada ao mais alto nível de protecção jurídica (goza de protecção absoluta) e como tal não admitindo qualquer forma de interrupção no seu exercício (proibição de pena de morte – art.º 59º LC) nem mesmo por vontade alheia a de quem a interrompe (consagração criminal do homicídio involuntário – art.º 368º - Código Penal, adiante CP) ou ameaça interromper (criminalização da tentativa de homicídio e do homicídio frustrado – art.º 350º CP), mesmo quando a interrupção seja no interesse da própria pessoa cuja a vida se pretende proteger (criminalização do auxilio ao suicídio – art.º 354º). O que deixa claro a falta de concordância com as correntes de opinião que percebem como sendo razoável a consagração legal da eutanásia. Esta protecção começa desde os primórdios da formação humana no ventre (proibição geral do aborto – art.º 358º - CP) embora nesses casos se admita a sua cessação quando esteja em risco a vida da gestante (admissão do aborto em caso de conflito de interesses) o que coloca a questão de escolha entre a vida do feto e a vida da gestante.

A vida como um bem jurídico complexo também se exprime na LC através de vários direitos. Alguns desses direitos têm uma dimensão exclusivamente individual – com forte implicação psicológica na existência humana - como o direito a integridade pessoal (art.º 31º), o direito à liberdade física e à segurança pessoal (art.º 36.º), o direito ao ambiente (art.º 39.º), direito à liberdade de consciência (art.º 41.º), etc; outros têm uma marcada dimensão social – com notáveis implicações psicossociais. Ora com nuances económicas como o direito de propriedade (art.º 37.º), direito à iniciativa económica (art.º 38.º), direito ao trabalho (art.º 76.º), etc; ora com nuances políticas, como a liberdade de reunião e manifestação (art.º 47º), liberdade de associação (art.º 48º), liberdade sindical (art.º 50º), direito de participar na vida pública (art.º 52.º) entre muitos outros direitos, liberdades e garantias. Essa cadeia de direitos estabelece um emaranhado de interesses que se cruzam em toda a existência social do homem tornando-o um ser necessariamente político. O que torna sobretudo claro que a vida e a liberdade são unidades interdependentes entre si que exprimem uma totalidade normativamente protegida como vimos nos exemplos enunciados.

Fora do plano jurídico a vida e a liberdade realizadas na sua plenitude constituem a essência da elevação humana aos mais altos níveis da sua realização simultaneamente material e espiritual. Aqui a vida se percebe como a dimensão material da liberdade tanto quanto se percebe a liberdade como a dimensão espiritual da vida. Essa verdade é eloquente tanto na perspectiva teológico-religiosa (Jesus Cristo sustentou que não só do pão viverá o homem (vida), mas de toda a palavra vinda de Deus (liberdade); quanto na perspectiva filosófico-política (Karl Marx distinguiu no seu materialismo dialéctico a ideia de que a estrutura (relações de trabalho e propriedade – como vida) determinam a superstrutura (as ideias e as concepções – enquanto liberdade). Desde logo, a manifestação da liberdade enquanto processo de interacção social coincide com a processo de afirmação física do homem expressa pela vida em todo o seu ciclo existencial. E disto vem que quanto menos se eleva a vida no seu processo de realização menos se sente a liberdade levando a desarmonia do homem com o meio ambiente que o identifica. O ideal de justiça torna-se então a meta de harmonização entre a vida e a liberdade humana. Assim se percebe que na Grécia antiga o florescimento das artes e ciências (a que Karl Marx denominaria superstrutura) ganharam expressão com a realização económica dos indivíduos (melhoria substancial das condições de vida). Tornando essa sociedade clássica numa das maiores referências civilizacionais para a humanidade até aos dias de hoje.

Destarte, fica claro que quanto mais se realiza a vida humana (existência social) maior é a necessidade de liberdade. O que pressupõe a sua conformação com as opções políticas do meio social. Pois, que o processo de emancipação da vida e da liberdade ao longo dos tempos tem sugerido o seu próprio formato social, dando lugar aos vários sistemas políticos que vem desde a democracia directa, representativa, socialista, etc., com todos os conflitos e choques contra a liberdade humana que se conhecem em meios as revoluções e reformas sociais catalogadas pela história da humanidade. O fim do esclavagismo, o término da I e II guerra mundial e a consagração do direito ao sufrágio universal, inauguram a era do respeito estrito pelos mais elementares direitos do homem positivados no concerto das nações através da Carta das Nações Unidas e através da Carta Africana dos Direitos do Homem e dos Povos para os Estados africanos. O respeito pelos direitos do homem permitiu a percepção de que a estabilidade política e a afirmação das opções políticas são apenas possíveis com o respeito a vida através da consagração da sua protecção por um lado e das liberdades que a devem manifestar por outro. Assim, é que as opções políticas das sociedades nos últimos séculos se têm afunilado para a Democracia representativa por ser aquela que mais manifesta a liberdade humana e detrimento de outras que vão conhecendo crises significativas na sua implementação (caso do socialismo ou comunismo da ex URSS, China e Cuba).

A participação pública como necessidade de preservação do direito à vida tem duas dimensões claramente consagradas na LC. Uma dimensão de carácter genérica (Direito de sufrágio – art.º 54º) que implica a participação de todos os cidadãos no processo de renovação de mandatos dos seus representantes na gestão dos interesses colectivos; e outra dimensão de carácter especial, por dizer respeito à quem manifeste interesse concreto nesse sentido, que é a liberdade de participação na vida pública e na gestão dos interesses colectivos (art.º 52º). Nesta ultima dimensão, o exercício do direito à vida manifesta-se pela necessidade de controlo directo dos meios e instituições que influenciam a organização e o funcionamento da sociedade. O que se faz, de modo mediato, através de partidos políticos (art.º 55º) e de modo imediato através de acesso a cargos públicos (art.º 53º).

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

TRIBUNAL DE CONTAS

SUA NATUREZA E FUNÇÃO COMO ENTIDADE PÚBLICA



Albano Pedro



Nos termos da Lei 13º/10, de 9 de Julho – Lei Orgânica e do Processo do Tribunal de Contas – adiante LOPTC, o Tribunal de Contas (TC) é o órgão supremo de fiscalização e legalidade das finanças públicas e de julgamento das contas que a lei sujeite à sua jurisdição (art.º 1º), compreendendo nesta jurisdição os órgãos de soberania e seus serviços; os órgãos da administração pública central; os governos provinciais, administrações municipais e demais órgãos da administração local do Estado; institutos públicos; autarquias locais, suas associações e seus serviços; empresas públicas e as sociedades de capitais maioritariamente públicos; as associações públicas e privadas que sejam financiadas maioritariamente por entidades públicas; entidades de qualquer natureza que tenham participação de capitais públicos e quaisquer outros entes públicos que a lei determine (art.º 2º, n.º 2). Podendo o TC estender a sua jurisdição sobre outras entidades não descritas desde que utilizem fundos públicos (art.º2º, n.º 2). Numa palavra: o TC sujeita à sua jurisdição todas as entidades que façam uso de dinheiros do Estado. Sejam elas entidades públicas ou entidades privadas.

O que é discutido nas escolas de Direito é o ponto de esclarecimento sobre a natureza jurídica de qualquer Tribunal de Contas. Algumas opiniões questionam a sua natureza judicial, i.e., interroga-se se o TC é um tribunal no verdadeiro sentido (estando inclusive integrado no sistema judicial que inclui todos os tribunais, comuns e especiais; ou é um mero órgão integrado na administração pública e que se ocupa da fiscalização das contas do Estado. Ou seja, se é um órgão administrativo. Diluída a querela numa linguagem mais amena pretende-se saber se o TC julga as contas do Estado (emitindo pareceres sobre o mérito da gestão) ou os seus gestores (nomeadamente condenando-os pelos actos de gestão danosa). Por um lado, o TC pode ser visto como um órgão judicial. É independente e os juízes, no exercício das suas funções, gozam dos direitos e das garantias dos demais Magistrados Judiciais (art.º 3º, n.º 1). É composto de nove juízes conselheiros (art.º 4º), as suas decisões podem ganhar a forma de acórdãos (art.º 33º) e são tomadas mediante processos judiciais específicos (art.º 52º) estando subjacente sempre a possibilidade de se assacar aos sujeitos a responsabilidade financeira (art.º 51º). Desde logo podem intervir no processo, como na maioria dos tribunais, o Ministério Público (art.º 55º) e advogados (art.º 56º). O que dá lugar ao exercício do debate contraditório para o apuramento da decisão razoável inerente a prossecução da justiça como objectivo mediato dos tribunais e imediato do Direito mediante a sua aplicação (art.º 57º). Aqui temos registados elementos de um verdadeiro tribunal. Mas, por outro lado pode ser visto como um órgão da Administração do Estado a quem incumbe especialmente a emissão de pareceres sobre as Conta do Estado e apresenta-los à Assembleia Nacional (art.º 6º alínea a) no âmbito do controlo externo. Aqui desaparece qualquer subordinação ao sistema judicial para dar lugar a ideia de subordinação ao poder legislativo. Até porque o TC é dotado de autonomia administrativa e financeira podendo elaborar o seu próprio orçamento anual (art.º 34º) o que completa a sua independência, o que não se verifica com os tribunais integrados no sistema judicial. Em boa verdade, a jurisdição do TC estende-se a todos os órgãos de soberania, incluindo o próprio poder judicial. Aqui nasceria a ideia de um órgão de natureza mista (simultaneamente judicial e administrativo), se a sua abrangência aos três órgãos de soberania e até ao particulares não fosse notória ao ponto de estar mais próximo de um órgão de jurisdição peculiar como lhe denomina um importante sector da doutrina brasileira nessa matéria (vide: Jarbas Maranhão in “Tribunal de Contas: Jurisdição Peculiar”, Revista do TCE/PE, n.13, p.99-102). Desde logo, a responsabilidade civil e criminal derivada da responsabilidade financeira assacada ao gestor é decidida pelos tribunais competentes.

O TC exerce as suas funções fiscalizadoras de duas formas. Uma denominada Fiscalização Preventiva (art.º 8º), entendida como fiscalização anterior a responsabilidade financeira do gestor, em que o TC verifica a conformidade legal dos actos e contratos de órgãos sujeitos a sua jurisdição. Aqui o TC avalia a prática da gestão conforme a legislação vigente antes da sua conclusão, nomeadamente através de pareceres de conformidade. Outra, denominada Fiscalização Sucessiva (art.º 9º), ou fiscalização durante e posterior a responsabilidade financeira do gestor, em que o TC julga as contas das entidades sujeitas à sua jurisdição, com o fim de apreciar a legalidade e a regularidade da arrecadação das receitas e da realização das despesas, bem como, tratando-se de contratos, verificar, ainda, se as suas condições foram as mais vantajosas no momento da sua celebração.