terça-feira, 27 de dezembro de 2011

O PRESIDENTE DA REPÚBLICA

ENTRE O TITULAR, O CARGO E O ÓRGÃO DE SOBERANIA – DIFERENÇAS E PARTICULARIDADES A CONSIDERAR NO SISTEMA JURÍDICO ANGOLANO



Albano Pedro



O Presidente da República enquanto titular do cargo máximo de direcção do Estado não se confunde com o cargo e com o órgão Presidente da República. O Presidente da República enquanto titular do cargo é um cidadão livremente escolhido entre os membros da sociedade. É o primeiro dos cidadãos. Os latinos justamente consideravam-no o príncipe ou chefe sendo nos momentos históricos recentes o primus inter pars por surgir entre os seus pares ou iguais em alusão a igualdade de direitos que todos os cidadãos têm perante a lei em aceder aos cargos públicos conforme as previsões constitucionais da maioria dos Estados, embora já não seja assim à luz da nova Lei Constitucional - LC (Constituição, segundo o legislador) como veremos adiante. Este cidadão tem de ter os requisitos gerais determinados pela LC (art.º 110º, n.º 1) como sejam a maioridade mínima que é de 35 anos, residência habitual em território nacional num tempo mínimo de 10 anos; que esteja no gozo da plenitude dos seus direitos civis e políticos e tenha capacidade física e mental para exercer o cargo. Por capacidade física e mental se entende a possibilidade de estar apto para as várias actividades que implicam o exercício das funções presidenciais. Não se pretende considerar a diminuição física como incapacidade física se não impedir o exercício das funções em causa. Da mesma forma (e por argumento a fortiori) é discutível se a demência, episódica ou permanente, mesmo clinicamente atestada impede o acesso ao cargo em causa, uma vez que a lei considera apenas impeditiva a demência que cause interdição e como tal declarada em tribunal mediante sentença competente. Também há que considerar os requisitos negativos de elegibilidade (art.º 110º, n.º 2) traduzidos em condições de inelegibilidade para o cargo de Presidente da República. Neste caso, há a apontar o facto de o candidato ao cargo não ter qualquer outra nacionalidade (não ter nacionalidade adquirida); não ser Magistrado Judicial ou do Ministério Público no exercício de funções e nem juiz do Tribunal Constitucional, do Tribunal de Contas no activo; não pode ser Provedor de Justiça tão pouco adjunto dessa função; não pode ser membro dos órgãos da administração eleitoral ou militar ou membro de forças militarizadas no activo. Se já tiver sido Presidente da República é admitido como candidato se tiver tido um único mandato e não tiver sido interrompido por destituição, renúncia ou abandono das correspondentes funções presidenciais. A luz da LC, o candidato presidencial é proposto pelo partido concorrente as eleições (art.º 111º) estando descartada a possibilidade de concorrem a esse cargo os candidatos independentes e que como tal concorram sem apoio de partidos políticos como foi legislado ao abrigo da LC antiga. De todo modo, podem ser indivíduos não filiados nos respectivos partidos políticos ou coligação de partidos políticos concorrentes. Não basta ter apoio do partido político concorrente. Tem de ser o cabeça de lista, i.e., tem de figurar como o primeiro da lista dos deputados que o partido elencar oficialmente (oficialmente porque a lista tem de dar entrada válida no Tribunal Constitucional). Assim realizam-se duas eleições simultaneamente. As eleições parlamentares (para eleger deputados) e as presidenciais (com a concorrência implícita dos primeiros deputados das listas dos diferentes partidos políticos concorrentes às eleições. As eleições gerais devem ser convocadas até 90 dias antes do termo do mandato do Presidente da república e dos Deputados à Assembleia Nacional em funções e realizam-se até 30 dias antes do fim do mandato dos mesmos. O mandato do Presidente da República tem a duração de 5 anos e obviamente dura o mesmo tempo que o mandato dos deputados e pode candidatar-se até dois mandatos consecutivos ou interpolados. O cidadão eleito ao cargo de Presidente da República é empossado pelo Presidente do Tribunal Constitucional nos 15 dias que se seguem a publicação oficial dos resultados definitivos. No acto da posse o cidadão presta juramento nos termos descritos pela LC (art.º 115º) em que fica evidente que toma posse como titular de um cargo presidencial. Boa nota a tomar é que a luz da nova LC o conceito de eleição presidencial deve ser substituído pelo conceito de indicação presidencial por questões de rigor técnico-legal e semântico.

O cargo de Presidente da República implica competências distribuídas em funções como Chefe de Estado (art.º 119º), titular do Poder Executivo ou Governo (art.º 120.º) e como Comandante em Chefe (art.º 122º). É no exercício do cargo de Presidente da República que o seu titular representa o Estado e o Governo praticando todos os actos nessa qualidade. Dentre as competências do Presidente da República figuram algumas que representam um verdadeiro atentado ao Estado de Direito e Democrático que se pretende edificado em Angola por violar o princípio da separação e interdependência de poderes dos órgãos máximos do Estado (para a nova LC a denominação de órgãos soberanos, para além da Assembleia Nacional, é radicalmente duvidosa como veremos). Entre elas está o poder de nomear os juízes do Tribunal Supremo. Já era assim à luz da LC antiga. Porém, muito se esperou que essa disposição normativa fundamental fosse expurgada para enfraquecer, nesse sentido, a vinculatividade da Lei 18/88 – Sistema Unificado de Justiça, aprovada no âmbito do sistema de Estado centralizado. É verdade que esta disposição normativa mantém o sistema judicial na linha dos órgãos máximos do Estado não soberanos. Mas compromete gravemente a imparcialidade de todo o sistema judicial angolano na aplicação das leis aos casos concretos. Sobretudo quando os litígios envolvam questões de interesse público e implicam entidades ligadas aos órgãos do Estado.

O órgão Presidente da República é consagrado constitucionalmente como soberano (embora hoje seja contestável como veremos adiante) e compreende um conjunto de serviços entre os quais se encontra o cargo de Presidente da República. São de destacar o gabinete Presidente da República, o gabinete da Primeira Dama da República, a Casa Civil, a Casa Militar entre outros serviços. O órgão, embora juridicamente considerado singular por a titularidade e autoridade assentar in propria persona, tem carácter colectivo porque compreende um conjunto mais ou menos complexo de serviços, em geral, auxiliares em relação ao titular do cargo de Presidente da República. Deste modo, e assim diferenciado, o fim do mandato do titular do cargo de Presidente da República não implica alteração das competências (porque não são específicas da pessoa do titular), tão pouco importa a cessação das funções dos membros dos órgãos e serviços auxiliares do respectivo órgão. Embora nesse caso, o provimento das vagas para as funções principais de tais órgãos e serviços se opere na base da confiança pessoal e como tal dependem da temporalidade implícita ao mandato do cargo de Presidente da República e das conveniências das funções exercidas pelo seu titular.

É perfeitamente contestável o estatuto soberano do Presidente da República à luz da LC. A soberania desapareceu com a consagração das eleições parlamentares que promovem o primeiro deputado da lista do partido político vencedor para o cargo de Presidente da República. O povo já não elege o Presidente. Logo, a soberania que pertence originalmente ao povo não se transfere e em consequência o Presidente da República deixa de ser um órgão de soberania como foi consagrado na Lei Constitucional de 1991 até antes da vigência da actual LC. Assim também é aceitável que nem se fale em eleições presidenciais por estas não existirem em favor de uma indicação interna do candidato pelo partido político vencedor. Em consequência disto é razoável admitir que o Presidente da República já não tenha nenhum poder de soberania (ius imperi) cujas decisões vinculem os dirigidos (Governo ou Executivo) ou representem estes perante terceiros, sobretudo no plano internacional (Chefe de Estado). Acresce-se nessa confusão debilitante o facto de o Presidente da República acumular as funções de Deputado à Assembleia Nacional no momento da tomada de posse como o mais Alto Magistrado do Estado (alguns chamam Nação, por estranho que pareça como veremos mais abaixo). Aqui fica clara a feição que aproxima o sistema de governo angolano ao parlamentarismo inglês em que o Primeiro-Ministro enquanto chefe do Governo é também membro do Parlamento. Mas, o Presidente da República no exercício das suas funções suspende materialmente as suas funções como membro da Assembleia Nacional uma vez que deixa de comparecer as sessões parlamentares nessa qualidade. Aqui devia ocorrer uma suspensão formal como Deputado à Assembleia Nacional no momento da “transferência” de cargo para Presidente da República. O que não está previsto na LC, traduzindo assim uma verdadeira lacuna normativa no nível fundamental das normas jurídicas. Dessa combinação polémica, e de difícil digestão académica e até política, resulta o facto de o Presidente da República beneficiar do estatuto da Assembleia Nacional como único órgão eleito pela transferência da soberania a partir do povo.

Uma outra abordagem a considerar é a personalização do Poder Executivo (Governo) pelo Presidente da República. Ao abrigo da LC antiga o Governo era um órgão colegial e os seus membros (Presidente da República, Primeiro-Ministro e ministros) eram parte da soberania do estado e como consequência eram considerados membros do governo, para além de órgãos políticos, tornando o Conselho de Ministros o órgão superior de administração pública. A nova LC deposita toda a responsabilidade do governo numa única pessoa: O Presidente da República. Aqui nasce a semelhança do nosso sistema de governo com o sistema presidencialista americano. Logo, o Vice-Presidente, os Ministros de Estado, os ministros e demais altos funcionários do Estado são meros funcionários do gabinete presidencial completamente despidos de quaisquer dignidades política. Então o Executivo é uma única pessoa e não faz sentido que o Presidente da República seja chamado chefe do Executivo por não ter mais ninguém para responsabilizar a acção governativa do Estado. Por isso é que hoje faz sentido que o Conselho de Ministros seja um mero órgão auxiliar do Presidente da República. Logo, está muito bem a denominação constitucional de Titular do Executivo (embora o conceito de Executivo tenha um mero cariz estético não invalidando a axiologia inerente ao conceito de Governo).

A confusão do Presidente da República no exercício das suas funções e fora delas, nomeadamente no exercício de funções partidárias, tem gerado toda a sorte de especulações na compreensão dos governados. Não raro, surgem, dessa confusão, sérias violações de limites entre o exercício das funções presidenciais e das funções partidárias que se apresentam na forma de decisões parciais, desvio de património público, favorecimento de oportunidades económicas e sociais aos membros do partido entre outras anomalias. Para evitar acidentes do género, alguns Estado consagraram constitucionalmente a impossibilidade do Presidente da República em funções estar igualmente no exercício de quaisquer funções no partido que o indica ou apoia. Infelizmente não está assim consagrado na actual LC. O que de lege ferenda deixa uma clara obrigação normativa fundamental nesse sentido. Pois, há a necessidade de diferenciação de exercícios pela demarcação do inicio e fim de cada uma das funções em referência.

O mais grave problema que o exercício combinado de cargos estadual e partidário, pelo Presidente da República, implica, é a “intromissão” na Assembleia Nacional pelo controlo da actividade parlamentar do seu partido influenciando as decisões ao arrepio da liberdade de exercício dos seus deputados. Sendo Presidente do Partido, o Presidente da República tem o privilégio de lançar mãos a determinados instrumentos internos da sua organização (disciplina partidária entre outros) para conformar toda a decisão parlamentar do seu partido aos interesses do seu mandato. O que reforça sobremaneira os seus poderes no controlo do Estado. É dessa variante que vem o aspecto dictatorial (no sentido do controlo absoluto do poder) do Presidente da República como órgão consagrado pela LC.

Essa crise na demarcação entre as funções presidenciais e as funções partidárias é também a principal causa da intolerância política em Estados cujos presidentes, sendo chefes de Estado e de Governo, são igualmente chefes das sua formações partidárias como acontece na maior parte do continente africano, americano e asiático. Não estranha que o maior índice de revoltas sociais se situe em tais países porque o Estado é tendencialmente repartido entre cidadãos privilegiados (os militantes do partido do Presidente da República) e os não privilegiados (militantes de outros partidos e apartidários – entre objectores de consciência). Assim, o acesso aos cargos públicos e as oportunidades económicas estão abertos aos militantes do partido do Presidente da República revelando na maioria das vezes uma aparente má distribuição da riqueza nacional e das oportunidades que ela gera. À intolerância política que nasce deste privilégio em relação ao Estado segue-se a intolerância partidária (porque os militantes de partidos na oposição se acham descriminados pelos militantes do partido no poder e estes acham que as reclamações daqueles não têm razão de ser). Gradativamente a intolerância atinge núcleos laborais, escolares, residenciais e familiares numa espiral que envolve impotência e violência levando ao caos, com todas as sugestões anti-sociais geradas pela corrupção e clientelismo daí resultantes, todo um projecto de sociedade e de nação.

Não é suficientemente persuasiva a afirmação segundo a qual o Presidente da República é o mais Alto Magistrado da Nação. O correcto seria do Estado (descontada a parte em que este poder se encontra debilitado pela novo modelo eleitoral). Porque o Presidente da República garante o controlo da legalidade dos actos públicos apenas na base da LC que conforma o Estado e não a Nação. Quer directamente (pela promulgação das leis, ratificação de tratados, solicitação do controlo preventivo da constitucionalidade das leis, etc.), quer indirectamente (pelos actos praticados pelo seu mandatário que é o Procurador Geral da República). Seria magistrado da Nação se tivéssemos uma verdadeira Constituição no sentido que essa ligasse à LC todos os valores culturais que identificam o povo angolano (a nação angolana) ao contrário desta LC que sufraga valores culturais ocidentais e como tal se impõe, em detrimento da realidade social dos angolanos, com ditames meramente legalistas (sobre este assunto já expendemos em diversos textos a consultar em: www.jukulomesso.blogspot.com).

Recuperando as considerações tecidas acima sobre o titular do cargo de Presidente da República e a questão da igualdade de direitos em relação aos dirigidos ou governados, há que verificar que o exercício das funções presidenciais eleva o cidadão indicado acima das sanções legais, na maioria dos casos, tornando-o imune às previsões legais de um modo geral. É uma situação de discussão obrigatória já que as leis servem para todos e por isso abstractas (Ius non in singula personas, sed generaliter constituitur), sendo que por interesse de particular nenhum devem ser modificadas (Ius publicum privatorum pactis mutari non potest). Disto resulta que as normas convencionadas entre os particulares acabam tendo um suporte abstracto na sua observância (Ius privatum, sub tutela iuris publici, latet). É bem verdade que vale a máxima Lex cavet civibus, magistratus legibus (As leis protegem os cidadãos e o magistrado as leis) por oferecer melhor a compreensão sobre a necessidade de o magistrado estar protegido das próprias leis para melhor protegê-las. Torna-se, por isso, razoável que na qualidade de mais Alto Magistrado do Estado e como tal o primeiro garante da observância das leis e seu protector-mor seja imune das suas sanções para que o sentido de positivação e reforma das leis não seja conduzido em atenção aos interesses pessoais. Todavia, o titular do cargo de Presidente da República se afigura como uma verdadeira excepção ao princípio da universalidade de direitos (art.º 22º). Desde logo, porque é constitucionalmente irresponsabilizado pelos actos praticados no exercício das suas funções e como tal não se lhe administram quaisquer sanções na esmagadora maioria das situações e casos, sobretudo de natureza criminal, senão passado o exercício do mandato. Ou seja, fora do mandato e cumprido certo lapso de tempo. É claro que tais privilégios não são aceites contra o próprio Estado (Privilegium contra rem publicam non valet). Porém, o seu exercício contra o interesse público é muitas vezes evidente e sem qualquer controlo eficaz. Aqui prevalece sempre a ideia equivalente ao favorecimento das leis ao juiz (pro iudice iura praesumunt) descontada a parte do exercício ilícito. Nesse sentido, deixa bem clara a concordância com a afirmação justiniana que consagra a inutilidade do acto praticado com a proibição legal: Ea quae lege fieri prohibentur, si fuerint facta, non solum inutilia, sed pro infectis etiam habeantur. O que significa que a lei no caso de imunização sancionatória do Presidente da República consagrou uma verdadeira ficção jurídica. Dixit.

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