(Texto publicado em 2008 no Semanário A Capital)
Albano Pedro
Recentemente fui convidado por uma importante organização da sociedade civil para moderar a palestra cujo tema oportuno e candente, apresentada lauda e magistralmente por um referenciável investigador em matérias jurídico-políticas, inseria no seu conteúdo a problemática das eleições autárquicas em Angola. O sentido de oportunidade se apresentou com o facto de ser então publicamente ventilada a possibilidade de convocação de eleições autárquicas pelo Presidente da República. A sua candência, no facto de ser um tema novo (pelo conteúdo onto-gnoseológico), quase obscuro porque não fácil de inferir e como tal polémico. A polémica se afirma entre duas linhas de combate discursivo entre os cidadãos e organizações interessados, estando por um lado aqueles que defendem a ideia de que as eleições autárquicas surgem como um expediente político para retardar o debate sobre a fixação temporal das eleições legislativas e presidenciais, em princípio e informalmente, previstas para o ano em curso e por outro lado aqueles que não vendo sequer os entraves formais e materiais desta possibilidade receberam com júbilo a tão apetecível enunciação.
É facto assente que a ideia das autarquias tem incrustações constitucionais, tanto é assim que já a “Constituição Revolucionária” (1975) tinha no seu conteúdo esta sustentação. Por isso, faltar ao debate sobre esta realidade é no mínimo minimizar o dever de cidadania que nos assiste a todos com o cumprimento dos ditames supraordenacionais do texto e do espírito da Constituição da República. Mas, a dose acrescida da polémica está no facto de não estar clara a ideia da autarquia. E esta é pois a situação que o debate sobre este tema deixa a descoberto. O que é uma autarquia? E uma vez definida – que espécie de autarquia se pretende para Angola? Apelamos para as autarquias territoriais ou institucionais? E se decidirmos pelas autarquias territoriais – e esta é ideia do texto constitucional – qual será o seu nível político-administrativo? A nível comunal ou municipal (como a doutrina jurídico-política herdada de Portugal nos tem habituado) ou provincial e ou mesmo regional (como alguns políticos argutos e audaciosos procuram propor na tentativa de enriquecer este dabate)? E assim enquadrada a questão, que espécies de competências e atribuições estarão compreendidas nas autoridades autárquicas e nas respectivas autarquias e qual a linha divisória entre as mesmas e os poderes compreendidos nos órgãos centrais do Estado?
Não é pretensão minha responder as questões, senão envia-las ad facsimile como base de dados lógica ao raciocínio de quem se avizinhou com este tema, visto que a própria Lei Constitucional e as leis ordinárias em razão desta matéria quase nada avançam, quando não é para confundir os intérpretes, no sentido de dar resposta a estas questões. O que torna oportuno um debate aceso e fundamentado neste sentido. Mas, não é difícil avançar a ideia de que quem aposta no facto de a convocação ser um expediente dilatório decerto não terá respondido para si a questão de saber se a convocação das eleições autárquicas tem vantagens para o povo que reclama pela brevidade das eleições ou para o poder sustentado pelo partido na situação. Porque, responder a esta questão significará certamente determinarmos os interesses subjacentes a convocação desta espécie de eleições pelo Presidente da República, mesmo quando a intenção primeira seja tão só a normalização das instituições políticas e democráticas.
Os entraves formais e materiais para esta possibilidade estão enunciados na forma de questões já encimadas para assistir àqueles que se acham de ânimo flutuante (jubilante) com a convocação destas eleições. A lei quando pretende estabelecer a ideia de autarquia persiste no triste sistema centralizado de Estado procurando submeter os mais altos dignitários das mesmas (porque não se sabe se mantém a figura de Administrador Municipal ou se há previsão bastante para a ideia de Presidente da Autarquia) no quadro da hierarquia presidida pelo Governador da Província. Enuncia o projecto de tornar as autarquias locais em unidades orçamentais como se isso significasse autonomia, ou independência se quisermos, financeira que apenas a descentralização política pode trazer consigo.
A própria Lei, revestida de vícios de toda a sorte, oblitera em resumo a possibilidade de autonomia política (fonte local de poder, i.e., o mesmo que os munícipes – porque é esta a categoria política dos cidadãos ao nível de uma autarquia, quando municipal – elegerem os seus representantes nas respectivas circunscrições autárquicas) com o natural apêndice da autonomia financeira. Pois, não estão definidas as formas de eleições das autoridades autárquicas e nem as bases normativas para um estatuto financeiro próprio para as referidas autarquias está enunciada – mesmo na forma de Lei das Finanças Autárquicas.
O rótulo institucional visível desta ideia na forma de Gabinete dos Assuntos Autárquicos do Ministério da Administração do Território, mesmo quando procure assentar as bases formais para a materialização das autarquias locais, não é suficientemente persuasivo para garantir seriedade a este importante empreendimento jurídico-político e político-administrativo. Faltará, pois ver esta questão a um nível constitucional – as autarquias são órgãos descentralizados do Estado – e apurar o debate para decisão da mesma ao nível da Assembleia Nacional e não a partir do “laboratório” de um departamento governamental como é o Ministério da Administração do Território cuja visão técnica porque administrativa e parcial está longe de alcançar o âmago do modelo de autarquia local desejado pela maioria dos angolanos.
Mas, persiste a indagação sobre o sentido de oportunidade desta espécie de eleições. Valerão a pena? Claro, se considerarmos que a normalização política do Estado é tarefa eminente e inadiável. Carecerá, sem dúvidas, de meticulosa cautela se atentarmos ao facto de, a engenharia que assiste a construção formal e material de uma autarquia local ao nível e à forma legalmente enunciada, requerer minúcia que assista a uma infinidade de condições, situações e circunstâncias relacionadas com história recente e a profunda experiência política dos angolanos, adicionando a isto o espaço temporal suficiente para a maturação de um projecto com tamanha magnitude. Não vá ela, por falta deste cuidado, tornar-se numa aventura política digna de charlatães e como tal catalogável como sendo um mero expediente de dilação política.
Sem comentários:
Enviar um comentário