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domingo, 16 de outubro de 2016
O filósofo e docente angolano Sebastião António Pascoal prefacia a obra ASSIM NASCE UMA NAÇÃO da autoria de ALBANO PEDRO
Para o prefácio do livro Assim Nasce Uma Nação, o Filósofo Sebastião António Pascoal, escreveu o seguinte:
PREFÁCIO
“Se abandonar a ingenuidade e os preconceitos do senso comum for útil; se não se deixar guiar pela submissão às ideias dominantes e aos poderes estabelecidos for útil; se buscar compreender a significação do mundo, da cultura da história for útil; se conhecer o sentido das criações humanas nas artes, nas ciências e na política for útil; se dar a cada um de nós e a nossa sociedade os meios para serem conscientes de si e de suas acções numa prática que deseja a liberdade e a felicidade para todos for útil, então podemos dizer que a Filosofia é o mais útil de todos os saberes de que os seres humanos são capazes”.
Marilena Chaui
In: “Convite a Filosofia”.
Vivemos hoje num mundo egocêntrico e utilitarista, onde se dá excessiva importância ao “ter” e simplesmente ignora-se e atropela-se o “ser”. Para muitos terráqueos do nosso século, só têm validade aqueles saberes que nos proporcionam bem-estar financeiro e prosperidade material imediata, sendo que, julgam eles, são estas as fórmulas para se alcançar a felicidade duradoura. Nesta lógica, apenas o Direito, a Economia, a Medicina, as Engenharias, etc., são dignas de serem estudadas até a exaustão, pois o estudo destes saberes e a sua reprodução tautológica e acrítica, representa o passaporte para a prosperidade, fim último da existência humana. Entretanto, a medida que os séculos se sucedem e a geopolítica mundial se vai alterando, convencemo-nos cada vez mais de que existem dimensões e elementos ônticos que não podem e nem devem ser tratados pelo Direito, pela Economia, pela Medicina ou pelas Engenharias, tais como: a problemática do ser; a problemática da verdade e da ignorância; a questão lógica; a dimensão antropo-filosófica; a problemática da origem, o papel e fim último da linguagem, a questão da religião, do sagrado e do profano; a problemática da ética, da Estética bem como da relação existente entre a obra de arte com o autor e com o espectador; a dimensão política do homem; a questão da origem e fim último do Estado; a problemática do conhecimento: origem, natureza, valor e sua finalidade, etc. Estas questões pertencem irremediavelmente a esfera da Filosofia, ou como disse Karl Marx: “A Ciência que estuda as leis mais gerais que regem a natureza, a sociedade e o pensamento humano”.
A obra, cuja honra de prefaciar o jurista Albano Pedro concedeu-me, é rica e abundante em temáticas filosóficas, ou não fosse ele próprio um filósofo natural e em potência, que muito cedo apaixonou-se por temas filosóficos o que permitiu-o a aquisição de um forte sentido crítico e uma postura reflexiva verdadeiramente metódica, caracterizada pela clareza das suas ideias e erudição dos seus discursos, não sendo portanto, um exercício fácil de se realizar.
ASSIM NASCE UMA NAÇÃO é um diálogo de carácter político-filosófico que aborda de forma geral questões de vária ordem do nosso jovem e problemático país, que directa ou indirectamente nos afectam. O saque ao erário público que empobrece e humilha a nossa gente, o compadrio e o nepotismo que fazem da maioria da população angolana cidadãos de terceira classe no seu próprio país, a democracia de ‘faz de contas’ que torna os fortes ainda mais fortes e os fracos ainda mais fracos, criando um sistema social tal, que propicia a delinquência, a prostituição, a “gasosa”, a obediência cega aos detentores do poder; a promiscuidade existente entre o poder executivo, o poder judicial e os órgãos militares do Estado, aonde os generais e brigadeiros no activo são simultaneamente coordenadores de CAPs, e tantas outras questões de interesse geral são aqui retratadas com sapiência e sentido académico.
Enquanto cidadão e pessoa humana dotado de vontade e aspirações próprias, Albano Pedro procura no seu diálogo promover e incitar o espírito crítico e reflexivo que existe em cada um de nós, a procura constante e incessante da verdade, a dúvida metódica que nos impede de aceitarmos tudo de forma fiel e canina. Mas, mais do que apenas abordar questões políticas e como forma de assunção da multiplicidade dimensional do homem, o autor deste diálogo aborda elementos filosóficos verdadeiramente interessantes como a problemática da paixão e do amor, Deus e Religião, Estética e Ética, homem e mulher. Estes temas envolvem irremediavelmente o homem e na perspectiva da História da Filosofia sempre se pretendeu entender o homem. Quem é o homem? Quais são os elementos constitutivos da sua natureza? Qual a relação existente entre tais elementos? Qual o fim último do homem? À estas questões foram dadas respostas discrepantes, dentre as quais se destacam três perspectivas: cosmocêntrica, teocêntrica e antropocêntrica.
A perspectiva cosmocêntrica toma o mundo como ponto de observação. É a perspectiva da Filosofia grega em que se destacam Platão, Aristóteles, Epicuristas, os estóicos e os neoplatónicos que ao estudarem o homem situaram-no no interior do mundo, estudando-o à luz da visão que eles tinham do próprio mundo.
A perspectiva teocêntrica toma Deus como ponto de observação. É a visão da Filosofia cristã dos padres católicos: Santo Agostinho, Santo Tomás de Aquino, Plotino, Santo Anselmo e outros.
A perspectiva antropocêntrica toma o homem como ponto de referência, focalizando os vários aspectos que lhe são característicos. É a perspectiva clara da Filosofia moderna: René Descartes, David Hume, Kant, Hegel, etc. Dentre muitos filósofos que definiram o homem destacamos Karl Marx: “O homem é um ser económico”; Freud: “O homem é um ser libidinoso”; Fink: “ O homem é um ser lúdico”; Ricour: “ O homem é um ser falível”; Gadamer: “O homem é um ser histórico”; Luckmann: “O homem é um ser religioso”, Buber: “O homem é um ser dialogante”; Jean Paul Sartre: “O homem é um ser livre”. A perspectiva antropocêntrica é, desde logo, a que mais fascínio suscita em mim, pois acredito plenamente, tal como Górgias, que o homem é efectivamente a medida de todas as coisas. O homem sempre esteve presente no processo de interpretação e transformação do universo graças a sua capacidade de raciocínio e a genialidade das suas criações (homo faber), o que o distingue dos outros seres viventes. A dimensão criativa, associada ao seu carácter estético revela grandemente a capacidade inventiva e auto - transcendental deste animal pensante, o que obriga-me a discorrer brevemente sobre a sua dimensão Estética, sem desprimor às outras dimensões humanas: linguística, jurídica, social, económica, ética, pedagógica, histórica, gnoseológica, etc.
A dimensão estética do homem alude basicamente sobre a natureza da obra de arte, seu fim e a relação existente entre a actividade estética e as demais dimensões características do ser humano. A dimensão estética está entre os primeiros temas levantados entre os gregos, pela clara necessidade de se entender o mundo através da arte e perceber como o ser pode persistir em sua soberania ladeando com a poesia e os mitos. Este problema empolgou Platão, que tratou de resolvê-lo no âmbito da teoria das ideias. Para ele, a arte é uma imitação da natureza e esta é entendida como plena imitação das ideias primeiras, o mundo das ideias, eterna, perfeita, imutável e incorruptível. Desta forma, e segundo Platão, o objecto da imitação (arte) é a beleza e aqui fala-se então da dimensão mimética da arte.
Na obra “O Banquete”, Platão transpõe a concepção mimética da arte e formula uma teoria da arte entendida como criação, como uma produção plena do âmago. Entretanto, Platão não é o único filósofo que concebe a arte a partir da perspectiva mimética. Seu discípulo, Aristóteles de Estagira, vê a arte como sendo, essencialmente, imitação da natureza. A imitação em Aristóteles, não é apenas vista como simples reprodução da natureza, mas como uma emulação da natureza. Objectivamente, Aristóteles define a beleza como sendo “um bem que agrada” e difere-a tanto do bem como do prazer. De facto, visto que o bem é entendido como objecto da vontade e o prazer objecto das paixões, o belo interessa às faculdades cognoscitivas, ou seja, é um prazer despertado nas faculdades cognoscitivas. Para este célebre filósofo grego, os elementos fundamentais que contribuem para tornar algo belo ou artístico, são três: a ordem, a simetria e a determinação.
Outra importante teoria sobre a natureza da obra de arte, foi elaborada por Kant, no livro “Crítica do Juízo”. Nela, o autor tenta mostrar que a obra de arte não é nem imitação, nem uma interpretação metafísica da realidade e que, desta feita, não é produzida nem pela fantasia nem pelo intelecto. Ela é essencialmente fruto do sentimento, que na obra de arte percebe e expressa o universal no particular, o inteligível no sensível, o númeno no fenómeno. Desta forma, surge o prazer estético que satisfaz todo o homem, enquanto produz uma profunda harmonia entre as faculdades opostas dos sentidos e do intelecto.
Particularmente, penso que a obra de arte não é uma simples imitação de ideias arquetípicas ou de factos naturais. Para ser caracterizada como esteticamente bela, uma obra de arte deve ser algo além e diferente do que já existe, diferente do que já foi produzido no mundo da natureza ou da cultura. Para haver obra de arte é necessário originalidade e criatividade já que, grosso modo, é arte tudo aquilo que é produzido pelo homem. A obra de arte é uma criação, uma transformação radical dos elementos que o artista tem em sua disposição, isto é, os elementos a ele fornecidos pela técnica, pela observação, pela inspiração. O que daí resulta é qualificado como belo se apresentar traços de absoluta novidade: música, pintura, escultura, dança, teatro, literatura, etc. O trabalho do artista pode ser comparado ao paradigma científico da abelha: ele não cria, mas assimilando elementos já preexistentes, produz uma realidade absolutamente nova. É assim que achamos belas as obras de Leonardo Da Vinci, Miguel Ângelo, Pablo Picasso, William Shakespeare, Viteix, Sabí, Dom Sebas Cassule, Etona, Beethoven, Mozart, as músicas de Belita Palma e a sua voz divinal que apaixona e toca o íntimo de qualquer mortal, etc.
Outra questão estética digna de realce, prende-se com a relação existente entre a arte e a moral. As obras de arte que exprimem nudez masculina e feminina são ou não eticamente recomendáveis? É fundamental dizer que existe plena autonomia da arte sobre a moral, segundo Benedetto Croce. Para ele, a arte é independente. Não está sujeita à moral. A arte como arte é amoral, isto é, está além do bem e do mal, objectos da moral. A arte para ser verdadeira arte deve ser expressão dos sentimentos que há no âmago do artista. Entretanto, o homem e o artista são duas realidades diferentes. Para ser bom artista basta expressar bem os seus próprios sentimentos e, enquanto homem, o artista deve ser também moral, sábio e prático. Ora, embora não esteja sujeito à moral como artista, o artista está sujeito a moral como homem. A arte não é e nunca será a moral, pois aquela está além desta, mas sob império dela está o artista enquanto homem e pessoa.
Portanto, a dimensão passional, estética, ética e religiosa que Albano Pedro levanta neste diálogo, eleva efectivamente a pertinência e a qualidade desta obra.
Longe de ser uma receita acabada para a compreensão da nossa Angola e da Filosofia como Ciência, é minha forte convicção de que este diálogo ajudará a despertar nos arguciosos e nos perspicazes a necessidade de se saber de onde viemos como nação, aonde estamos e para onde vamos. Viver na ignorância sobre o que aconteceu no mundo e no nosso país antes de nascermos, é viver para sempre na infância. Desde logo, porque rejeitamos viver eternamente na infância e porque desejamos exercer conscientemente o nosso direito de cidadania que passa basicamente pela nossa participação activa na discussão das questões da “Polis”, como chamavam os gregos, e porque o que é de todos deve ser discutido por todos, achamos por bem levar a cabo este exercício: debater, analisar e procurar compreender o país e o mundo a nossa volta nas suas múltiplas vertentes. Como disse Espinosa: “A Filosofia é um caminho árduo e difícil, mas que pode ser trilhado por todos que desejarem alcançar a liberdade e a felicidade”. Albano Pedro e o seu diálogo estão muito próximo disto.
Luanda, Setembro de 2012.
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