SOBRE O PRESIDENTE DA REPÚBLICA E O NOVO SISTEMA DE GOVERNO
Albano Pedro
O Presidente da República é, nos sistemas de governo presidencialista, um órgão centralizador da actividade do executivo conduzindo de forma singular os destinos da nação e sem a colegialidade ou solidariedade dos membros do executivo normalmente admitida em sistemas que consagram a figura do Primeiro-Ministro. É demasiado forte e perigoso para a concretização harmonizada da vontade de um povo normalmente divergente na prioridade da execução dos seus interesses. Por isso é que nas leis constitucionais brasileira e americana são reconhecidos ao povo o poder de destituir o Presidente da República mediante um mecanismo chamado impeachment exercido sob determinadas condições por subscrição popular numericamente limitado dirigido em petição ao Tribunal Supremo como o verdadeiro contrapeso a governação absolutista e tendente ao desvio do Presidente da República. É o que aconteceu com o antigo presidente brasileiro Collor de Mello que viu este mecanismo a ser exercido contra si, pela primeira vez em todo o mundo, resultando na sua expulsão do Governo na sequência do julgamento judicial causado por uma petição subscrita pelo povo desiludido com o clientelismo e corrupção que montara com o seu regime. Com este mecanismo os sistemas presidencialistas procuram prevenir-se do regresso, embora eventualmente mitigado, dos sistemas absolutistas tradicionais que paralisaram a Europa por longos séculos até a chegada da revolução burguesa e do movimento constitucional universal.
Na realidade angolana o presidencialismo consagrado vem regularizar de certa forma o exercício concentrado de poderes habitual ao Presidente da Republica. Vem mesmo tornar clara esta concentração de poderes, embora seja de reconhecer que do ponto de vista formal esta concentração é reduzida se tivermos em atenção a visível concentração verificada materialmente sobre todos os poderes soberanos. Já que pela manutenção do cargo de presidente do MPLA controla a Assembleia Nacional através da sua bancada maioritária e é lhe legalmente reconhecido poder de nomear os juízes do Tribunal Supremo violando a independência deste órgão soberano.
A Lei Constitucional revista em 1991 não previa qualquer forma de responsabilização criminal do Presidente da República. Era ainda vigência do Estado impune por ser previdente dos sistemas comunistas. Porém, era já o chefe do Estado e do Governo cabendo a nomeação do Primeiro-Ministro e de todos os Ministros e Vice-Ministros. Era igualmente competente para nomear os Juízes do Tribunal Popular Supremo (art.º 47º). Esta última disposição era consonante com a Lei 18/88 – Lei do Sistema Unificado de Justiça que concretizava o seu conteúdo em matéria de nomeação de juízes pelo Presidente da República. Passo revolucionário na época é o poder que lhe era reconhecido de submeter a refendo questões de grande relevância e interesse nacional, entre os quais podemos incluir os referendos constitucionais já que não eram proibidos. Este alargamento implícito para referendos constitucionais resultava do facto do MPLA identificar-se com Estado não podendo em consequência alterar a Lei Constitucional contra os seus próprios interesses e portanto não ter necessidade de referendar a própria Lei Constitucional. É de reconhecer que com a Lei Constitucional de 1991 vigorava o sistema presidencialista entretanto com feição ditatorial sem enquadramentos verdadeiramente democráticos.
Com aprovação da nova Lei Constitucional ao abrigo da Lei de Revisão Constitucional n.º 23/92, os poderes do Presidente da República confundiram-se num sistema presidencialista com a expressão de um semi-presidencialismo na aparência das normas. Na medida em que reconhecia ao Presidente da República a chefia do Estado e não do Governo (art.º 56º) entretanto com competências para presidir ao Conselho de Ministros como órgão superior da Administração Pública representativo do Governo (art.º 108º, n.º 1), apesar de ser reconhecido ao Primeiro-Ministro a condução do Governo (art.º 114º). Tal é a confusão de sistemas e a percepção enevoada da direcção do Governo que obrigou mais tarde ao esclarecimento pelo Tribunal Supremo nas vestes de Tribunal Constitucional através de um acórdão que veio a depositar ao Presidente da República os poderes de direcção do Governo. A Lei Constitucional admite ainda nomeação dos juízes pelo Presidente da República conformando-se ao regime da Lei 18/88 – sobre o Sistema Unificado de Justiça ainda vigente. Os referendos constitucionais foram proibidos como se o legislador constituinte tivesse despertado do perigo de os manter implicitamente, não permitindo se quer ao titular do executivo que os pudesse convocar mesmo em matéria diversa a fim de fazer valer uma coabitação necessária com a Assembleia Nacional ao longo de todo o mandato (art.º73º). Era então uma disposição constitucional com forte inspiração política saída do forno das negociações entre a UNITA e o MPLA. Previa este último que se a popularidade de Jonas Savimbi o levasse a vencer as eleições presidenciais embora garantida a vitória legislativa ao partido rubro, a convivência forçada levaria a um exercício presidencial mais ou menos controlado e sem afectar os interesses políticos do MPLA, nascendo daí a confusão já apontada dos sistemas de governos. Em 1992 o MPLA venceu as eleições legislativas e infelizmente para a Lei Constitucional as eleições presidenciais não aconteceram, obrigando a manutenção do mandato presidencial e a forçar o seu titular a uma verdadeira manobra para adaptar-se a nova realidade jurídico-constitucional.
Ainda na sequência das negociações bilaterais, a insegurança do MPLA na vitória do seu candidato presidencial levou a admissão de um Presidente da República que passasse a ser responsabilizado criminalmente por via de um leque de condutas e condições de imputabilidade nos termos dos quais nascia já a ideia do julgamento do Presidente da República mediante acusação de uma Assembleia Nacional por si controlada (art.º65º). Estava-se então perante um mecanismo próximo ao impeachment dos sistemas presidencialistas já que era exercido pela Assembleia Nacional e não directamente pelo povo embora com as mesmas consequências: a promoção do processo de destituição do Presidente da República quando culpado dos crimes de que fosse acusado.
A Lei Constitucional de 2010 é finalmente aprovada num clima de plena serenidade de um MPLA sem medos de adversários no poder para gerir e vem definitivamente esclarecer o sistema de Governo como sendo presidencialista reconhecendo ao Presidente da República a chefia do Estado e depositando nele toda a confiança e responsabilidade do executivo (art.º 108º). O mandato de 5 anos já admitido na Lei Constitucional anterior mantém. Mas, o Presidente da República deixa de ser um órgão soberano elegível passando a beneficiar da vitória do seu partido no qual é cabeça de lista (art.º 109º). O que resulta num mecanismo de eleição sub-repticiamente combinada ao qual o jurista Carlos Feijó denominou por “eleições conjuntas obrigatórias” com a nossa discordância lógica na medida em que há apenas uma única eleição, a legislativa, reforçada por uma indicação interna do candidato pelo partido para partir na pole position em relação aos restantes candidatos a regência pública que a partir do terceiro lugar acabam acantonados no parlamento. O que é desolador é manutenção do procedimento que leva a destituição do Presidente da República nos mesmos termos da Lei Constitucional anterior com insignificantes alterações nas condições processuais (art.º129º). O legislador constituinte escapa assim a condução garantística do sistema presidencialista angolano aos tradicionais sistemas presidencialistas como o vigente nos EUA. O Presidente da República todo-poderoso não encara um verdadeiro mecanismo que desacelere o seu ímpeto eventualmente marginal a Lei porque conta com uma maioria parlamentar que jamais o pode colocar no olho da rua sem prejuízo para os respectivos deputados, embora esteja prevista a auto-demissão do Presidente da República como condição para a dissolução da Assembleia Nacional (art.º 128º) mesmo quando não enumera as perturbações na relação de poderes soberanos que impulsionem a utilização deste mecanismo constitucional.
Politicamente está-se ainda num sistema em que o partido dominante não pretende concluir o processo de reconhecimento e transferência efectiva da soberania ao povo como vem sendo consagrada desde a Lei Constitucional de 1991. Porque um sistema presidencialista democraticamente aceite admitiria sem reservas que o povo em determinadas condições se substituísse a Assembleia Nacional na iniciativa processual motivada pela responsabilização criminal do Presidente da República. Desde que a finalidade fosse a destituição provada que fosse a culpa. Seria certamente a garantia-chefe de todo o sistema político num momento em que os poderes do Presidente da República formal e materialmente não conhecem limites, pela travessia horizontal que faz sobre todos os poderes soberanos, arrastando consigo toda a sorte de actos, entre ilícitos e lícitos, protagonizados pelos seus mandatários.
Sem comentários:
Enviar um comentário