A GÉNESE DAS LIBERDADES FUNDAMENTAIS: O DIREITO DE REUNIÃO E DE MANIFESTAÇÃO
Albano Pedro
Quando se fala em democracia participativa ou pluripartidária, a ideia básica que se nos apresenta é a dos cidadãos serem livres de exprimir publicamente os seus sentimentos e vontades; de demonstrar aos governantes as suas indignações ou apreços e simpatias. Em resumo: terem a capacidade de demonstrar a soberania que lhes assiste através de variadíssimos actos públicos. Fala-se então no exercício de liberdades fundamentais. Os textos constitucionais que consagram democracias participativas em todo o mundo costumam apresentar três tipos de direitos fundamentais. Nomeadamente, os direitos propriamente ditos, as liberdades e as garantias fundamentais. Os direitos são legalmente atribuídos aos cidadãos em função das alterações e adaptações dos sistemas jurídicos, um pouco dependentes das simpatias e aberturas políticas provocadas por actos e promessas eleitorais. Porém, as liberdades são reconhecidas pelos sistemas jurídicos porque elas pertencem naturalmente aos homens. Elas provêem da ideia do Direito Natural anterior a qualquer forma de direito positivo ou direito posto pelos homens a vigorar nas sociedades. Por isso, apenas as liberdades reconhecidas por Lei podem ser exercidas, as outras que não são reconhecidas podem ser socialmente confundidas com actos de loucuras ou agressão física ou moral por serem estranhas ao comportamento geral e padronizado dos cidadãos. As garantias, por seu turno, soam como uma espécie de direitos-vigilantes, ou seja, são consagradas para proteger e reforçar o exercício das liberdades uma vez reconhecidas pela Lei.
Porque é que a Lei deve reconhecer as liberdades? As liberdades consagradas pela lei, nascem da liberdade natural dos homens; da ideia da liberdade individual, muito mais próxima da moral do que da Ética ou Lei. O homem nasce com a percepção natural de que é livre de se exprimir como quer e como pode junto da sociedade em que nasce e desenvolve até ser reprimido e condicionado pelas limitações impostas pela Lei. De resto, o desenvolvimento do homem desde a idade infantil à idade adulta é disto prova bastante. É por isso que a liberdade se caracteriza como a tolerância da lei perante a expansão descontrolada e eufórica dos actos praticados pelo indivíduo, permitindo que este tenha os seus sentimentos, sonhos e ilusões admitidos pela sociedade através da Lei sem qualquer contradição ou imposição. Vem daí que o limite do exercício das liberdades seja claramente determinado por lei e nos limites por ela estabelecidos sob pena de limitar ou exagerar o desenvolvimento da pessoa humana.
O exercício das liberdades fundamentais representa o ponto máximo do desenvolvimento de qualquer democracia; é o mais fiel dos termómetros para medir a evolução das democracias modernas. Mais liberdades, mais democracia e mais direitos protegidos pelo Estado a favor dos cidadãos. A consagração constitucional das liberdades fundamentais em todo o mundo é resultado das reformas e transformações sociais operadas e registadas sobretudo no princípio e meados do século passado em que a I e II guerras mundiais seguidas das guerras independentistas que se verificaram um pouco por todo o mundo permitiram que povos escravizados e sem autonomia pudessem manifestar a sua soberania. Essas liberdades foram sobretudo reconhecidas com a Declaração Universal dos Direitos do Homem (Nações Unidas) que procurou infundir a sua observância uniforme em todos as constituições do mundo.
Saídos de um contexto centralista de Estado, os angolanos conheceram formalmente as liberdades fundamentais com a Lei Constitucional de 1991, que adivinhou a eminente reforma constitucional do ano seguinte, prevendo a garantia pelo Estado e Leis da liberdade de expressão, de reunião, de manifestação, de associação e de todas as demais formas de expressão (art.º 24º), direito a greve (art.º 26º), liberdade de imprensa (art.º 27º), liberdade de consciência e de crença religiosa (art.º 32º), entre outras liberdades claramente formalizadas e prevendo igualmente que a limitação do exercício das mesmas devesse ocorrer apenas nos termos da Lei (art.º 39º). A mais importante de todas as liberdades, no contexto das lutas democráticas, em que se pretende impor os direitos dos cidadãos em detrimentos dos interesses das classes hegemónicas, normalmente no poder, é, sem dúvidas, o direito a manifestação. A manifestação, não só representa a realização lógica da democracia, como demonstra o verdadeiro sentido de soberania dos povos como é consagrado na nossa Lei Constitucional. A manifestação representa um sinal para os governantes da incapacidade dos governados em suportar as irregularidades da administração pública; representa a saturação dos cidadãos em suportar o regime que se lhes impõe; representa, enfim, o momento da necessidade de ruptura entre o compromisso assumido no momento eleitoral e o resultado do exercício do poder delegado pelo acto eleitoral. É por isso, que é das liberdades mais controladas pelos detentores do poder político, procurando permitir o seu exercício o menos possível.
A Lei n.º 16/91 - Sobre o Direito de Reunião e de Manifestação (publicado no Diário da República n.º 20, 1ª Série de 11 de Maio) garante a todos os cidadãos o direito de reunião e de manifestação. Define, esta Lei, que a reunião é o agrupamento temporário de pessoas, organizado e não institucionalizado destinado à troca de ideias sobre assuntos de natureza diversa, nomeadamente, políticos, sociais ou de interesse público… (art.º 2º n.º1). Querendo esclarecer que as palestras, conferências, conversas entre amigos ou colegas, debates, encontros, etc., devem ser realizados em conformidade com a presente Lei. Da mesma forma define a manifestação como o desfile ou comício destinado à expressão pública duma vontade sobre assuntos políticos, sociais, de interesse público ou outros (art.º 2º n.º2). No âmbito destas estão toda a sorte de manifestações colectivas que envolvem a expressão ou partilha pública de assuntos de interesse políticos, sociais ou públicos, sendo de incluir as passeatas desportivas ou culturais, corridas de atletismo ou bicicleta, para além de diversos eventos desportivos, os cortejos fúnebres ou simples passeios que envolvam aglomerados significativos de indivíduos cujo objectivo é a mera manifestação de sentimentos ou a promoção da saúde física dos participantes, embora estas devessem ser integradas genericamente no exercício de liberdade de expressão.
Quer a reunião quer a manifestação para serem organizadas e realizadas não carecem de qualquer autorização (art.º3º). Contudo, não poderão prolongar-se até meia-noite, salvo se realizadas em recintos fechados, em salas de espectáculos, em edifícios sem moradores ou, em caso de terem moradores, se forem estes os promotores ou tiverem dado o seu assentimento por escrito (art.º5º n.º1). Quanto aos cortejos e desfiles. Estes não podem ter lugar antes das 19 horas nos dias úteis e antes das 13 horas aos sábados, salvo em situação devidamente fundamentadas e autorizadas. A reunião ou a manifestação carece ainda de ser comunicada por escrito ao Governo Provincial ou administrador municipal conforme o evento ocorra na capital da província ou em sede municipal com antecedência mínima de 72 horas (art.º 6º), devendo constar na comunicação a hora, local e objecto da reunião e, quando se tratar de cortejos ou desfiles, a indicação do trajecto a seguir (art.º 6º,n.º2º). A referida comunicação deve ser assinada por 5 (cinco) dos promotores devidamente identificados pelo nome, profissão e morada ou, tratando-se de pessoas colectivas, pelos respectivos órgãos de direcção (art.º 6ºn.º3).
O que se nos oferece comentar sobre a liberdade de reunião e de manifestação em Angola? Desde logo, a necessidade legal de comunicar ou informar sobre a realização de reuniões faz adivinhar que o legislador ordinário, ainda imbuído do espírito centralista de Estado sobrevivente do período pro-comunista, pretendeu o controlo milimétrico de toda a espécie de aglomerados humanos percebendo e controlando as suas motivações; decantando entre eles aqueles que representem ameaça ou perigo para a manutenção do poder político. Em Estados com fortes compromissos com a democracia não faz sentido condicionar a realização de reuniões. A Lei podia denominar-se apenas Lei das Manifestações, tratando somente desta liberdade e, sobretudo sem condicionar o seu exercício pela informação antecipada as autoridades. A informação teria importância de ordem pública procurando tão só que as autoridades criem aparatos humanos e materiais necessários a uma manifestação sem perigo de danos contra vidas humanos e bens públicos. Não mais do que isso. Entretanto, a Lei por um lado confirma que a liberdade de reunião e de manifestação não carecem de quaisquer autorização e por outro lado, introduz um mecanismo subtil que emperra o seu exercício quando estabelece que estas mesmas liberdades podem ser impedidas de serem realizadas pelas autoridades quando por exemplo não se cumpram com os prazos de comunicação ou as autoridades entendam necessário impedir a sua realização (art.º 7º, 8º e 15º.) ou mesmo alterar o trajecto dos cortejos (art.º 11º) livremente estabelecidos pelos promotores independentemente de estar em causa a ordem pública. O que representa uma gravosa limitação dos direitos democráticos dos cidadãos a favor de um sistema controlador da expressão dos cidadãos igual aquele que imperou no período centralista de Estado antes de 1992.
Pelo pouco que se disse, tudo fica claro quanto a inconstitucionalidade, pelo menos parcial, desta Lei. Devia ser solicitada, há muito, a sua nulidade por inconstitucionalidade junto do Tribunal Constitucional pelas autoridades que a Lei Constitucional reconhece competência para o efeito (art.º 230º Lei Constitucional) e ser, então, reformada para atender as exigências da democracia participativa longe da sombra do centralismo estatal inspirado pelo comunismo que ainda persegue os angolanos. A nova Lei Constitucional mantém o espírito da Lei constitucional de 1991 sobre a liberdade de reunião e manifestação (art.º 47º) com a simples alteração na letra para privilegiar a desnecessidade de autorização quanto ao seu exercício, embora a Lei ordinária correspondente, ainda inalterada, passeia impune sobre os mares da inconstitucionalidade com toda a pompa que expõem as incongruências e irregularidades nelas incorporadas para proteger interesses que não se identificam com o exercício de cidadania. De qualquer modo, a consagração constitucional das liberdades fundamentais tipificadas e não tipificadas representa um ganho do Estado de Direito e o alicerce da democracia angolana que se vai construindo embora muito lentamente.
No mercado das relações humanas e sociais, a expressão da palavra e a exposição do pensamento são as mercadorias mais preciosas!
quarta-feira, 25 de agosto de 2010
terça-feira, 24 de agosto de 2010
NOVA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA VI
DO GOVERNO COLEGIAL AO GOVERNO SINGULAR: O PAPEL ESTRATÉGICO DA CASA CIVIL DA PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA
Albano Pedro
A consagração do conceito de Poder Executivo (art.º 108º) na nova Lei Constitucional em substituição do conceito de Governo da anterior Lei Constitucional, tem levantado inquietações públicas desnecessárias para o debate doutrinário na medida em que o novo legislador constitucional preferiu não usar o termo Governo por razões meramente estéticas, já que passamos no fundo do conceito de Governo Colegial (então assumido pelo Conselho de Ministros como órgão superior da Administração Pública) para o conceito de Governo Singular ou Unipessoal, se quisermos, em que o órgão superior da Administração Pública já não é o Conselho de Ministros mas o próprio Presidente da República. Não se colocam quaisquer questões de inexistência de Governo como se veicula publicamente para confundir as percepções menos atentas. O Governo mantém, mas de forma singular. E não é novidade. A nova Lei Constitucional, neste capítulo vem apenas a tornar claro o poder centralizado na pessoa do Presidente da República que materialmente era sensível ao abrigo da anterior Lei Constitucional.
Questão de interesse público e doutrinário está em descobrirmos se faz sentido o Presidente da República ser Chefe do Executivo (art.º 108º) já que em si mesmo incorpora o poder executivo sendo os restantes órgãos meros auxiliares seus. Perfilhamos dos argumentos do eminente cientista político e jurista Nelson Pestana “Bonavena” segundo o qual o executivo é o próprio Presidente da República e como tal não existe qualquer chefia sobre executivo algum no sentido em que pretende o texto constitucional. O executivo é aqui um mero “Staff” ou “Bureau” sem qualquer importância política. Já não existe, a luz desta realidade, o conceito de membro do Governo que não seja atribuível ao próprio Presidente da República. Os Ministros de Estado, Ministros e Secretários de Estado integram a Administração Pública como altos funcionários do Estado sem a cobertura de órgãos políticos como era habitual no âmbito da Lei Constitucional anterior; Não são membros do Executivo ou Governo (sublinhe-se) e tão pouco são partes dele; são meros órgãos auxiliares de uma Administração Pública titulada única e simplesmente pela pessoa do Presidente da República. Argumento, aliás, bem assimilado pela própria Lei Constitucional que reconhece o Conselho de Ministros como um órgão auxiliar dentre vários órgãos que integram o poder executivo (art.º 134º e seguintes). Assim, faz sentido que não se fale em poder executivo mas em Governo Singular, já que este conceito é mais esclarecedor quanto a unipessoalidade do poder executivo assumido pela nova Lei Constitucional.
O Conselho de Ministros como órgão auxiliar mantém a competência de formular e conduzir a política geral do país e da Administração Pública (art.º 134º) porém parece concorrer, neste papel, com um outro órgão: A Casa Civil do Presidente da República. Com efeito, ao abrigo do Decreto Legislativo Presidencial n.º1/10 (doravante DLP) que aprova a organização e o funcionamento dos órgãos auxiliares do Presidente da República, a Casa Civil do Presidente da República ocupa o lugar cimeiro no contextos dos órgãos essenciais auxiliares que em geral “têm por finalidade prestar assistência, assessoria e apoio técnico directo e imediato ao Presidente da República…” (art.º7º - DLP). A Casa Civil do Presidente da República dedica-se ao apoio técnico e ao controlo da legalidade dos actos do Presidente da República na condução da actuação do executivo (art.º9º - DPL) que é feito, na prática, antes do concurso do auxílio do Conselho de Ministros visto que é um órgão essencial do Presidente da República. Dá para esquadrinhar aqui, um momento interessante na formulação da política geral do Estado em que a Casa Civil do Presidente da República concebe um quadro operacional através do qual o Presidente da República inicia a sua agenda executiva. Fazendo transparecer que o Conselho de Ministros apenas entra em cena mediante agenda “proposta” pela Casa Civil do Presidente da República. Se assim é, o Conselho de Ministros passa, na prática, a um órgão subalterno da Casa Civil do Presidente da República; ou auxiliar para sermos dramáticos, onde são percebidos os elementos e impulsos externos da governação do Estado. Logo, o Conselho de Ministros é, neste contexto, um mero órgão de auscultação do Presidente da República através do qual a Casa Civil do Presidente da República melhora ou adequa a estratégia de governação por si concebida com as múltiplas preocupações sectoriais aí afuniladas pelos seus integrantes, entre ministros, secretários de Estado e governadores provinciais.
A Casa Civil do Presidente da República vai mais longe. O seu apoio técnico directo e imediato estende-se ao relacionamento do Presidente da República com a Assembleia Nacional. Competência, esta que tem justificado a presença do Ministro de Estado seu titular em sessões parlamentares em exercícios de justificação da acção do executivo. Tem natureza ministerial e é dirigida por um Ministro de Estado e Chefe da Casa Civil do Presidente da República. Novidade orgânica incitadora de curiosidade é a acumulação necessária de funções, ou seja, o Chefe da Casa Civil é necessariamente Ministro de Estado. Não se compreende porque é que não se denominou Ministro de Estado Junto da Casa Civil do Presidente da República já que se apresenta completamente inútil a junção de dois cargos para uma única função. A sua estrutura compreende 7 (sete) secretarias, cada uma dirigida por um secretário com a categoria de Secretário de Estado, o que faz transpirar a ideia de um governo dentro de um outro, pelas funções multifacetadas correspondentes as áreas executivas do Estado, como sejam assuntos políticos e constitucionais; judiciais e jurídicos, diplomáticos e de cooperação Internacional; económicos; sociais; locais; comunicação institucional e imprensa (art.º 10º - DLP). Embora coabite com a Casa Militar do Presidente da República e a Secretaria Geral da Presidência da República entre os órgãos essenciais (art.º8º - DLP), a Casa Civil do Presidente da República reduz, na prática, a capacidade interventiva daqueles órgãos, já que compreende igualmente o Gabinete do Presidente da República; o Cerimonial do Presidente da República e os consultores do Presidente da República (art.º 10º). Numa palavra: incorpora o próprio Presidente da República enquanto órgão. A sua hegemonia no quadro dos órgãos essenciais auxiliares vai mesmo ao ponto de ter junto de si o Gabinete da Primeira Dama da República, o que exalta a curiosidade sobre a necessidade estratégica de um órgão desta natureza no contexto de um Governo Singular.
De todo o modo, tamanha complexidade orgânica e funcional atribuída a Casa Civil do Presidente da República deixa claramente a ideia de um órgão que se pretende verdadeiramente auxiliar do Presidente da República no sentido em que seja capaz de controlar a acção governativa do Estado em toda a sua plenitude e nalguns casos, senão na maioria deles, substituir-se ao Presidente da República no quadro do exercício material do poder executivo. E justifica-se. Ora, num contexto em que, por força da nova Lei Constitucional, o Presidente da República se propõe a assumir integralmente a responsabilidade dos actos de governação do Estado, já sem Primeiros-Ministros como bodes expiatórios, ao mesmo tempo que, parece, não se propor a apresentar as contas pessoalmente, nomeadamente junto da Assembleia Nacional através de eventuais interpelações dos deputados, o surgimento de uma Casa Civil do Presidente da República poderosa e encabeçada por uma das maiores autoridades técnico-legais de Angola e homem de faro político-administrativo afinado como é o Dr. Carlos Feijó tem completa oportunidade.
Albano Pedro
A consagração do conceito de Poder Executivo (art.º 108º) na nova Lei Constitucional em substituição do conceito de Governo da anterior Lei Constitucional, tem levantado inquietações públicas desnecessárias para o debate doutrinário na medida em que o novo legislador constitucional preferiu não usar o termo Governo por razões meramente estéticas, já que passamos no fundo do conceito de Governo Colegial (então assumido pelo Conselho de Ministros como órgão superior da Administração Pública) para o conceito de Governo Singular ou Unipessoal, se quisermos, em que o órgão superior da Administração Pública já não é o Conselho de Ministros mas o próprio Presidente da República. Não se colocam quaisquer questões de inexistência de Governo como se veicula publicamente para confundir as percepções menos atentas. O Governo mantém, mas de forma singular. E não é novidade. A nova Lei Constitucional, neste capítulo vem apenas a tornar claro o poder centralizado na pessoa do Presidente da República que materialmente era sensível ao abrigo da anterior Lei Constitucional.
Questão de interesse público e doutrinário está em descobrirmos se faz sentido o Presidente da República ser Chefe do Executivo (art.º 108º) já que em si mesmo incorpora o poder executivo sendo os restantes órgãos meros auxiliares seus. Perfilhamos dos argumentos do eminente cientista político e jurista Nelson Pestana “Bonavena” segundo o qual o executivo é o próprio Presidente da República e como tal não existe qualquer chefia sobre executivo algum no sentido em que pretende o texto constitucional. O executivo é aqui um mero “Staff” ou “Bureau” sem qualquer importância política. Já não existe, a luz desta realidade, o conceito de membro do Governo que não seja atribuível ao próprio Presidente da República. Os Ministros de Estado, Ministros e Secretários de Estado integram a Administração Pública como altos funcionários do Estado sem a cobertura de órgãos políticos como era habitual no âmbito da Lei Constitucional anterior; Não são membros do Executivo ou Governo (sublinhe-se) e tão pouco são partes dele; são meros órgãos auxiliares de uma Administração Pública titulada única e simplesmente pela pessoa do Presidente da República. Argumento, aliás, bem assimilado pela própria Lei Constitucional que reconhece o Conselho de Ministros como um órgão auxiliar dentre vários órgãos que integram o poder executivo (art.º 134º e seguintes). Assim, faz sentido que não se fale em poder executivo mas em Governo Singular, já que este conceito é mais esclarecedor quanto a unipessoalidade do poder executivo assumido pela nova Lei Constitucional.
O Conselho de Ministros como órgão auxiliar mantém a competência de formular e conduzir a política geral do país e da Administração Pública (art.º 134º) porém parece concorrer, neste papel, com um outro órgão: A Casa Civil do Presidente da República. Com efeito, ao abrigo do Decreto Legislativo Presidencial n.º1/10 (doravante DLP) que aprova a organização e o funcionamento dos órgãos auxiliares do Presidente da República, a Casa Civil do Presidente da República ocupa o lugar cimeiro no contextos dos órgãos essenciais auxiliares que em geral “têm por finalidade prestar assistência, assessoria e apoio técnico directo e imediato ao Presidente da República…” (art.º7º - DLP). A Casa Civil do Presidente da República dedica-se ao apoio técnico e ao controlo da legalidade dos actos do Presidente da República na condução da actuação do executivo (art.º9º - DPL) que é feito, na prática, antes do concurso do auxílio do Conselho de Ministros visto que é um órgão essencial do Presidente da República. Dá para esquadrinhar aqui, um momento interessante na formulação da política geral do Estado em que a Casa Civil do Presidente da República concebe um quadro operacional através do qual o Presidente da República inicia a sua agenda executiva. Fazendo transparecer que o Conselho de Ministros apenas entra em cena mediante agenda “proposta” pela Casa Civil do Presidente da República. Se assim é, o Conselho de Ministros passa, na prática, a um órgão subalterno da Casa Civil do Presidente da República; ou auxiliar para sermos dramáticos, onde são percebidos os elementos e impulsos externos da governação do Estado. Logo, o Conselho de Ministros é, neste contexto, um mero órgão de auscultação do Presidente da República através do qual a Casa Civil do Presidente da República melhora ou adequa a estratégia de governação por si concebida com as múltiplas preocupações sectoriais aí afuniladas pelos seus integrantes, entre ministros, secretários de Estado e governadores provinciais.
A Casa Civil do Presidente da República vai mais longe. O seu apoio técnico directo e imediato estende-se ao relacionamento do Presidente da República com a Assembleia Nacional. Competência, esta que tem justificado a presença do Ministro de Estado seu titular em sessões parlamentares em exercícios de justificação da acção do executivo. Tem natureza ministerial e é dirigida por um Ministro de Estado e Chefe da Casa Civil do Presidente da República. Novidade orgânica incitadora de curiosidade é a acumulação necessária de funções, ou seja, o Chefe da Casa Civil é necessariamente Ministro de Estado. Não se compreende porque é que não se denominou Ministro de Estado Junto da Casa Civil do Presidente da República já que se apresenta completamente inútil a junção de dois cargos para uma única função. A sua estrutura compreende 7 (sete) secretarias, cada uma dirigida por um secretário com a categoria de Secretário de Estado, o que faz transpirar a ideia de um governo dentro de um outro, pelas funções multifacetadas correspondentes as áreas executivas do Estado, como sejam assuntos políticos e constitucionais; judiciais e jurídicos, diplomáticos e de cooperação Internacional; económicos; sociais; locais; comunicação institucional e imprensa (art.º 10º - DLP). Embora coabite com a Casa Militar do Presidente da República e a Secretaria Geral da Presidência da República entre os órgãos essenciais (art.º8º - DLP), a Casa Civil do Presidente da República reduz, na prática, a capacidade interventiva daqueles órgãos, já que compreende igualmente o Gabinete do Presidente da República; o Cerimonial do Presidente da República e os consultores do Presidente da República (art.º 10º). Numa palavra: incorpora o próprio Presidente da República enquanto órgão. A sua hegemonia no quadro dos órgãos essenciais auxiliares vai mesmo ao ponto de ter junto de si o Gabinete da Primeira Dama da República, o que exalta a curiosidade sobre a necessidade estratégica de um órgão desta natureza no contexto de um Governo Singular.
De todo o modo, tamanha complexidade orgânica e funcional atribuída a Casa Civil do Presidente da República deixa claramente a ideia de um órgão que se pretende verdadeiramente auxiliar do Presidente da República no sentido em que seja capaz de controlar a acção governativa do Estado em toda a sua plenitude e nalguns casos, senão na maioria deles, substituir-se ao Presidente da República no quadro do exercício material do poder executivo. E justifica-se. Ora, num contexto em que, por força da nova Lei Constitucional, o Presidente da República se propõe a assumir integralmente a responsabilidade dos actos de governação do Estado, já sem Primeiros-Ministros como bodes expiatórios, ao mesmo tempo que, parece, não se propor a apresentar as contas pessoalmente, nomeadamente junto da Assembleia Nacional através de eventuais interpelações dos deputados, o surgimento de uma Casa Civil do Presidente da República poderosa e encabeçada por uma das maiores autoridades técnico-legais de Angola e homem de faro político-administrativo afinado como é o Dr. Carlos Feijó tem completa oportunidade.
segunda-feira, 16 de agosto de 2010
A DESPROMOÇÃO DISCIPLINAR DO TRABALHADOR
Albano Pedro
Duas razões vulgares podem levar a despromoção do trabalhador. Uma é aquela em que o trabalhador, competente e capaz para o cargo ou função em que é indicado, não satisfaz as exigências do trabalho por manifesta incúria derivada por exemplo de faltas frequentes ou execução negligente de tarefas que levam a baixa de produtividade da empresa. Outra é aquela em que o trabalhador, motivado e esforçado, não consegue responder as exigências das tarefas que lhe são acometidas por clara incapacidade técnica ou falta de qualificação profissional para o efeito. No primeiro caso, a despromoção ocorre como uma sanção, na medida em que a falta de realização das actividades do trabalhador decorre da sua própria vontade e não da falta de capacidade de realizar as tarefas. No segundo caso, a despromoção resulta na necessidade de ajuste das capacidades e competências da força de trabalho e como tal vaza da visão estratégica do gestor (ou empregador na linguagem jurídico-laboral) independentemente da vontade do trabalhador.
O empregador pode sempre despromover o trabalhador sempre que por razões inerentes ao aumento, melhoria ou estabilidade da produtividade se verifique a necessidade de mudança de funções ou categoria do mesmo, sem prejuízo da preservação e promoção da sua carreira profissional, i.é, o empregador levará o trabalhador a assumir as funções em que melhor prestar a sua capacidade técnica ou humana partindo das actividades mais complexas as menos complexas até o ajuste ideal da força de trabalho e do resultado da produção. Não há limites de vezes para despromoções deste género nem prazos estabelecidos para o efeito. É da inteira competência do gestor fazê-lo sem quaisquer represálias legais. Aliás, é recomendado a empregadores prudentes a rotação das capacidades humanas nas diversas categorias ou funções na empresa sempre que a necessidade de aumento de produtividade assim justifique.
É a despromoção sancionatória ou disciplinar que exige maior cuidado da parte do empregador por estar regulada pela Lei Geral do Trabalho e ocorrer apenas nos casos nela previstos. O primeiro sinal da autoridade legal neste sentido é que este tipo de despromoção só ocorre mediante um processo disciplinar. Porque se trata de uma sanção, o empregador deve avaliar o quadro disciplinar do trabalhador e verificar se existem justificações bastantes para a despromoção do trabalhador. Sem a verificação dos passos exigidos por Lei a despromoção é ilícita e como tal motiva o trabalhador a dela recorrer em juízo laboral.
Duas razões vulgares podem levar a despromoção do trabalhador. Uma é aquela em que o trabalhador, competente e capaz para o cargo ou função em que é indicado, não satisfaz as exigências do trabalho por manifesta incúria derivada por exemplo de faltas frequentes ou execução negligente de tarefas que levam a baixa de produtividade da empresa. Outra é aquela em que o trabalhador, motivado e esforçado, não consegue responder as exigências das tarefas que lhe são acometidas por clara incapacidade técnica ou falta de qualificação profissional para o efeito. No primeiro caso, a despromoção ocorre como uma sanção, na medida em que a falta de realização das actividades do trabalhador decorre da sua própria vontade e não da falta de capacidade de realizar as tarefas. No segundo caso, a despromoção resulta na necessidade de ajuste das capacidades e competências da força de trabalho e como tal vaza da visão estratégica do gestor (ou empregador na linguagem jurídico-laboral) independentemente da vontade do trabalhador.
O empregador pode sempre despromover o trabalhador sempre que por razões inerentes ao aumento, melhoria ou estabilidade da produtividade se verifique a necessidade de mudança de funções ou categoria do mesmo, sem prejuízo da preservação e promoção da sua carreira profissional, i.é, o empregador levará o trabalhador a assumir as funções em que melhor prestar a sua capacidade técnica ou humana partindo das actividades mais complexas as menos complexas até o ajuste ideal da força de trabalho e do resultado da produção. Não há limites de vezes para despromoções deste género nem prazos estabelecidos para o efeito. É da inteira competência do gestor fazê-lo sem quaisquer represálias legais. Aliás, é recomendado a empregadores prudentes a rotação das capacidades humanas nas diversas categorias ou funções na empresa sempre que a necessidade de aumento de produtividade assim justifique.
É a despromoção sancionatória ou disciplinar que exige maior cuidado da parte do empregador por estar regulada pela Lei Geral do Trabalho e ocorrer apenas nos casos nela previstos. O primeiro sinal da autoridade legal neste sentido é que este tipo de despromoção só ocorre mediante um processo disciplinar. Porque se trata de uma sanção, o empregador deve avaliar o quadro disciplinar do trabalhador e verificar se existem justificações bastantes para a despromoção do trabalhador. Sem a verificação dos passos exigidos por Lei a despromoção é ilícita e como tal motiva o trabalhador a dela recorrer em juízo laboral.
quinta-feira, 12 de agosto de 2010
NOVA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA VIII
A CRISE DOS ÓRGÃOS DE SOBERANIA DO ESTADO
Albano Pedro
Tradicionalmente os órgãos de soberania do Estado têm sido apresentados como sendo o poder legislativo, executivo e judicial, fruto da reforma nascida na Europa pós-medieval com a revolução burguesa que pós fim ao poder monárquico absolutista e pela inspiração dos ideais iluministas que sugeriram a repartição do poder do soberano (rei) em três poderes distintos e equilibrados num plano horizontal pelo princípio da separação e interdependência de poderes que sobrevive aos dias de hoje em quase todas as constituições democráticas, incluindo a nossa (alínea j) do art.º 236º). A ideia de que a soberania reside no povo e que este transmite-a ao titular do poder livremente escolhido mediante eleição tornou-se na trave mestra dos sistemas democráticos modernos e na alma de fundo do Estado de Direito, como título jurídico primo para a organização e o funcionamento do poder político. Se a soberania é do povo, só é soberano o poder que for eleito; que receber, por voto, a confirmação ou legitimidade do povo. Todavia, a pretensão da escola política de Jean Bodin, John Locke, Jean Jacques Rousseau e outros iluministas de que todo o poder devia ser legitimado mediante transmissão de mandato pelos governados não foi reproduzido fielmente. Em todo o mundo, o poder judicial nunca foi legitimado pelo voto popular apesar das discussões recentes a volta desta possibilidade. Nas democracias mais afinadas como a americana, os poderes legitimados pelo voto tem sido o legislativo e o executivo. E a maioria das democracias assim estabelece. Acontece que entre nós assim foi previsto na Lei Constitucional de 1992 onde quer o Presidente da República, enquanto representante do poder executivo, quer os deputados como representantes do poder legislativo eram eleitos.
A nova Lei Constitucional mantém o espírito de 1992 determinando que a soberania “pertence ao povo, que exerce através do sufrágio universal, livre, igual, directo, secreto e periódico, do referendo e das demais formas estabelecidas pela Constituição, nomeadamente para a escolha dos seus representantes.” (art.º 3º). Seguindo com rigor esta disposição, o único órgão soberano é a Assembleia Nacional visto que apenas os membros destes são eleitos, i.é, beneficiam da confiança directa daqueles que detêm a soberania nacional; melhor dito: apenas estes gozam do mandato soberano. O Presidente da República, titular do poder executivo e os tribunais, titulares do poder judicial não são eleitos, logo não são soberanos. Com efeito, a nova Lei constitucional declina a soberania do Presidente em reforço a soberania da Assembleia Nacional ao estabelecer que “É eleito Presidente da República e Chefe do Executivo o cabeça de lista, pelo círculo nacional, do partido político ou coligação de partidos políticos mais votado no quadro das eleições gerais…”(art.º 109º). Quer dizer, que o Presidente da República é antes um deputado a Assembleia Nacional não havendo em rigor a ideia da separação e interdependência de poderes como pretende a própria Lei Constitucional. Infelizmente a Lei Constitucional reconhece a existência de órgãos de soberania não elegíveis (alínea h) do art.º 236º). Como podem existir órgãos de soberania não elegíveis quando a soberania pertence ao povo? Está claro que estamos perante uma antinomia constitucional ou seja perante um conflito de normas fundamentais. Pior. Um conflito entre um princípio (principio da soberania popular) e uma regra (regra inerente aos limites da revisão constitucional) em que obviamente aquele deve prevalecer sobre esta sem recursos a exigentes métodos hermenêuticos.
Se a soberania pertence ao povo, com o reconhecimento da existência de órgãos soberanos não elegíveis o legislador constitucional pretendeu introduzir a ideia da soberania indirecta como género constitucional novo na nossa constituição e no mundo em benefício do poder executivo. Na verdade parece ser esta forma de soberania que prevalece quando ao poder judicial, embora entre nós este órgão “soberano” beneficie, há muito, da soberania do Presidente da República. Assim, quanto a fonte soberana de poderes dos órgãos do Estado desaparece a ideia clássica dos poderes horizontalmente equilibrados para ser “instituída” uma pirâmide invertida com o povo, detentor original da soberania no plano cimeiro, seguido dos deputados aos quais transferem a soberania, mais abaixo o Presidente da República e finalmente o poder judicial. É assim, o quadro ideográfico da nova Lei Constitucional quanto a fonte de soberania dos órgãos máximos do Estado, ficando perfeitamente visível que a única soberania perfeita porque directa é a da Assembleia Nacional.
Este novo quadro não pode deixar de ser inquietante. Desde logo, no que tange a pretensa soberania do Presidente da República enquanto titular do poder executivo. Ele é eleito como deputado e nem sequer cessa o seu mandato quando se lhe é investido o poder executivo. Visto que o legislador constitucional não determina quaisquer momentos sequenciais em que se adivinha uma transmissão sucessiva de poderes. Pois, o cabeça de lista do partido vencedor é eleito simultaneamente Deputado e Presidente da República. Deste modo, se admitirmos a pretensa soberania indirecta a fonte do poder soberano do Presidente da República é sem sombras de dúvidas o mandato de Deputado. Teríamos que o poder soberano do Presidente da República assenta no seu mandato como Deputado a Assembleia Nacional, o que o torna perigosamente frágil uma vez que a perda de mandato de deputado obrigá-lo-ia a cessar as funções de Presidente da República por razões óbvias. E na verdade a Lei Constitucional proporciona essa perigosa brecha quando estabelece que o deputado deve ser suspenso nos casos em que exerça cargo público incompatível com a função de deputado - a função de Presidente da República é perfeitamente incompatível (art.º 149º alínea d) – sob pena de perda de mandato quando se lhe surpreenda alguma incapacidade ou inelegibilidade (art.º 152º n.º 2 alínea a). Não sendo suspenso a perda de mandato ocorre naturalmente pelas faltas acumuladas (art.º 152º n.º 2 alínea b). E está claro que se o Presidente da República não ter o mandato suspenso pela incompatibilidade apontada certamente perde o mandato de deputado pelas faltas que venha a acumular pela ausência óbvia na actividade parlamentar. Que consequência pode advir desta situação, admitindo a ideia da soberania indirecta ou derivada, para ser mais preciso? A Perda de mandato de Deputado dá lugar a perda de mandato como Presidente da República já que a qualidade de Presidente da República e de Chefe de Executivo deriva da qualidade de Deputado.
É com esta lógica que funciona o sistema de governo parlamentarista (modelo britânico em consideração) em que o Primeiro-Ministro enquanto chefe do Governo (Executivo) perde o mandato junto com os outros “ministros-deputados” sempre que sobre si recai a falta de confiança traduzida numa moção de censura. Ou seja, o mandato do Governo tem forte dependência do parlamento ou poder legislativo por ser a base de legitimação do poder, já que os membros do Governo são antes de tudo deputados. E como consequência costumam a ser convocadas novas eleições. Não é assim, nos sistemas Presidencialistas como o existente nos EUA porque o Presidente da República não é deputado; vem da escolha directa e pessoal dos eleitores e como tal o seu poder soberano é directamente tributário e depende da soberania de cada cidadão americano.
No sistema inspirado da nova Lei Constitucional angolana em que se verifica uma miscelânea jurídico-constitucional “suis generis”, a simultaneidade da eleição do Deputado-Presidente da República não desvaloriza a base soberana do Presidente da República como assente no mandato de Deputado, já que a Lei Constitucional vem enquadrar a existência de órgãos de soberania não elegíveis. O que quer dizer que o Presidente da República como órgão soberano não é eleito, mas, indicado a partir da sua condição de Primeiro-Deputado do partido vencedor. É esta malfadada artimanha do legislador constitucional que leva o Presidente da República a ver-se na mira das consequências e fragilidades da sua condição de Deputado. De qualquer modo, mais do que claro está que a luz da nova Lei Constitucional o único órgão de soberania do Estado é a Assembleia Nacional para o retrocesso da construção do Estado de Direito em Angola.
Albano Pedro
Tradicionalmente os órgãos de soberania do Estado têm sido apresentados como sendo o poder legislativo, executivo e judicial, fruto da reforma nascida na Europa pós-medieval com a revolução burguesa que pós fim ao poder monárquico absolutista e pela inspiração dos ideais iluministas que sugeriram a repartição do poder do soberano (rei) em três poderes distintos e equilibrados num plano horizontal pelo princípio da separação e interdependência de poderes que sobrevive aos dias de hoje em quase todas as constituições democráticas, incluindo a nossa (alínea j) do art.º 236º). A ideia de que a soberania reside no povo e que este transmite-a ao titular do poder livremente escolhido mediante eleição tornou-se na trave mestra dos sistemas democráticos modernos e na alma de fundo do Estado de Direito, como título jurídico primo para a organização e o funcionamento do poder político. Se a soberania é do povo, só é soberano o poder que for eleito; que receber, por voto, a confirmação ou legitimidade do povo. Todavia, a pretensão da escola política de Jean Bodin, John Locke, Jean Jacques Rousseau e outros iluministas de que todo o poder devia ser legitimado mediante transmissão de mandato pelos governados não foi reproduzido fielmente. Em todo o mundo, o poder judicial nunca foi legitimado pelo voto popular apesar das discussões recentes a volta desta possibilidade. Nas democracias mais afinadas como a americana, os poderes legitimados pelo voto tem sido o legislativo e o executivo. E a maioria das democracias assim estabelece. Acontece que entre nós assim foi previsto na Lei Constitucional de 1992 onde quer o Presidente da República, enquanto representante do poder executivo, quer os deputados como representantes do poder legislativo eram eleitos.
A nova Lei Constitucional mantém o espírito de 1992 determinando que a soberania “pertence ao povo, que exerce através do sufrágio universal, livre, igual, directo, secreto e periódico, do referendo e das demais formas estabelecidas pela Constituição, nomeadamente para a escolha dos seus representantes.” (art.º 3º). Seguindo com rigor esta disposição, o único órgão soberano é a Assembleia Nacional visto que apenas os membros destes são eleitos, i.é, beneficiam da confiança directa daqueles que detêm a soberania nacional; melhor dito: apenas estes gozam do mandato soberano. O Presidente da República, titular do poder executivo e os tribunais, titulares do poder judicial não são eleitos, logo não são soberanos. Com efeito, a nova Lei constitucional declina a soberania do Presidente em reforço a soberania da Assembleia Nacional ao estabelecer que “É eleito Presidente da República e Chefe do Executivo o cabeça de lista, pelo círculo nacional, do partido político ou coligação de partidos políticos mais votado no quadro das eleições gerais…”(art.º 109º). Quer dizer, que o Presidente da República é antes um deputado a Assembleia Nacional não havendo em rigor a ideia da separação e interdependência de poderes como pretende a própria Lei Constitucional. Infelizmente a Lei Constitucional reconhece a existência de órgãos de soberania não elegíveis (alínea h) do art.º 236º). Como podem existir órgãos de soberania não elegíveis quando a soberania pertence ao povo? Está claro que estamos perante uma antinomia constitucional ou seja perante um conflito de normas fundamentais. Pior. Um conflito entre um princípio (principio da soberania popular) e uma regra (regra inerente aos limites da revisão constitucional) em que obviamente aquele deve prevalecer sobre esta sem recursos a exigentes métodos hermenêuticos.
Se a soberania pertence ao povo, com o reconhecimento da existência de órgãos soberanos não elegíveis o legislador constitucional pretendeu introduzir a ideia da soberania indirecta como género constitucional novo na nossa constituição e no mundo em benefício do poder executivo. Na verdade parece ser esta forma de soberania que prevalece quando ao poder judicial, embora entre nós este órgão “soberano” beneficie, há muito, da soberania do Presidente da República. Assim, quanto a fonte soberana de poderes dos órgãos do Estado desaparece a ideia clássica dos poderes horizontalmente equilibrados para ser “instituída” uma pirâmide invertida com o povo, detentor original da soberania no plano cimeiro, seguido dos deputados aos quais transferem a soberania, mais abaixo o Presidente da República e finalmente o poder judicial. É assim, o quadro ideográfico da nova Lei Constitucional quanto a fonte de soberania dos órgãos máximos do Estado, ficando perfeitamente visível que a única soberania perfeita porque directa é a da Assembleia Nacional.
Este novo quadro não pode deixar de ser inquietante. Desde logo, no que tange a pretensa soberania do Presidente da República enquanto titular do poder executivo. Ele é eleito como deputado e nem sequer cessa o seu mandato quando se lhe é investido o poder executivo. Visto que o legislador constitucional não determina quaisquer momentos sequenciais em que se adivinha uma transmissão sucessiva de poderes. Pois, o cabeça de lista do partido vencedor é eleito simultaneamente Deputado e Presidente da República. Deste modo, se admitirmos a pretensa soberania indirecta a fonte do poder soberano do Presidente da República é sem sombras de dúvidas o mandato de Deputado. Teríamos que o poder soberano do Presidente da República assenta no seu mandato como Deputado a Assembleia Nacional, o que o torna perigosamente frágil uma vez que a perda de mandato de deputado obrigá-lo-ia a cessar as funções de Presidente da República por razões óbvias. E na verdade a Lei Constitucional proporciona essa perigosa brecha quando estabelece que o deputado deve ser suspenso nos casos em que exerça cargo público incompatível com a função de deputado - a função de Presidente da República é perfeitamente incompatível (art.º 149º alínea d) – sob pena de perda de mandato quando se lhe surpreenda alguma incapacidade ou inelegibilidade (art.º 152º n.º 2 alínea a). Não sendo suspenso a perda de mandato ocorre naturalmente pelas faltas acumuladas (art.º 152º n.º 2 alínea b). E está claro que se o Presidente da República não ter o mandato suspenso pela incompatibilidade apontada certamente perde o mandato de deputado pelas faltas que venha a acumular pela ausência óbvia na actividade parlamentar. Que consequência pode advir desta situação, admitindo a ideia da soberania indirecta ou derivada, para ser mais preciso? A Perda de mandato de Deputado dá lugar a perda de mandato como Presidente da República já que a qualidade de Presidente da República e de Chefe de Executivo deriva da qualidade de Deputado.
É com esta lógica que funciona o sistema de governo parlamentarista (modelo britânico em consideração) em que o Primeiro-Ministro enquanto chefe do Governo (Executivo) perde o mandato junto com os outros “ministros-deputados” sempre que sobre si recai a falta de confiança traduzida numa moção de censura. Ou seja, o mandato do Governo tem forte dependência do parlamento ou poder legislativo por ser a base de legitimação do poder, já que os membros do Governo são antes de tudo deputados. E como consequência costumam a ser convocadas novas eleições. Não é assim, nos sistemas Presidencialistas como o existente nos EUA porque o Presidente da República não é deputado; vem da escolha directa e pessoal dos eleitores e como tal o seu poder soberano é directamente tributário e depende da soberania de cada cidadão americano.
No sistema inspirado da nova Lei Constitucional angolana em que se verifica uma miscelânea jurídico-constitucional “suis generis”, a simultaneidade da eleição do Deputado-Presidente da República não desvaloriza a base soberana do Presidente da República como assente no mandato de Deputado, já que a Lei Constitucional vem enquadrar a existência de órgãos de soberania não elegíveis. O que quer dizer que o Presidente da República como órgão soberano não é eleito, mas, indicado a partir da sua condição de Primeiro-Deputado do partido vencedor. É esta malfadada artimanha do legislador constitucional que leva o Presidente da República a ver-se na mira das consequências e fragilidades da sua condição de Deputado. De qualquer modo, mais do que claro está que a luz da nova Lei Constitucional o único órgão de soberania do Estado é a Assembleia Nacional para o retrocesso da construção do Estado de Direito em Angola.
quarta-feira, 4 de agosto de 2010
LEI DA PROBIDADE PÚBLICA
A PROPÓSITO DO SEU CONTEÚDO E OPORTUNIDADE DE VIGÊNCIA
Albano Pedro
A Probidade Pública vigente ao abrigo da Lei n.º 3/10 de 29 de Março de 2010 é um instrumento político-normativo a cujo escopo se reporta a disciplina do comportamento do agente público, assim definido na própria Lei, e sua relação com os particulares (cidadãos, empresas e corporações diversas) e com o património do Estado. Quer dizer que por um lado, estabelece as balizas sobre a relação do servidor público com os serviços e instituições públicas ao serviço dos particulares descrevendo os respectivos deveres e sanções e por outro lado impõe mecanismos procedimentais sobre o tratamento ao património público por parte dos gestores públicos. Vem daí que os actos de improbidade se repartem em dois grupos, nomeadamente: actos contra os princípios da Administração Pública (art.º24º) que dizem respeito a todos os agentes públicos, sempre que violem regras relativas ao serviço público em geral e actos que conduzem ao enriquecimento ilícito (art.º25º) ou que causam prejuízo ao património público (art.º26ª) que dizem especialmente respeito ao uso e tratamento do património público e como tal visam sancionar sobretudo os seus gestores. É sobre os destinatários desta última variante da Lei que recai a obrigação de declarar os bens (art.º27º).
É certo que na variante que estabelece as normas de relacionamento entre a administração pública e os particulares a Lei vem convocar uma série de normas ora vigentes em matéria de obrigações de agentes públicos e vem centra-las num novo nomen iuris ou espécie normativa: Probidade Pública. Aqui, o agente público é entendido como “a pessoa que exerce mandato, cargo, emprego ou função em entidade pública, em virtude de eleição, de nomeação, de contratação ou de qualquer outra forma de investidura ou vínculo, ainda que de forma transitória ou sem remuneração” (art.º 15º) definição esta a que cabem os membros do Executivo (desde o Presidente da República aos Ministros, passando pelos membros do seu gabinete e serviços de apoio, os Ministros de Estado e Secretários de Estado), os Deputados a Assembleia Nacional, os Juízes e Procuradores em todos os níveis orgânicos, Membros da Administração Central do Estado bem como dos governos das províncias, das administrações municipais e comunais, a Lei procura atravessar subjectivamente os três órgãos de soberania do Estado (Assembleia Nacional, Presidente da República e os Tribunais) entranhando todos os agentes nos diversos níveis orgânicos que lidam com os serviços públicos e com o património do Estado.
Vários princípios são chamados a assentar as bases da actuação dos agentes públicos na sua relação com os particulares. Alguns já são conhecidos noutros diplomas legais (princípio da legalidade, da imparcialidade, da prossecução do interesse público, etc.). Outros são aparentemente novos, trazendo interpretações claras como o princípio da competência (art.º 6º), da parcimónia (art.º 13º), da responsabilidade e da responsabilização (art.º 10º), da reserva e da discrição (art.º 12º) outros ainda confusos e de difícil interpretação desde a sua enunciação. Por exemplo, não está claro o conceito legal de urbanidade (art.º 11º) ou de Lealdade (art.º 14º) visto que a Lei trata de repetir os referidos termos sem os definir deixando o destinatário da Lei num evidente equívoco entre a interpretação semântica (elemento gramatical) e a intenção provável do legislador (mens legis). O que é urbanidade ou lealdade para efeitos da Lei da Probidade Pública? De qualquer modo, os deveres e direitos estabelecidos são uma desnecessária reprodução do Decreto-Lei 16-A/95 sobre normas de procedimento da administração pública, ao que bastava uma mera remissão “mutatis mutandis” àquele diploma para abranger os membros de órgão não executivos do Estado. Tautologia jurídica que adivinha mais uma inoperância legal do diploma em causa, já que aquele diploma administrativo tem sido sombra de si mesmo ante a miríade de actos de “improbidade” praticados ao seu abrigo sem sanções de conhecimento público.
Dado assente é que a obrigação de declarar bens (art.º 27º) é imposta a um leque restrito de agentes públicos. Estes compreendem titulares de cargos políticos, juízes e procuradores, ministros, secretários de estado e governadores provinciais, entidades responsáveis pela gestão de património militar ou da polícia nacional, gestores e responsáveis dos institutos públicos, dos fundos ou fundações públicas e das empresas públicas bem como os titulares de órgãos executivos e deliberativos autárquicos. Só não se compreende o porque é que o legislador previu a declaração de bens por parte de autarcas que ainda não existem na nossa realidade política e administrativa e não elenca os titulares de cargos em partidos políticos que gerem verbas significativas do Orçamento Geral do Estado quando integram a Assembleia Nacional. É uma lacuna infeliz se não for propositada em razão de quem aprovou a Lei. Outra questão que merece consideração é saber se os titulares de cargos em federações e associações desportivas nacionais ou provinciais devem ou não declarar bens uma vez que as organizações que dirigem fazem uso de verbas afectadas a partir do Ministério da Juventude e Desporto. Contudo pensamos que a Lei responde negativamente a esta preocupação pelo facto destas organizações sociais não gozarem de estatuto de utilidade pública como condição do seu reconhecimento como parceiro do Estado na implementação da política desportiva nacional. De qualquer modo estas exclusões igualmente abrangentes aos titulares de cargos em instituições de utilidade pública parecem sugerir que a Lei da Probidade Pública pretende impor esta obrigação aos agentes públicos propriu sensu.
No que toca aos procedimentos para a declaração dos bens (art.º 27º), embora a lei estabeleça a necessidade de declarar todos bens nomeadamente direitos, rendimentos, títulos, acções ou qualquer outra espécie de bens e valores, o modelo de declaração bens em anexo na própria Lei estabelece apenas seis grupos de bens a declarar quais sejam: bens imoveis, bens móveis, bens semoventes, dinheiro, títulos e acções. Faz juízo certo que declarar o dinheiro entesourado não é o mesmo que declarar rendimentos, e este não consta no modelo, embora sejam informações a suprir com declarações fiscais individuais. Outrossim, o modelo sugere que os bens sejam repartidos entre os existentes no país e os que se encontram no estrangeiro. A lei nem se quer obriga o declarante a indicar a cidade, província ou o país em que os bens se encontram tão pouco pede que os mesmos sejam caracterizados de forma descritiva com vista a sua concreta identificação. Por exemplo no que toca a declaração de dinheiro, o declarante pode se quiser dizer apenas o montante e a moeda sem precisar o banco em que o mesmo se encontra depositado tão pouco precisa anexar um extracto de conta como comprovativo da existência real do montante declarado. Em boa verdade, no uso da seriedade política, estaríamos perante uma declaração e justificação de bens se à declaração fosse anexa a documentação e memórias descritivas dos bens. A Lei não exige quaisquer documentos justificativos e por isso o declarante é livre, tanto de declarar bens presentes como bens futuros, estes últimos a declarar com a perspectiva de vir a transferi-los para o seu património pessoal, quanto pode declarar bens alheios, mesmo que estejam na esfera jurídica de terceiros de boa-fé. Assim, longe de se estar perante uma verdadeira declaração de bens que na sua pompa máxima devia ser tornada pública, a Lei sugere um processo de branqueamento de capitais ou lavagem de dinheiro com vista a tornar lícito as fortunas acumuladas a custo do erário público simulado em informações secretas a circular entre os “novos-ricos” e a Procuradoria Geral de República como fiel depositário dos envelopes lacrados contendo as “famosas” declarações de bens.
A Lei engendra subtilmente a possibilidade do Presidente da República ter contacto com rigorosamente todas as declarações de bens de detentores de cargos políticos dentro do novo sistema de Administração do Estado quando determina que a declaração de bens deve ser apresentada junto a entidade que exerce poder de direcção, de superintendência ou de tutela que por sua vez remete ao Procurador Geral da República (art.º 27º n.º 5), embora a Lei seja clara em determinar que a ninguém é permitido o acesso a declarações de bens senão ao Procurador Geral da República mediante mandato judicial em caso de processo disciplinar, administrativo ou criminal contra a pessoa do declarante.
Se o Presidente da República pode sempre declarar os seus bens ao Procurador Geral da República a questão que se coloca é a quem este deve declarar os seus bens uma vez que está igualmente obrigado a fazê-lo? Interpretação lógica sugere que o Procurador Geral da República faça presente a sua declaração junto do Presidente da República na qualidade deste ser seu mandante na concretização das suas competências como o mais alto magistrado da Nação. E efectivamente a Lei responde em concordância com o raciocínio lógico nos mesmos termos em que impõe a entrega a entidade que exerce o poder de direcção acima referido. Assim, ocorrerá uma relação quase desnecessária em que o Procurador Geral da República faz presente a sua declaração de bens ao Presidente da República e este devolve-lo para depositar a própria declaração de bens.
Em matéria de prazos, a Lei determina que a declaração seja presente ao superior hierárquico (entidade com poder de direcção, superintendência ou tutela) até 30 dias após a tomada de posse ao cargo nomeado ou eleito que obriga a declaração de bens e este remete no prazo de 8 dias ao Procurador Geral da República, sob pena de sanções. A Lei parece sugerir que os deputados o façam junto do Presidente da Assembleia Nacional e que este remeta as respectivas declarações de bens ao Procurador Geral da República, que os juízes remetam as suas declarações de bens ao Venerando Juiz Presidente do Tribunal Supremo, que os Procuradores façam depósito ao Procurador Geral da República por intermédio dos procuradores superiores na respectiva linha de hierarquia, que os Administradores Municipais o façam junto do correspondente Governador da Província; que os Ministros de Estado, os Ministros ou que os Secretários de Estado vertam as suas declarações de bens em funil para o Presidente da República, embora as relações de hierarquia em todo o sistema público devam ser interpretadas em harmonia com o novo modelo de Administração do Estado e do sistema de hierarquias inspiradas a partir da Lei Constitucional vigente.
Vale dizer que a entrada em vigor da Lei da Probidade Pública encontrou o grosso dos potenciais declarantes em manifesto atraso, o que retira a obrigação de declarar nos prazos legais. E é certo que quaisquer outros prazos estabelecidos contra a disposição da Lei tornam-se ilegais. Dai que faz sentido mas não é sancionável, o prazo que a Procuradoria Geral da República estabeleceu para a entrega dos envelopes lacrados contendo as declarações de bens por parte de agentes públicos que tomaram posse antes da vigência da Lei da Probidade Pública. Dito de outro modo, os agentes públicos nestas condições podem sempre fazer a declaração de bens fora dos prazos legais visto que as sanções não se lhes aplicam.
Apesar do esforço do legislador em tornar escorreita a interpretação da Lei ela não deixa de emitir luzes pouco nítidas desenhando zonas acinzentadas para uma clara e coerente interpretação. Para responder a esta e demais questões bem como a integrar as lacunas desta Lei, um regulamento é necessário até para tornar decritiva a declaração de bens. Até lá a Assembleia Nacional pode sempre interpretar a Lei em resposta as preocupações que ela levanta (art.º 44º). Juízos de valores a vazar sobre o processo de declaração de bens remete-nos a percepção da necessidade dos membros das mais altas esfera do poder do Estado de “oficializar” os primeiros ricos angolanos encontrados no seu círculo, independentemente da origem das fortunas para que a classe de ricos emirja na realidade angolana e se concretize uma verdadeira estratificação social com base económica e financeira e num futuro próximo o capitalismo de angolanos seja um facto. Pois que, se por um lado a intenção da Lei é acabar com o enjoativo ambiente de abusiva promiscuidade cruzando gestores públicos e património do Estado que tem enterrado o país num enorme foço de corrupção, por outro lado, as suas insuficiências e lacunas acabam por fazer gorar os esforços tendentes a “urbanização” da consciência do agente público remetendo a Lei na categoria de espécie normativa facilitadora do enriquecimento ilícito. Daí vem a inoperância efectiva desta Lei que é até reforçada pela existência de condições materiais que prevêem a sua impossível eficácia como o clientelismo promovido pelo próprio Estado quando condiciona o bem-estar dos titulares de cargos públicos com a doação de viaturas, casas, viagens sem custos visíveis para o seu beneficiário para além da incapacidade dos salários públicos evoluir a situação económica e patrimonial do agente público. De qualquer modo, é de elogiar a escolha da espécie normativa: Probidade Pública como terminologia sonante para atrair as atenções dos cidadãos para uma nova era na relação entre os agentes públicos e o dever ou património do Estado.
Albano Pedro
A Probidade Pública vigente ao abrigo da Lei n.º 3/10 de 29 de Março de 2010 é um instrumento político-normativo a cujo escopo se reporta a disciplina do comportamento do agente público, assim definido na própria Lei, e sua relação com os particulares (cidadãos, empresas e corporações diversas) e com o património do Estado. Quer dizer que por um lado, estabelece as balizas sobre a relação do servidor público com os serviços e instituições públicas ao serviço dos particulares descrevendo os respectivos deveres e sanções e por outro lado impõe mecanismos procedimentais sobre o tratamento ao património público por parte dos gestores públicos. Vem daí que os actos de improbidade se repartem em dois grupos, nomeadamente: actos contra os princípios da Administração Pública (art.º24º) que dizem respeito a todos os agentes públicos, sempre que violem regras relativas ao serviço público em geral e actos que conduzem ao enriquecimento ilícito (art.º25º) ou que causam prejuízo ao património público (art.º26ª) que dizem especialmente respeito ao uso e tratamento do património público e como tal visam sancionar sobretudo os seus gestores. É sobre os destinatários desta última variante da Lei que recai a obrigação de declarar os bens (art.º27º).
É certo que na variante que estabelece as normas de relacionamento entre a administração pública e os particulares a Lei vem convocar uma série de normas ora vigentes em matéria de obrigações de agentes públicos e vem centra-las num novo nomen iuris ou espécie normativa: Probidade Pública. Aqui, o agente público é entendido como “a pessoa que exerce mandato, cargo, emprego ou função em entidade pública, em virtude de eleição, de nomeação, de contratação ou de qualquer outra forma de investidura ou vínculo, ainda que de forma transitória ou sem remuneração” (art.º 15º) definição esta a que cabem os membros do Executivo (desde o Presidente da República aos Ministros, passando pelos membros do seu gabinete e serviços de apoio, os Ministros de Estado e Secretários de Estado), os Deputados a Assembleia Nacional, os Juízes e Procuradores em todos os níveis orgânicos, Membros da Administração Central do Estado bem como dos governos das províncias, das administrações municipais e comunais, a Lei procura atravessar subjectivamente os três órgãos de soberania do Estado (Assembleia Nacional, Presidente da República e os Tribunais) entranhando todos os agentes nos diversos níveis orgânicos que lidam com os serviços públicos e com o património do Estado.
Vários princípios são chamados a assentar as bases da actuação dos agentes públicos na sua relação com os particulares. Alguns já são conhecidos noutros diplomas legais (princípio da legalidade, da imparcialidade, da prossecução do interesse público, etc.). Outros são aparentemente novos, trazendo interpretações claras como o princípio da competência (art.º 6º), da parcimónia (art.º 13º), da responsabilidade e da responsabilização (art.º 10º), da reserva e da discrição (art.º 12º) outros ainda confusos e de difícil interpretação desde a sua enunciação. Por exemplo, não está claro o conceito legal de urbanidade (art.º 11º) ou de Lealdade (art.º 14º) visto que a Lei trata de repetir os referidos termos sem os definir deixando o destinatário da Lei num evidente equívoco entre a interpretação semântica (elemento gramatical) e a intenção provável do legislador (mens legis). O que é urbanidade ou lealdade para efeitos da Lei da Probidade Pública? De qualquer modo, os deveres e direitos estabelecidos são uma desnecessária reprodução do Decreto-Lei 16-A/95 sobre normas de procedimento da administração pública, ao que bastava uma mera remissão “mutatis mutandis” àquele diploma para abranger os membros de órgão não executivos do Estado. Tautologia jurídica que adivinha mais uma inoperância legal do diploma em causa, já que aquele diploma administrativo tem sido sombra de si mesmo ante a miríade de actos de “improbidade” praticados ao seu abrigo sem sanções de conhecimento público.
Dado assente é que a obrigação de declarar bens (art.º 27º) é imposta a um leque restrito de agentes públicos. Estes compreendem titulares de cargos políticos, juízes e procuradores, ministros, secretários de estado e governadores provinciais, entidades responsáveis pela gestão de património militar ou da polícia nacional, gestores e responsáveis dos institutos públicos, dos fundos ou fundações públicas e das empresas públicas bem como os titulares de órgãos executivos e deliberativos autárquicos. Só não se compreende o porque é que o legislador previu a declaração de bens por parte de autarcas que ainda não existem na nossa realidade política e administrativa e não elenca os titulares de cargos em partidos políticos que gerem verbas significativas do Orçamento Geral do Estado quando integram a Assembleia Nacional. É uma lacuna infeliz se não for propositada em razão de quem aprovou a Lei. Outra questão que merece consideração é saber se os titulares de cargos em federações e associações desportivas nacionais ou provinciais devem ou não declarar bens uma vez que as organizações que dirigem fazem uso de verbas afectadas a partir do Ministério da Juventude e Desporto. Contudo pensamos que a Lei responde negativamente a esta preocupação pelo facto destas organizações sociais não gozarem de estatuto de utilidade pública como condição do seu reconhecimento como parceiro do Estado na implementação da política desportiva nacional. De qualquer modo estas exclusões igualmente abrangentes aos titulares de cargos em instituições de utilidade pública parecem sugerir que a Lei da Probidade Pública pretende impor esta obrigação aos agentes públicos propriu sensu.
No que toca aos procedimentos para a declaração dos bens (art.º 27º), embora a lei estabeleça a necessidade de declarar todos bens nomeadamente direitos, rendimentos, títulos, acções ou qualquer outra espécie de bens e valores, o modelo de declaração bens em anexo na própria Lei estabelece apenas seis grupos de bens a declarar quais sejam: bens imoveis, bens móveis, bens semoventes, dinheiro, títulos e acções. Faz juízo certo que declarar o dinheiro entesourado não é o mesmo que declarar rendimentos, e este não consta no modelo, embora sejam informações a suprir com declarações fiscais individuais. Outrossim, o modelo sugere que os bens sejam repartidos entre os existentes no país e os que se encontram no estrangeiro. A lei nem se quer obriga o declarante a indicar a cidade, província ou o país em que os bens se encontram tão pouco pede que os mesmos sejam caracterizados de forma descritiva com vista a sua concreta identificação. Por exemplo no que toca a declaração de dinheiro, o declarante pode se quiser dizer apenas o montante e a moeda sem precisar o banco em que o mesmo se encontra depositado tão pouco precisa anexar um extracto de conta como comprovativo da existência real do montante declarado. Em boa verdade, no uso da seriedade política, estaríamos perante uma declaração e justificação de bens se à declaração fosse anexa a documentação e memórias descritivas dos bens. A Lei não exige quaisquer documentos justificativos e por isso o declarante é livre, tanto de declarar bens presentes como bens futuros, estes últimos a declarar com a perspectiva de vir a transferi-los para o seu património pessoal, quanto pode declarar bens alheios, mesmo que estejam na esfera jurídica de terceiros de boa-fé. Assim, longe de se estar perante uma verdadeira declaração de bens que na sua pompa máxima devia ser tornada pública, a Lei sugere um processo de branqueamento de capitais ou lavagem de dinheiro com vista a tornar lícito as fortunas acumuladas a custo do erário público simulado em informações secretas a circular entre os “novos-ricos” e a Procuradoria Geral de República como fiel depositário dos envelopes lacrados contendo as “famosas” declarações de bens.
A Lei engendra subtilmente a possibilidade do Presidente da República ter contacto com rigorosamente todas as declarações de bens de detentores de cargos políticos dentro do novo sistema de Administração do Estado quando determina que a declaração de bens deve ser apresentada junto a entidade que exerce poder de direcção, de superintendência ou de tutela que por sua vez remete ao Procurador Geral da República (art.º 27º n.º 5), embora a Lei seja clara em determinar que a ninguém é permitido o acesso a declarações de bens senão ao Procurador Geral da República mediante mandato judicial em caso de processo disciplinar, administrativo ou criminal contra a pessoa do declarante.
Se o Presidente da República pode sempre declarar os seus bens ao Procurador Geral da República a questão que se coloca é a quem este deve declarar os seus bens uma vez que está igualmente obrigado a fazê-lo? Interpretação lógica sugere que o Procurador Geral da República faça presente a sua declaração junto do Presidente da República na qualidade deste ser seu mandante na concretização das suas competências como o mais alto magistrado da Nação. E efectivamente a Lei responde em concordância com o raciocínio lógico nos mesmos termos em que impõe a entrega a entidade que exerce o poder de direcção acima referido. Assim, ocorrerá uma relação quase desnecessária em que o Procurador Geral da República faz presente a sua declaração de bens ao Presidente da República e este devolve-lo para depositar a própria declaração de bens.
Em matéria de prazos, a Lei determina que a declaração seja presente ao superior hierárquico (entidade com poder de direcção, superintendência ou tutela) até 30 dias após a tomada de posse ao cargo nomeado ou eleito que obriga a declaração de bens e este remete no prazo de 8 dias ao Procurador Geral da República, sob pena de sanções. A Lei parece sugerir que os deputados o façam junto do Presidente da Assembleia Nacional e que este remeta as respectivas declarações de bens ao Procurador Geral da República, que os juízes remetam as suas declarações de bens ao Venerando Juiz Presidente do Tribunal Supremo, que os Procuradores façam depósito ao Procurador Geral da República por intermédio dos procuradores superiores na respectiva linha de hierarquia, que os Administradores Municipais o façam junto do correspondente Governador da Província; que os Ministros de Estado, os Ministros ou que os Secretários de Estado vertam as suas declarações de bens em funil para o Presidente da República, embora as relações de hierarquia em todo o sistema público devam ser interpretadas em harmonia com o novo modelo de Administração do Estado e do sistema de hierarquias inspiradas a partir da Lei Constitucional vigente.
Vale dizer que a entrada em vigor da Lei da Probidade Pública encontrou o grosso dos potenciais declarantes em manifesto atraso, o que retira a obrigação de declarar nos prazos legais. E é certo que quaisquer outros prazos estabelecidos contra a disposição da Lei tornam-se ilegais. Dai que faz sentido mas não é sancionável, o prazo que a Procuradoria Geral da República estabeleceu para a entrega dos envelopes lacrados contendo as declarações de bens por parte de agentes públicos que tomaram posse antes da vigência da Lei da Probidade Pública. Dito de outro modo, os agentes públicos nestas condições podem sempre fazer a declaração de bens fora dos prazos legais visto que as sanções não se lhes aplicam.
Apesar do esforço do legislador em tornar escorreita a interpretação da Lei ela não deixa de emitir luzes pouco nítidas desenhando zonas acinzentadas para uma clara e coerente interpretação. Para responder a esta e demais questões bem como a integrar as lacunas desta Lei, um regulamento é necessário até para tornar decritiva a declaração de bens. Até lá a Assembleia Nacional pode sempre interpretar a Lei em resposta as preocupações que ela levanta (art.º 44º). Juízos de valores a vazar sobre o processo de declaração de bens remete-nos a percepção da necessidade dos membros das mais altas esfera do poder do Estado de “oficializar” os primeiros ricos angolanos encontrados no seu círculo, independentemente da origem das fortunas para que a classe de ricos emirja na realidade angolana e se concretize uma verdadeira estratificação social com base económica e financeira e num futuro próximo o capitalismo de angolanos seja um facto. Pois que, se por um lado a intenção da Lei é acabar com o enjoativo ambiente de abusiva promiscuidade cruzando gestores públicos e património do Estado que tem enterrado o país num enorme foço de corrupção, por outro lado, as suas insuficiências e lacunas acabam por fazer gorar os esforços tendentes a “urbanização” da consciência do agente público remetendo a Lei na categoria de espécie normativa facilitadora do enriquecimento ilícito. Daí vem a inoperância efectiva desta Lei que é até reforçada pela existência de condições materiais que prevêem a sua impossível eficácia como o clientelismo promovido pelo próprio Estado quando condiciona o bem-estar dos titulares de cargos públicos com a doação de viaturas, casas, viagens sem custos visíveis para o seu beneficiário para além da incapacidade dos salários públicos evoluir a situação económica e patrimonial do agente público. De qualquer modo, é de elogiar a escolha da espécie normativa: Probidade Pública como terminologia sonante para atrair as atenções dos cidadãos para uma nova era na relação entre os agentes públicos e o dever ou património do Estado.