No mercado das relações humanas e sociais, a expressão da palavra e a exposição do pensamento são as mercadorias mais preciosas!
sexta-feira, 20 de dezembro de 2013
AS MANIFESTAÇÕES EM ANGOLA: ACTUAÇÃO ILÍCITA DAS AUTORIDADES VERSUS LEGITIMIDADE DOS MANIFESTANTES - Albano Pedro
Seria desnecessário dizer que, a luz da Lei Constitucional – LC (o legislador prefere Constituição da República de Angola) as manifestações não carecem de quaisquer autorizações. Sejam de autoridades administrativas, policiais ou de quaisquer outras. Nem mesmo o Presidente da República como mais alto magistrado do Estado (alguns preferem Nação porque entendem que a sua soberania tem origem directa no voto popular) tem essa prerrogativa legal. Isto é bem claro no enunciado constitucional: «1. É garantida a todos os cidadãos a liberdade de reunião e de manifestação pacífica e sem armas, sem necessidade de qualquer autorização e nos termos da lei. 2. As reuniões e manifestações em lugares públicos carecem de prévia comunicação à autoridade competente, nos termos e para os efeitos estabelecidos por lei» - n.º1 e 2 do art.º 47.º da LC. E a clareza, diz a boa doutrina, dispensa interpretação (ubi claris non fit interpretatio).
Entretanto, devido a persistência de certos comportamentos marginais na observância da lei, nos obrigamos a veicular um breve catecismo jurídico para sublinhar que a liberdade de reunião e de manifestação é uma liberdade constitucional e por isso perderemos algum tempo a descrever alguns dos seus contornos mais abaixo. Felizmente foi consagrada pela justeza das ideias de legisladores que escaparam certamente da censura técnica que sempre esteve virada para as questões ligadas a organização e funcionamento dos poderes políticos. Tal como se encontra, esta liberdade foi consagrada certamente por alguma distracção técnica daqueles que hoje entendem interpretar esta disposição de uma outra maneira (no fundo da maneira como sempre quiseram). É tecnicamente desgastante, explicar os meandros legais das manifestações. Alias, boa parte dos juristas interessada em ambiente de pleno exercício de cidadania já opinou sobre isso e as opiniões jamais foram divergentes por estarem de acordo com a mais honesta doutrina e com a mais escorreita das interpretações possíveis deste enunciado normativo de cariz constitucional.
As liberdades representam o grau mais alto do exercício dos direitos numa sociedade e são os únicos instrumentos de que os cidadãos dispõem contra a pressão dos agentes, serviços e órgãos do Estado exprimindo por meio delas os chamados direitos naturais e inalienáveis sem os quais os indivíduos estariam apenas livres de consciência. Não é por acaso, que na sistemática constitucional as liberdades estão em primeiro lugar (Direito a vida, integridade pessoal, identidade, privacidade, intimidade, família, casamento e filiação, liberdade física e segurança pessoal, de expressão e de informação, de consciência, de religião e de culto, criação cultural e científica, liberdade de imprensa, residência, circulação e emigração, reunião e manifestação, associação e sindical, direito a greve, etc.). Por elas que existem as garantias constitucionais (inviolabilidade do domicílio, da correspondência e das comunicações; proibição de tortura e de tratamentos degradantes, proibição do lock-out e da pena de morte, etc.) como mecanismo de protecção contra o próprio Estado (as garantias são para serem exercidas contra as autoridades públicas). Pelo carácter estritamente pessoal ou individual das liberdades é que o seu exercício representa a vigência e a protecção dos direitos humanos numa sociedade. São as liberdades que dão forma aos direitos humanos tal como ouvimos com recorrência pelas forças da sociedade civil. Já os direitos strictu sensu são menos importantes para a liberdade dos indivíduos. Eles são atribuídos pelo Estado e normalmente servem para cumprir a finalidade do próprio Estado; da colectividade (direito a habitação, saúde e protecção social, julgamento justo e conforme, direito ao trabalho – inclui a ideia de liberdade por estar ligada a dignidade humana, direito do consumidor, direito ao ensino, cultura e desporto, etc.). Não sendo essencialmente destinados para os indivíduos como tais (servem para promover a ideia de igualdade e de harmonia social em prol da segurança e do desenvolvimento de todos. Os direitos strictu sensu definem as opções politicas, económicas, culturais e sociais de um Estado). Eis a razão da coexistência triádica dos conceitos de Direito, Liberdade e Garantia no âmbito dos direitos fundamentais. É por isso (já o dissemos numa entrevista radiofónica) que o exercício das liberdades fundamentais é o mais fiel dos barómetros para mensurar o grau de abertura política das sociedades. Pois, determinam a situação política efectiva dos Estados e da posição real dos detentores do poder em relação aos governados. Mais são exercidos e aos Estados se reconhecem aberturas democráticas e protecção dos direitos humanos, mais são reprimidos e aos Estados se reconhecem instituições opressoras e inibidoras do exercício dos direitos humanos nascendo desta forma os conflitos sociais que a mais das vezes estimulam as chamadas reformas violentas dos poderes públicos. E a razão é simples, os Direitos podem ser declinados. Afinal são do interesse do próprio Estado. Mas não as liberdades. Estas pertencem aos indivíduos e representam a sua identidade social sem os quais são meros instrumentos ao serviço da vontade dos detentores do poder político. Sendo parte intrínseca da individualidade dos cidadãos elas representam a própria ideia de DIGNIDADE HUMANA. Não existe outra base de avaliação da dignidade humana senão o exercício pleno das liberdades constitucionais. Daí que a sua restrição total (mesmo até parcial) ameaça a consciência social do individuo provocando a perda de identidade remetendo-o ao estatuto de coisa ou escravo.
As liberdades só podem ser restringidas (condicionadas até) por via da lei, diz a LC (art.º 57.º, 58.º). Não discricionariamente. A LC determina que a suspensão das liberdades só acontece em caso de guerra (entre nós aconteceu nos idos anos 80 com recolher obrigatório e outras medidas repressivas), em caso de estado de sítio e de emergência (estes devem ser previamente declarados nos termos da lei correspondente). Quanto a restrição das liberdades apenas a LC pode prever. Não qualquer outra lei. Em resumo, nem mesmo a Lei das Reuniões e Manifestações pode restringir as liberdades constitucionais.
A LC fala no exercício das liberdades conforme a lei correspondente. Há uma remissão formal e material desta liberdade no sentido em que a lei ordinária deve não só prever como também estabelecer o modo de exercício. Nunca proibi-lo, atenção aos incautos. Entretanto, para as reuniões e manifestações o ordenamento jurídico angolano regista um incidente. Por ocasião da entrada em vigor da nova LC a Lei n.º 16/91 de 11 de Maio – Lei Sobre o Direito de Reunião e de Manifestação, tornou-se inconstitucional (e como tal ilegal) na parte em que restringe, limita ou suspende o exercício das liberdades nelas previstas. Qualquer proibição com base nessa lei resulta em pura e gratuita violação da LC. Esta lei precisa ser revisada e ajustada tal como a maioria das leis ultrapassadas pela letra e espírito constitucional vigente. Enquanto não acontecer jamais devem ser aplicado nos aspectos aqui referenciados e noutros que violam a liberdade de reunião e manifestação. Sobre as liberdades e seus contornos legais estamos conversados e consideramos aula dada para que nota alguma novidade nessa questão.
Destarte, o problema que se põe em relação a percepção da ilegalidade das manifestações e a sua proibição pelas autoridades públicas não está no ordenamento jurídico, mas nas conveniências políticas que os momentos de manifestações impõem aos operadores institucionais atreitos ao Estado. É esse o problema que em boa verdade inutiliza qualquer debate técnico-jurídico a este respeito. É de notar que a liberdade de reunião e de manifestação compreende na verdade duas liberdades como a letra da lei expressa inequivocamente. Trata-se da liberdade de reunião, qualquer que seja (no escritório ou consultórios com os nossos clientes ou empregados, as refeições em grupos nos refeitórios, etc.). A reunião relevante e que carece de ser informada as autoridades é aquela que ocorre ao público. V.g: os moradores de um condomínio ou agregado residencial quando entendem encontrarem-se fora dos espaços compreendidos pelo conjunto dos domínios residenciais; a concentração de jogadores no estádio de futebol e outros espaços públicos, os grupos corais religiosos ou artísticos concentrados e quaisquer outras concentrações de gente em locais públicos em que estejam a tratar de assuntos de interesse particular e não visam dirigir a colectividade (ao povo em geral ou as autoridades públicas) quaisquer mensagem. Até mesmo um encontro de amigos para simples diversão desde que aconteça em lugar público. São exemplos de reunião que escapam a percepção das autoridades que nunca entendem ser necessárias quaisquer comunicações quando ocorrem. Já as manifestações diferenciam-se das reuniões por pretenderem servir de meio para dirigir alguma mensagem (descontentamento ou satisfação) ao resto da população ou às autoridades públicas. Os exemplos que também exorbitam o conhecimento das nossas autoridades públicas são vários e frequentes. Os cortejos de casamento ou funeral são os mais relacionados com a cultura dos povos e são protegidos pela própria ideia de coexistência social. As corridas e jogos públicos de atletismo, ciclismo e outros desportos visando demonstrações públicas; as marchas de populares concentrações nas vias públicas tenham elas os objectivos que tiverem – os adeptos de clubes desportivos que se dirigem ou abandonam os estádios desportivos em grupos, as caravanas em veículos ou apeadas, etc. Carecem de ser informadas porém nunca proibidas. E porque devem ser informadas? Porque as autoridades administrativas devem accionar as forças da ordem pública para acautelar quaisquer incidentes e acidentes que resultem em danos humanos ou patrimoniais, particulares ou públicos apurando e detendo os responsáveis pelos mesmos. É a única razão da comunicação. E por essa comunicação é que se as forças da ordem pública não controlam a manifestação devidamente comunicada tornam-se responsáveis, por omissão, dos danos que ocorrerem durante as manifestações. Essa parte escapa às autoridades. O facto é que se Polícia Nacional, devidamente informada, não exerce o seu papel de garante da ordem no decorrer de uma reunião ou manifestação leva a responsabilização do Estado por todos os prejuízos que advirem da sua omissão ou da sua acção (quando seja ela mesma a provocadora dos danos por excesso de uso de força ou simples falta de zelo). Os responsáveis das manifestações só assumem os danos decorrentes da acção dos manifestantes quando contrariam as autoridades policiais investindo ilegalmente contra as suas posições. Apenas nestes casos e não noutros que a pura discricionariedade das pessoas arbitrar.
É por isso que a PN é legalmente responsável pelos danos humanos e materiais ocorridos no sábado passado na sequência da manifestação impedida convocada pela UNITA (art.º 75.º - LC). Na qualidade de agentes do Estado assumem a responsabilidade civil (reparação dos danos globais), criminal (os indivíduos que actuaram em nome da corporação provocando perdas em vidas humanas, descaminho ou destruição de bens devem ser presos e/ou multados (nos casos que essa medida penal é possível) no seguimento de um processo de responsabilidade criminal. A própria PN deve promover processos disciplinares para os mesmos agentes. Assim, a brutalidade exercida pela PN contra os manifestantes pacíficos importa responsabilidade civil, criminal e disciplinar do próprio Estado – através da PN - e seus agentes. O caso do soldado da UGP que atirou contra o cidadão Manuel ganga que foi a enterrar na quarta-feira deve ser tratado na mesma linha de responsabilidade criminal e a sua corporação obriga-se a reparar os danos patrimoniais. Pois, o Direito angolano não admite sequer a possibilidade de ameaça da vida. Quem o faz é criminalizado sofrendo as consequências. É por isso que a vida é o único bem cuja acção involuntária (falta de vontade ou intenção) atentatória não desresponsabiliza o seu autor. Querendo ou não, se matou via na cadeia e toma a pena correspondente. E os casos de morte nem sequer admitem liberdade provisória. A LC considera-os crimes hediondos e violentos (art.º 61.º) e atesta que «São imprescritíveis e insusceptíveis de amnistia e liberdade provisória, mediante a aplicação de medidas de coacção processual: a) o genocídio e os crimes contra a humanidade previstos na lei; b) os crimes como tal previstos na lei.». Por isso, longe de lamentar pura e simplesmente as mortes ocorridas sem denunciar as medidas a tomar contra os agentes criminosos, o porta-voz da PN devia anunciar a detenção imediata e incondicional dos seus autores e responsabilizá-los criminalmente. Pertençam a própria corporação ou a outra qualquer destacada para inviabilizar a manifestação no suposto dever de ordem pública. Dixit.
sexta-feira, 1 de novembro de 2013
O TRIBUNAL CONSTITUCIONAL E A LIMITAÇÃO DA FISCALIZAÇÃO POLÍTICA DO EXECUTIVO PELA ASSEMBLEIA NACIONAL - ALBANO PEDRO
Corre alguma tinta sobre a “resistência” do Tribunal Constitucional (TC) em reconhecer a capacidade da Assembleia Nacional em fiscalizar politicamente o Executivo propondo um conjunto de impedimentos na forma de decisão judicial, infelizmente produzida como um acórdão. Perante este dramático quadro estabelecido ao nível da soberania do Estado não podíamos deixar de debitar alguma opinião em se tratando de um assunto de capital importância entre os angolanos. É pois certo que a luz dos preceitos estabelecidos na Lei constitucional – LC (o legislador prefere Constituição da República) vigente, não faz qualquer sentido que se vejam membros de Governo tal como aconteceu no passado. O Governo é unipessoal ao contrário do Governo colectivo ou colegial corporizado pelo antigo Conselho de Ministros. Hoje o Conselho de Ministros não passa de um mero órgão de consulta através do qual o Presidente da República (PR) enquanto Titular do Poder Executivo reúne com os seus colaboradores com funções meramente administrativas e como tais dispensados de quaisquer responsabilidades políticas (ser membro de governo implica responsabilidade política). Como também, é verdade que a luz nos novos preceitos constitucionais urge a harmonização político-constitucional da organização administrativa do Estado e dos respectivos diplomas legais. O que daria lugar a necessidade de estabelecer equivalência entre os actos normativos presidenciais e os actos normativos do Governo no âmbito do antigo Conselho de Ministros. Não é pois justo que se mantenha a confusão dos chamados Decretos-lei quando de facto já não existem tendo sido substituídos formal e materialmente pelo Decretos Legislativos Presidenciais. Ao não estabelecer as equivalências hierárquicas entre os actos normativos do extinto Governo colegial (Conselho de Ministros) e os actos normativos do titular do Executivo correspondentes, ainda que em normas de carácter transitórias, o legislador constitucional pecou redondamente e as consequências são as dificuldades de interpretação da LC que disto decorrem.
O que prima facie transparece no exercício legislativo da Assembleia Nacional é a ignorância certeira e culposa sobre a falta de consciência da consagração de uma verdadeira “Ditadura constitucional” (historicamente fala-se em monarquia constitucional como forma mais suave) que os constitucionalistas angolanos afectos ao regime preferiram denominar “suis generis” ou atípica. Pois, os deputados, ao entenderem abordar, através do seu Regimento Interno, os “assim chamados” membros do Governo, ignoraram por completo o entendimento hermenêutico claro da LC vigente que deixou de consagrar um Governo colegial ou um verdadeiro Governo, se quisermos. Esqueceram (ou têm medo de reconhecer?) que em Angola vigora um sistema de Estado não-governamental onde os actos pretendidos como executivos são emanados de uma entidade unipessoal (PR), sem dignidade soberana (porque não é eleito pelo povo) como não acontece em mais parte nenhuma do mundo constitucional moderno. Pior do que tudo, foram os próprios deputados na veste de legisladores constituintes que o consagraram (falo sobretudo da responsabilidade das bancadas parlamentares que transitaram para o novo mandato legislativo). O que é grave. Também, é verdade que a LC não prevê de modo expresso quaisquer poderes para que o Executivo, no caso o seu titular, seja interpelado pela Assembleia Nacional. Mas por que carga d’água o TC tem de omitir propositadamente os actos implícitos da LC que personalizam o chamado espírito da lei? Quando o TC reconhece que no âmbito da fiscalização política a Assembleia Nacional tem competência, inter alias, de «…receber e analisar a Conta Geral do Estado e de outras instituições públicas que a lei obrigar, podendo as mesmas ser acompanhadas do relatório e parecer do Tribunal de Contas, assim como de todos os elementos que se reputam necessários à sua análise, nos termos da lei.» (alínea a) do art.º 162.º - LC) não estará a reconhecer a capacidade dos deputados em “chamar” o titular do executivo para “dar explicações” sobre tais matérias? E se as matérias ainda que especializadas demandarem uma apresentação multidisciplinar envolvendo vários outros assuntos (matérias de várias departamentos do Estado) para a sua melhor explicação, estará a fazê-lo fora do espírito da Lei? Pretende, o TC, que a Assembleia Nacional obtenha as informações do Executivo sem as poder examinar, designadamente por perguntas, inquéritos ou audições tal como sugerem um exercício eficaz dos poderes de fiscalização política? Pretende, enfim, o TC, reconhecer meios-poderes a Assembleia Nacional? É claro que para os espíritos mais fracos como os nossos não é difícil perceber que entre «…todos os elementos que se reputam necessários…» constitucionalmente consagrados estão a interpelação, a audição e todos os outros achados necessários para uma fiscalização política eficaz do Executivo pela Assembleia Nacional. Não estão na LC? (responderia o TC). Que os juízes fizessem a interpretação correctiva do texto magno. É judicialmente possível e não é tecnicamente difícil.
O que está subjacente na decisão do TC é a triste e embaraçosa situação de que «o padeiro pode utilizar tudo o que for necessário para fazer o pão, segundo a LC. Porém quando este elenca os ingredientes para o fabricar, o TC acha que devia limitar-se a apenas alguns por não reconhecer a existência dos restantes. Então como é que o padeiro vai fazer o pão?». Ironicamente o TC pretende desviar para a poça das meras faculdades a questão normativa da Assembleia Nacional persuadindo-nos com o reconhecimento do principio das relações de colaboração, cooperação e solidariedade institucional por meio do qual o Presidente da República pode “aceitar o convite, se quiser” para aparecer diante dos deputados e justificar as dúvidas correspondentes, rematando que o Governo unipessoal não é responsável politicamente perante o parlamento, quando na verdade essa questão: a de se interpelar o executivo para “meras explicações” em nenhum momento constitucional do mundo moderno se configura como uma responsabilidade política propriamente dita. Afinal, a responsabilidade política em que o TC pretende escudar o PR implica a capacidade da Assembleia Nacional de aprovar moções de censura que levem a dissolução do Governo e não simples interpelações.
O que a técnica hermenêutica sugere tanto a interpretação da lei quanto a sua aplicação, é que quando um preceito legal não colida com o espírito da Lei seja ela consagrada no ordenamento jurídico e como tal aplicada aos factos a ela subjacentes. Ao que parece e se percebe sem ciência, o esforço normativo dos parlamentares em nenhum momento colide com o espírito da lei, mesmo no nível constitucional. As únicas colisões identificadas pelo TC residem no âmbito gramatical e como tais insusceptíveis de traduzirem verdadeiras colisões heremenêutico-jurídicas. Com tamanho erro judicial bem patente, decorrente de uma hermenêutica forçada, a peça de causa parlamentar e de proeminência judicial retira valiosos méritos à decisão do TC. Através dela se percebe que o TC não cura de avaliar os actos constitucionais implícitos, se bastando a um gratuito legalismo por meio do qual pretende perceber apenas actos expressos na gramática da lei. Pois, quando a LC estabelece «…todos os elementos que se reputam necessários…» para o TC, tais actos não incluem a interpelação e outros do próprio Titular do Executivo ainda que o faça por delegação de poderes aos seus colaboradores. Quer infelizmente fazer perceber que entre tais actos implícitos a Assembleia Nacional não pode estabelecer quais são os que acha conveniente para o seu exercício no âmbito de uma a interpretação autêntica, já que se a Assembleia é que legisla ninguém melhor que ela para interpretar a própria lei.
Na verdade, o que a Assembleia Nacional procurou fazer com a legislação das formas e modos de abordagem do executivo foi proceder a chamada interpretação autêntica da lei já que foi ela mesma que a positivou, ainda que no âmbito de um poder constituinte formal ou derivado. O que, sumo rigore, o TC devia reconhecer improcedente é a confusão feita entre o Governo colegial e o Titular do Poder Executivo não permitindo que os membros do “staff” do PR assumam responsabilidades políticas tal como o texto normativo dos deputados sugere. Para este particular, não custava nada ao TC uma interpretação correctiva propondo os actos normativos devidos ao procedimento legislativo da Assembleia Nacional, desviando a competência passiva de tais membros para a pessoa do próprio PR na qualidade de Titular do Executivo. A semelhança do que fez (ainda no âmbito das competências do Tribunal Supremo) sobre a polémica que girava a volta da questão de saber quem era o chefe do executivo por altura da consagração da figura do Primeiro-ministro (o famoso acórdão do TS). Quando ao invés de recomendar o aperfeiçoamento das normas, reprova-os categoricamente, deixa transparecer uma encomenda política que mal afama o prestígio do TC. Por isso mesmo, em nenhum momento da sua decisão, o TC devia considerar o erro gramatical que levou os deputados a confundir o Titular do Executivo com os seus colaboradores. Devia, se estivesse imbuído de espírito de justiça, propor uma interpretação correctiva deste preceito substituindo os colaboradores pelo seu chefe: o Titular do Executivo.
O TC devia reconhecer a subtil necessidade dos deputados em verem a LC corrigida no aspecto que tange ao esvaziamento grosseiro das competências políticas da Assembleia Nacional em matéria de fiscalização do Executivo e com isso emprestar um exercício hermenêutico-constitucional mais consentâneo com um Estado de Direito e Democrático onde o sistema de Governo esteja mais próximo dos modelos vigentes, seja Presidencialista, seja semi-presidencialista ou parlamentarista. O TC deixou escapar a oportunidade de fixar definitivamente na LC o modelo governamental, devolvendo a preocupação correctiva da situação de desidentificação do modelo político vigente a própria Assembleia Nacional. Contudo, se não fosse pela necessidade de se alcançar o espírito da lei que o TC procura obliterar com essa peça judicial, para que serviria o recurso a fiscalização preventiva ou sucessiva das leis quando do ponto de vista gramatical as normas são claras? É pois, na sua mais sublime função de interprete que o TC falha e confunde deliberadamente a fiscalização política pela fiscalização jurídica fazendo com que através desta (seja por fiscalização abstracta preventiva – art.º 228º, seja por fiscalização abstracta sucessiva – art.º 230º) limite gravemente as competências políticas da Assembleia Nacional constitucionalmente consagradas. Ou seja, o TC, no uso do poder de fiscalização jurídica, ainda que de iniciativa obviamente externa, limita grosseiramente um poder que pelas suas características e natureza tornam eficaz os actos de fiscalização do Executivo pelos parlamentares inscritos na própria LC. O que é o mesmo que tomar os actos políticos pelos jurídicos. Dixit.
segunda-feira, 14 de outubro de 2013
SOBRE A ENTREGA DE APARTAMENTOS NA CIDADE DO KILAMBA - Albano Pedro
O processo de entrega de apartamentos na cidade do Kilamba para a segunda fase anunciada pela SONIP, na qualidade de concessionária imobiliária do Estado, fora os casos em que é demandada a necessária compreensão dos beneficiários por razões óbvias, tem vindo a registar situações pouco agradáveis aos clientes. De uma maneira geral, verifica-se a entrega de apartamentos de tipologia diferente daquelas a que os clientes se candidataram, tendo inclusive já pago os respectivos montantes. Em consequência, os beneficiários estão a ser obrigados a aumentar os montantes sobre o preço inicial acordado como condição para receberem as chaves, tratando-se de apartamentos mais caros do que o inicialmente escolhido; ou a terem retido os montantes resultantes da diferença entre o preço do apartamento escolhido e o preço do apartamento entregue, tratando-se de apartamento mais barato do que o inicialmente escolhido.
É claro que do ponto de vista jurídico a questão, embora única na perspectiva factual (trata-se de incumprimento do vendedor) pode ser vista sob dois prismas. Na vertente da entrega de apartamento diferente daquele previamente pago, a violação do vendedor decorre do acto qualificado como entrega defeituosa da coisa (no caso, apartamento ou imóvel). Na vertente em que os beneficiários estão a ser forçados a pagar mais do que previamente foi acordado em função do apartamento escolhido, o caso é qualificado como alteração unilateral do contrato (porque a vontade é somente da SONIP, quando a lei impõe que a alteração do contrato deve ocorrer por acordo das parte) decorrente de coação moral (as pessoas estão a ser obrigadas a pagar a diferença sob pena de perderem a possibilidade de acesso ao apartamento). Na verdade trata-se de olhar para a uma única moeda escolhendo o campo de visão, se incide sobre a face ou sobre a cora; porém, é uma questão de interesse técnico que apenas aos juristas e advogados interessa esmiuçar. Para os clientes o problema é o mesmo: incumprimento por parte do vendedor. Por isso, estamos perante uma relação anormal entre o vendedor e o comprador, passível de ser tratado tanto pelas normas de contratos quanto pelas normas de consumo. Para este último caso, os organismos ligados a protecção dos consumidores (INADEC, por exemplo) são chamados a intervir, uma vez que se trata de um caso suficientemente público para ser denunciado de modo individual e direccionado. E a anormalidade da relação torna-se mais evidente quando o vendedor no uso de uma certa coação moral força o comprador a adquirir imóvel diferente sob pena de perder os montantes já depositados na conta do vendedor a favor da compra previamente acertada.
É bom que fique claro, que a apreciação da responsabilidade do vendedor aqui vertida envolve a DELTA Imobiliária na qualidade de procuradora da SONIP. Ou seja, toda a responsabilidade assacável a DELTA Imobiliária é directamente tributada a SONIP por quanto esta é a mandante daquela empresa que no caso exerce meras funções de mediadora imobiliária como se percebe dos contratos por ela firmados. Desde logo, a questão das vicissitudes judiciáveis decorrentes das aquisições devem ser vertidas contra a SONIP como entidade responsável pelos danos eventuais ou reais deste processo. É uma orientação advocatícia do problema a que os clientes nessa situação não devem descartar para melhor tratarem da situação que os envolve.
O incumprimento do vendedor, decorrente da entrega defeituosa ou da alteração unilateral do contrato é inadmissível por lei e importa responsabilidade civil correspondente. Ou seja, a violação do contrato por parte da SONIP (a DELTA Imobiliária está incluída) obriga a reparação de danos causados aos compradores beneficiários (já o dissemos numa das edições anteriores quando tratamos do caso das vendas de apartamentos nesta mesma centralidade).
É claro que existe o justo receio da parte dos clientes sobre os atrasos dos processos que venham a ser intentados contra a SONIP e a perda de oportunidade de acederem aos apartamentos. Até porque, a SONIP poderá colocar-se na condição de já não ter efectivamente unidades imobiliárias disponíveis por altura da decisão do tribunal favorável a indemnização por reintegração específica (entrega do apartamento), caso seja essa a decisão do tribunal, embora remota a luz da modalidade promissória do contrato em causa. Na mais suave das hipóteses, a SONIP obriga-se a restituir em dobro os montantes depositados pelos clientes, sem prejuízos de reparação de outros danos (eventualmente morais). Está é das soluções mais patentes pela natureza própria do contrato promessa com sinal como tem vindo acontecer ao longo do processo de vendas na modalidade resolúvel. E sinceramente, não satisfaz as pretensões do cliente que afinal quer o apartamento e não o dinheiro de volta. Por isso, o mais prudente procedimento dos clientes, deve ir no sentido de aceitarem as condições colocadas pelo vendedor num primeiro momento e logo a seguir intentar um processo judicial visando a justa indemnização. Pois, apesar de receber o apartamento, o cliente pode sempre proceder a interposição de um processo visando a justa indemnização pelo incumprimento do vendedor. Assim, o cliente obtém o apartamento e tem os danos patrimoniais e morais reparados recebendo a justa indemnização, leve o tempo que levar o processo no tribunal. Quem sabe se com a indemnização, o cliente ressarcido não vem a pagar as parcelas devidas ao pagamento total do apartamento no futuro?
Este mesmo procedimento, deve ser adoptado pior aqueles que tendo pago o apartamento num devido momento apenas receberam tempos significativos depois. A razão é simples: se o pagamento diz respeito a rendas mensais (em caso do processo de compra vir a ser interrompido por qualquer razão – porque neste caso, já o dissemos no outro artigo, os montantes depositados como parcelas de pagamento convertem-se em parcelas de rendas mensais) é justo que o montante cubra as rendas correspondentes aos meses em que o apartamento ficou efectivamente ocupado pelo cliente. O que acontece com a entrega das chaves. O que esta a passar-se é que os apartamentos, mal entregues ou não, tem as rendas pagas para um ano e entretanto a entrega das chaves estão a ser feitas nos últimos meses deste mesmo ano. Como fica os meses já vencidos caso o cliente não possa vir a pagar a próxima prestação anual? Dai ser prudente para estes clientes a interposição, para já, de um processo judicial mesmo com as chaves do apartamento em “mãos”. Quanto aos clientes que se candidataram a apartamentos diferentes e estão a ser obrigados a pagar diferenças monetárias pelos novos apartamentos, se não tiverem dinheiro não é problema. Por agora ficam sem os apartamentos, é claro, mas podem revirar a situação mediante um processo judicial contra o vendedor. Até ser arbitrada a sentença quem sabe se já não estará concluída a nova fase da urbanização? Aí, o cliente recebe o apartamento devido se esta for a decisão do tribunal, avaliadas que forem os justos contornos do pedido. Dixit.
A QUEBRA DO SIGILO BANCÁRIO: O QUE É, QUANDO E COMO ACONTECE - AS CONSEQUÊNCIAS JURÍDICO LEGAIS
Albano Pedro
Um texto publicado pelo articulista Cláudio Silva ao Club-K, a propósito da questão da acusação sobre a violação do sigilo bancário pela UNITA que infestou a imprensa muito recentemente, trouxe a baila a questão de saber em que momento ou tempo jurídico-legal é que acontece a quebra do sigilo bancário. No texto, o articulista, identificado como Mestre em Finanças, depois de uma esforçada e plausível abordagem sobre o fenómeno da fraude financeira internacional e a sua relação com os instrumentos legais permitidos para o seu combate, deixou vazar a ideia de que a quebra do sigilo bancário, era, nos dias de hoje, e a luz da recente reforma legal, um exercício ecuménico (ou seja, de incidência subjectiva activa abstracta) permitido no âmbito do interesse público, transparecendo a ideia de que qualquer um num suposto interesse público pode lançar mãos a este instrumento sem quaisquer consequências jurídicas negativas que possam recair em seu prejuízo.
Benja Satula, eminente criminalista orientado ao domínio financeiro e produto da nova vaga de juristas angolanos, deixou claro, num entrevista radiofónica, os contornos criminais que envolvem a utilização indevida das informações bancárias longe do vontade do interessado directo que para o caso é um titular de uma conta bancária. Com o posicionamento lúcido deste jurista, ficou evidente que a questão do sigilo bancário pode levantar problemas de interpretação em sectores intelectuais pouco familiarizados com assunto, menos entre juristas atentos. Aliás, essa foi a conclusão de um amigo no facebook a propósito de um debate levantado sobre a quebra do sigilo bancário protagonizado por responsáveis da UNITA contra Mfuka Muzemba. Ou seja, se o problema é claro no domínio jurídico não pode sê-lo no domínio financeiro e para os seus especialistas por uma razão que vale deixar patente: o sigilo bancário tem contornos jurídico-legais cuja compreensão requer uma análise sistemática ou inter-normativa que chama em depoimento diplomas legais que atravessam vários domínios jurídicos, nomeadamente o Direito Civil, Direito Fiscal, Direito Financeiro Interno ou Internacional, Direito Bancário, Direito Penal entre outros. Esta multidisciplinaridade requer uma percepção fenomenológica que apenas um jurista, ou seja, um técnico destro em questões jurídicas, pode tratar com alguma intimidade. Afinal, a hermenêutica jurídica pode estar ao alcance de qualquer um tratando-se da interpretação gramatical e/ou histórica. Porém, não estará ao alcance de leigos em Direito a interpretação sistemática da lei, colocada entre os últimos instrumentos hermeutico-formais que permitem uma clara leitura da norma jurídica e por conseguinte sustentam a actividade de consultoria jurídica. É monopólio de quem está exclusivamente inclinado nas questões jurídicas sem desprimor de quem venha a ganhar habilidades no domínio, independentemente do ramo de formação. Doutra forma não haveria diferença nenhuma entre um jurista e um técnico ligado a um outro ramo de ciência ou técnica quanto a interpretação de uma norma jurídica. Porque todos podem ler e conhecer o conteúdo gramatical de uma norma. Tal como todos podem compreender o contexto histórico em que a norma foi redigida e positivada. Assim se compreende que através destes recursos hermenêuticos elementares o legislador entenda que a publicidade da lei seja o critério suficiente para o seu conhecimento pelos cidadãos seus destinatários, não desculpando por isso o seu desconhecimento depois da sua entrada em vigor (art.º 6.º - Código Civil – CC). Nesta perspectiva, basta que se seja um homem médio (critério justiniano de bonus pater família atribuído ao cidadão com uma capacidade racional mínima).
E foi precisamente na questão da interpretação sistemática das normas jurídicas vertentes ao sigilo bancário em que o articulista falhou redondamente a sua tentativa de persuasão analítica colocando em causa a sã compreensão sobre a ratio essendi desta figura do Direito Bancário. Por conseguinte, é neste ponto crítico em que resvalou o mérito do texto de Cláudio Silva que nos propomos a dar algum contributo para uma clara compreensão do conceito de sigilo bancário e as nuances relacionadas aos efeitos que irradia no domínio jurídico, contribuindo assim para o enriquecimento teleológico do pertinente comentário deste intelectual angolano.
O conceito de sigilo bancário vem vazado no n.º1 do artigo 59º da Lei n.º 13/05 – Lei das Instituições Financeiras (LIF) cuja interpretação a contrariu sensu da sua exaustiva redacção sugere que o sigilo bancário é o dever profissional de manter em segredo informações que assiste ao funcionário sobre os clientes em relação ao banco enquanto instituição financeira em que se encontra vinculado, protegendo o seu acesso a terceiros em relação ao cliente. No n.º2 do mesmo artigo, o âmbito do sigilo bancário revela-se como compreendendo os nomes dos clientes, as suas contas de depósitos, respectivos movimentos e operações bancárias, e o n.º 3 determina a vigência temporal do sigilo bancário estabelecendo que “o dever de segredo não cessa com o termo das funções ou serviços” tornando claro que a cessão do vinculo laboral com o banco não dá possibilidade legal para o trabalhador conhecedor de informações estabelecidas no âmbito do sigilo bancário, como vimos, exponha o seu conteúdo a terceiros. Feita análise, depreende-se que o dever de sigilo bancário recai sobre a instituição bancária; ou seja o banco tem competência subjectiva passiva negativa (ou seja está proibido de executar). Logo, a seguir no art.º 60º são elencadas as excepções ao dever de segredo profissional. Aqui falamos dos casos em que é permitida a quebra do sigilo bancário. O n.º1 estabelece que o sigilo bancário pode ser quebrado por autorização do titular da conta mediante acto escrito transmitido a instituição: fala-se em quebra voluntária do sigilo bancário; já o n.º 2 sugere que quando a quebra do sigilo bancário não seja voluntária (sendo por isso uma quebra coerciva do sigilo bancário), só pode acontecer quando as informações sejam reveladas ao Banco Nacional de Angola (a); ao Organismo de Supervisão do Mercado de Valores Mobiliários (b); ao Instituto de Supervisão de Seguros (c); para instrução de processos mediante despacho do Juiz de Direito ou do Magistrado do Ministério Público (d); e quando exista outra disposição legal que expressamente limite o dever de segredo (e).
Desde já a revelação de informações dirigidas ao BNA e outras instituições com excepção a ordem judicial, acontece no âmbito do que se pode qualificar como quebra coerciva de sigilo bancário com efeito interno em relação as instituições afins ao banco não podendo em rigor ser qualificada como verdadeira quebra de sigilo bancário uma vez que a informação assim veiculada acaba sendo igualmente protegida. Em rigor, a quebra coerciva de sigilo bancário acontece quando visa alcançar terceiros estranhos ao titular e por conseguinte ao público em geral. É desta quebra coerciva de sigilo bancário com efeito externo ou abstracto que interessa escalpelizar e que vem a propósito do caso. Esta apenas acontece, como vimos, por ordem de uma autoridade judicial. E não qualquer uma. O juiz que ordenar tem de ter a categoria de Juiz de Direito e a lei leva a presumir que do Ministério Público apenas se permite alguém com a categoria de Procurador-geral da República, desfazendo desta responsabilidade os magistrados com a categoria de sub-procuradores. A interpretação é deduzida da equivalência das circunstâncias inerentes as competências subjectivas activas positivas (capacidade de ordenar a execução), i.é, mutatis mutandis.
Por isso, defendemos que a quebra do sigilo bancário, sejam quais forem as razões, só pode acontecer mediante uma ordem de uma autoridade judicial legalmente competente em homenagem ao seu efeito externo ou abstracto, fonte efectiva de danos morais e patrimoniais do titular da conta bancária. É certo que a LIF, revoga a Lei n.º 1/99, de 23 de Abril, como resultado de exigências reformadoras impostas pelos desenvolvimentos financeiros internacionais nascidas das grandes preocupações mundiais vertidas ao terrorismo desencadeadas com o remoto 11 de Setembro de 2002 levando a uma corrida desenfreada dos estados a aderirem a instrumentos reguladores das transacções financeiras internacionais, como Cláudio Silva fez questão de panoramizar com alguma exaustão. Porém, não houve nada de novo quanto ao conceito de sigilo bancário e sua limitações na parte que diz respeito a quebra coerciva externa do sigilo bancário, que é afinal a quebra susceptível de tornar pública a informação protegida no âmbito do segredo profissional. Esta forma de quebra continua a ser monopólio das autoridades judiciais (e ainda assim da mais elevada categoria funcional como vimos) sempre que por razões processuais sejam obrigados legalmente a fazê-lo.
A quebra coerciva externa do sigilo bancário assiste a várias razões. Umas são completamente lícitas. É o caso da quebra do sigilo profissional em razão da exposição da conta do titular falecido, cujo saldo bancário entende-se necessário para efeitos de inventário do património atinente a herança em eminência de partilha entre os sucessíveis ou a necessidade de se averiguar a capacidade patrimonial do cônjuge com dever de alimentos em relação ao outro que se recusa em cumprir com as suas obrigações. Os casos de ilicitude estão fundamentalmente afunilados a fraude fiscal e ao branqueamento de capitais. Em todos os casos de quebra coerciva externa do sigilo bancário, sejam por factos lícitos sejam por factos ilícitos, tem de haver um processo judicial em curso, ainda que em fase de instrução preparatória para os casos de crime.
Em resumo, são dois os requisitos cumulativos que assistem a quebra coerciva externa do sigilo bancário: 1) que seja ordenada por uma autoridade judicial competente, 2) que haja um processo judicial em curso. Desde logo, nenhuma outra pessoa ou instituição seja pública, privada ou mista, está legalmente autorizada a proceder a quebra coerciva externa do sigilo bancário. Sobre isso não há excepção nenhuma. Assim, não colhe o argumento segundo o qual a quebra coerciva externa do sigilo bancário protagonizada pelos membros do Conselho Nacional Jurisdicional (CNJ) da UNITA contra a suposta conta bancária do Secretário-geral da ala juvenil desta organização partidária seja feita no puro e inocente interesse público.
Quanto às consequências jurídicas da violação do segredo profissional, que corresponde a prática de actos violadores do sigilo bancário a margem das prescrições normativas oportunamente analisadas acima, adverte-se que é neste particular que a questão da sistemática jurídica, em que se estatelou o conteúdo teleológico do texto do articulista em exame, é chamada a prestar o seu depoimento. Desde logo, a própria LIF remete ao Código Penal a disciplina sancionária para efeitos criminais (art.º 65.º) sem prejuízo de outras formas de sanções previstas de modo abstracto no ordenamento jurídico angolano. Este aspecto remissivo da lei restabelece o momento mais evidente da multidisciplinaridade jurídica da questão. Por isso, não basta que seja apenas tutelado criminalmente. Há violações flagrantes de direitos de personalidade tutelados no âmbito do Direito Civil (art.º 70.º e seguintes - CC) donde a responsabilidade civil vertida a reparação de danos morais (art.º 496.º - CC). Para os danos patrimoniais, que também podem se lhes anexar danos morais, surgem da responsabilidade por factos ilícitos (art.º 483.º - CC) e são avaliados mediante os prejuízos efectivos contraídos pelo titular da conta em razão da informação sobre as suas contas e os aspectos que lhe são inerentes no âmbito do segredo profissional.
Do ponto de vista subjectivo, a responsabilidade jurídica recai sobre o banco em razão da relação contratual estabelecida com o titular da conta. Porém, na relação interna causadas pelas normas laborais e sustentadas pelas relações obrigacionais comissionárias, o banco verte a responsabilidade ao funcionário que faltar com o dever de segredo profissional. Aqui, a situação é tecnicamente denominada como relação de comissão (art.º 500º - CC) onde a culpa e a mera culpa serão elementos de ponderação para a viabilidade da responsabilidade civil do funcionário em causa. Quanto a responsabilidade criminal, o titular está obstruída pela lei de demandar judicialmente o banco. As pessoas jurídicas não têm vontade própria, logo não podem delinquir ou cometer actos criminais (societas delinquere non potest). Assim, a responsabilidade criminal, ficciona a inexistência da pessoa jurídica (instituição) e ataca a pessoa física envolvida no caso. Esta ficção permite, ao titular demandar judicialmente a pessoa do funcionário, a despeito da representação legal da instituição recair em pessoa diversa (Administrador ou Presidente do Conselho de Administração). Pois, a responsabilidade criminal só recai em função do cometimento efectivo do acto pela pessoa do acusado em homenagem ao carácter individual do acto criminal.
Outrossim, a pessoa ou instituição que instigar ou causar a quebra coerciva externa do sigilo bancário poderá ser responsabilizada cível e criminalmente por arrolamentos de factos independentes do acto praticado pelo funcionário visado. Embora, em casos de crime possa vir a ser julgado como autor moral entre outras categorias subjectivas activas criminais, não fica livre das consequências próprias da violação de direitos de personalidade que em matéria penal podem causar a condenação por crimes difamação (quando a informação revelada é verdadeira, porém longe da vontade do seu titular) e/ou de calúnia (quando a informação é falsa, imputando verbi gratia ao titular uma conta bancária que não seja sua). Para estes casos, a tutela penal é prescrita pelo art.º 407.º e seguintes do Código Penal. Finalmente, a prova obtida por meios fraudulentos não pode ser apreciada em tribunal perdendo assim qualquer valor probatório que dele se possa extrair. Dixit.
A PGR E A DENÚNCIA PÚBLICA DE ACTOS CRIMINOSOS: A QUESTÃO DA POSTURA LEGAL NO ESTADO DE DIREITO E DEMOCRÁTICO - Albano Pedro
Ao longo das semanas antecedentes a comunicação social doméstica pulverizou a percepção e ao debate da opinião pública o diferendo que opôs a UNITA através do seu órgão de jurisdição e o seu militante Mfuka Muzemba, Secretário-Geral da sua ala juvenil e Deputado a Assembleia Nacional através de um contraditório alimentado por réplicas e tréplicas que transpareceu um conjunto de actos e factos acusatórios imputados as partes susceptíveis de responsabilidade criminal e civil como actos de corrupção activa e passiva, suborno, violação de sigilo bancário entre outros. Para a comunidade político-partidária tal exercício representou uma clara demonstração de abertura democrática da parte da UNITA como raramente acontece em outros partidos, incluindo o partido no poder. Há pois, a percepção centralista de Estado que vaza a ideia de que os partidos políticos são corpos paralelos ao Estado e os interesses que veiculam não são necessariamente consentâneos com o interesse do próprio Estado (interesse colectivo e difuso) e como tal os diferendos entre os seus militantes são estranhos a própria sociedade merecendo um tratamento diferenciado revestido de completa descrição numa atitude que passou a ser identificada por um adágio popular: “Roupa suja se lava em casa” numa clara homenagem a ideia monista de Estado ultrapassada formalmente em 1992.
Para a opinião pública, esta percepção sectária de filiação político-partidária foi quebrada de modo exemplar expondo um problema interno aos olhos do eleitorado destinatário último dos interesses partidários em Estados de vocação legal e democrática. Uma coragem elogiosa que certamente imputável aos militantes que tiveram a coragem de partilhar os interesses partidários com o vasto publico eleitor e que marca um dos raros momentos encorajadores da sofrível democracia angolana. E o exercício contraditório, de tão rico em factos, trouxe um conjunto de situações novas, ou pelos menos pouco habituais na praça pública como foi a polémica sobre quebra do sigilo bancário, cujos contornos jurídicos tivemos a oportunidade de escalpelizar neste espaço através de um longo comentário, entre outras questões de interesse público e particular que rechearam o conjunto do processo em análise.
Com todos os elogios que o debate pôde arrancar, pecou entretanto na forma como foi publicamente tratado. Pois, tendo sido revelado um conjunto de actos e factos imputáveis as partes e rotulados como criminosos, a imprensa não seria a única interessada em esclarecer as questões que foram levantadas e colocaram em causa o bom-nome, não só das partes directamente envolvidas directamente, como de pessoas com cargos públicos de reconhecida importância. Numa sociedade regida pelo primado da lei a revelação a público, nomeadamente pelos órgãos de comunicação social, de factos susceptíveis de incriminar as pessoas envolvidas e de revelar condutas desordeiras que arrepiam as normas de direito penal, não seria um mero exercício de liberdade de imprensa no âmbito da sua missão de satisfação de interesse público por meio da informação. Seria também preocupação do Estado procurar o esclarecimento de tais factos, sobretudo daqueles que põe em causa a sã convivência colectiva e como tais rotulados como condutas criminais de interesse público, i.é, crimes públicos.
Na verdade, o Estado dispõe de um órgão cuja missão essencial é, inter alias, o exercício da acção penal e a defesa dos direitos de outras pessoas singulares e colectivas no exercício da acção penal (art.º 189.º, n.º1 – Lei Constitucional – LC (Constituição da República de Angola segundo o legislador). E esse órgão é a Procuradoria-Geral da República (PGR) que é por sua vez constituído por outros órgãos, designadamente: o Ministério Público (MP), o Conselho Superior da Magistratura do Ministério Público e a Procuradoria Militar. É certo que a sistemática constitucional estabelece uma ordem de precedência orgânica que coloca o MP entre as primeiras enunciações normativas tratando-se de esquematizar a organização e o funcionamento da PGR, engendrando justificada confusão para quem se empresta aperceber a natureza jurídica deste órgão do Estado. Todavia, cabe ao MP o exercício da acção penal em se tratando de tutela judicial dos direitos e interesses criminalmente relevantes.
Em circunstâncias normais, a PGR teria intimado as partes em diferendo procurando arrancar delas as verdades dos factos …por meio de uma instrução processual tendente a apreciação e decisão judicial. Pois, os factos por si de interesse público foram, para agravar, veiculados por um partido político, vocacionado a gestão do Estado e um militante com funções de representante do povo, no exercício do cargo de Deputado a Assembleia Nacional. Pela denuncia do crime de corrupção activa e passiva, a PGR, através do MP, devia convocar as partes por meio de competente notificação, convidando as partes a demonstrarem as provas dos factos veiculadas em tribunal.
Há já vários episódios que demonstraram a capacidade de iniciativa do MP diante de denúncias públicas de factos susceptíveis de responsabilidade criminal, em que este órgão da PGR deu inicio a acções criminais por meio de denúncias públicas veiculadas pela comunicação social. Os exemplos completamente públicos dispensam descrição. O caso da rapariga (Mingota) que foi sujeita a mau atendimento numa das unidades hospitalares públicas vindo a falecer por manifesta responsabilidade do seu corpo clínico é um deles.
Ora, tratando-se de denúncia sobre crimes públicos como é a corrupção activa e passiva envolvendo pessoas com grandes responsabilidades políticas é completamente inexplicável a atitude de passividade do MP. Pois, arrepia a mais ínfima sensibilidade jurídica que factos criminosos de interesse público passem pelas barbas de um órgão como é o MP com toda a serenidade possível como se não estivéssemos num Estado de Direito e Democrático. Que haja uma explicação sobre a razão dessa postura, se nada estiver a ser feito em nome da legalidade. Dixit.
segunda-feira, 2 de setembro de 2013
O PODER DO ESTADO DIANTE DO INQUILINATO - Albano Pedro
A ordem de transferência dada pelo Ministério do Comércio aos armazenistas e retalhistas instalados na zona da Macambira em Luanda para a sua reinstalação na zona periférica do Benfica, não podia deixar de arrepiar a opinião pública longe dos meandros das necessidades do Estado e da imperatividade dos seus órgãos afins ao caso. Já porque se trata de uma transferência que vem a provocar um catálogo de problemas económicos e sociais que começam das próprias empresas e alcançam os clientes habituados àquela zona comercial, atravessando uma fila de interessados divisando investidores, parceiros comerciais, comissionistas, gestores e trabalhadores, para além de assalariados ou “biscateiros” com intermediários a mistura, que enfrentam um verdadeiro “sismo” com os prazos e condições rígidas e nalguns casos impróprios para o tipo de relação jurídica que se estabeleceu entre os empresários e o Ministério da Defesa que assume um contrato de inquilinato comercial com os mesmos. São situações que, por potenciarem um ambiente de instabilidade económica e social, ainda que sensível numa esfera aparentemente reduzida de indivíduos, se estendem, com a sua onda de consequências a toda uma sociedade luandense e não só arrastando consigo os farrapos das dificuldades dos clientes habituados ao local (por razões de distância), das dívidas supervenientes dos locatários, da falência técnica (não judicial, pelo menos) dos agentes económicos e mais do que tudo isso, o desemprego em massa dos trabalhadores que não tiverem condições para manter o vínculo laboral na nova área comercial indicada.
Não está, obviamente, em causa a razoabilidade da ordem dada ou do seu sentido de utilidade pública. Senão, estaríamos obrigados a concorrer para a avaliação do papel constitucional do Estado (seus órgãos e serviços) na observância dos direitos fundamentais dos cidadãos e das empresas que a estes pertencem num exercício exaustivo que nos levaria a “desbravar” um outro texto, para além de nos apartar do caminho que pretendemos deslindar com o título encimado. Prefere-se entender, ainda que com coimas, que há motivos aceitáveis para a tomada de decisão do Ministério do Comércio que levaram ao seu acatamento “automático” num visível espírito de solidariedade institucional pelo Ministério da Defesa que assume directamente a relação de arrendamento com os ocupantes do perímetro comercial que se pretende abandonado nos prazos já difundidos pela comunicação social. Até porque o Estado, é, pelos seus actos normalmente nobres (porque tendentes a satisfazer uma maioria em detrimento dos interesses minoritários legalmente admitidos como sacrificáveis), sempre tomado por uma “pessoa de bem”, i.é, interessada em não prejudicar nada e nem ninguém, sem prejuízo dos questionamentos sobre a lisura dos processos que envolvem os seus actos. Partimos desse facto que confere uma suposta “presunção de inocência” sobre os actos dos agentes do Estado para nos atermos a simples análises procedimentais, muito longe da matéria de facto sobre o qual se inclinam os múltiplos direitos substantivos que podem ser decantados envolvendo as respectivas partes. E é precisamente a propósito da lisura nos procedimentos que nos prestamos em analisar o caso subiudice num exercício pedagógico-social orientado para o avivar das percepções, tanto dos operadores públicos quanto dos agentes económicos envolvidos como partes, sobre a teia de responsabilidades jurídicas que envolve a relação de modo a razoabilizar as posições das partes numa perspectiva de equidade e de justiça.
Importa assentar a teia de relações jurídicas que se impõe ao “caso macambira”, dispensadas as relações entres os armazenistas e lojistas entre si e as que se estabelecem entre os empregadores e os trabalhadores, entre outras mais que pouco ou nada interessam ao caso. Num primeiro plano está o Ministério do Comércio que orienta com os seus prazos e condições a transferência dos comerciantes. Aqui, o Estado assume a sua função natural de proporcionador de bem-estar económico e social, que no caso tem que ver com o reordenamento urbanístico-comercial (pretende que os comerciantes se instalem em zonas adequadas ao plano de ordenamento territorial da província), assistido pelo invariável poder de império (ius imperi), materializado com o privilégio de execução prévia contra o qual particular nenhum pode opor-se sem diluir o papel do Estado, retirando com isso a ideia construtora de uma sociedade assente no primado da lei (Direito) e na observância das liberdades individuais (Democracia). Portanto, é uma ordem para ser cumprida. Embora se lhe questionem os procedimentos e sobretudo os mecanismos de compensação, cuja análise dispensamos neste texto. Num segundo plano, está o Ministério da Defesa que tem assumido uma relação de arrendamento com os mesmos comerciantes. Se o Ministério do Comércio age assistido pelo poder que lhe advém da sua qualidade de ente do Direito Público, o Ministério da Defesa assume uma relação completamente vinculada pela observância de normas do Direito Privado (Direito do Inquilinato) onde o conteúdo do contrato assumido lhe obriga a agir como um particular qualquer colocando-o inclusive no mesmo plano de obrigações e deveres em que estão os comerciantes. Não tem que impor nem mais e nem menos do que está estipulado no acordo e nem tem que agir fora de uma vontade mutuamente acordada. Portanto, está num plano em que não tem poder de agir como Estado usando o seu vasto poder de forçar a vontade dos particulares para aquém ou além dos limites do próprio contrato assumido. Ou seja, se o Ministério do Comércio é o Estado a agir com o seu poder de se impor a vontade dos particulares e como tal veiculado no âmbito do Direito Público, o Ministério da Defesa é o Estado na faceta de um particular, sem poder de impor absolutamente nada aos outros particulares (no caso os comerciantes) a sua vontade unilateral e como tal ao arrepio das normas contratuais. Concluímos assim que no “caso macambira” os comerciantes enfrentam o Estado sob dois prismas, investido por isso, de duas facetas ou “máscaras”, se preferirmos. O que, obviamente, obriga a procedimentos diferenciados da parte dos comerciantes em relação as duas entidades representativas do Estado.
Desde logo, em nenhum momento se afiguraria no ângulo dos interesses dos comerciantes questionarem ou resistirem as ordens do Ministério do Comércio. É um desastre procedimental que arrepia as mais cuidadas operações jurídicas no tratamento do caso. O Ministério do Comércio não é parte do contrato de arrendamento. E por isso, não tem que dar justificações aos comerciantes e tão pouco estes devem esperar quaisquer posicionamentos do mesmo na estabilidade da relação contratual com o Ministério da Defesa. Em rigor, tudo devia ser tratado entre o Ministério do Comércio e o Ministério da Defesa. E este, sim, seria a única entidade a lidar com os comerciantes por ser a contra-parte na relação do inquilinato comercial estabelecida. Tudo se passaria, tal como deve ser visto do ponto de vista jurídico-legal, como se a zona da Macambira, em que se encontram os comerciantes, pertencesse ao Ministério da Defesa que é a final o senhorio. Diante da necessidade de desocupar o local, o proprietário (Ministério da Defesa) é a pessoa lesada de modo directo, já que tem obrigações a observar com os seus inquilinos (tem de cumprir com os prazos do arrendamento e tem de observar integralmente o acordo com os armazenistas e os lojistas). A responsabilidade civil e as vicissitudes exigidas ou caídas aos arrendatários comerciais só podem ser assumidas pelo Ministério da Defesa. E neste caso, tenho dúvidas que uma rescisão urgente retire quaisquer responsabilidades de indemnização e de reparação de danos diversos ao Ministério da Defesa.
Na verdade, o poder de império que assiste o Ministério do Comércio dispensa quaisquer obrigações negociais como as que estão a ocorrer com os comerciantes. As necessidades públicas não se compadecem com as necessidades específicas dos indivíduos e tão pouco se vergam ao tempo ou aos prazos que estes solicitam ou procuram impor, mesmo pela via das negociações. O que devia ter acontecido, era que o Ministério da Defesa na qualidade de senhorio teria cuidado de organizar todos os mecanismos de compensação para assistir os seus inquilinos sob pena de sujeitar o Estado a responsabilidade civil (dever de indemnizar) pela inobservância do contrato de arrendamento com os comerciantes. Quando a ordem foi dada pelo Ministério do Comércio, a corrida para a estabilidade das condições dos comerciantes devia ser assumida pelo Ministério da Defesa e nunca pelos comerciantes, salvo se estes estiverem em condições contratuais irregulares. O que a acontecer, desonera, logicamente, o senhorio de quaisquer obrigações. Ou seja, a negociação seria estabelecida entre o Ministério da Defesa e os comerciantes, estando o Ministério do Comércio equidistante, ou na melhor das hipóteses próximo de acudir o seu “parente directo” (Ministério da Defesa) por meio da chamada solidariedade institucional prevenindo-o de assumir em nome do Estado as consequências resultantes dos prejuízos contraídos pelos comerciantes em todo o processo que impõe a urgente e prejudicial transferência.
Ironicamente, o Ministério da Defesa prefere “transferir” as suas responsabilidades negociais aos comerciantes que, não sei se tecnicamente desassistidos ou se contratualmente enfraquecidos, acabam “se batendo” de modo inglório contra o Ministério do Comércio que, não sendo parte no contrato de arrendamento comercial, nada tem que ver com as suas exigências e os meandros que levaram os comerciantes a instalarem-se naquela “zona comercial” da cidade de Luanda. Essa atitude grosseiramente negligente do Estado-particular assumida pelo Ministério da Defesa só tem de o levar ao endividamento público pela miríade de obrigações de indemnizações que certamente vão florescer em quantidades estonteantes até ao desfecho do “caso macambira”. Da situação assim visualizada só se pode depreender que os advogados ou consultores jurídicos ligados as partes envolvidas não se apresentam com a postura técnico-profissional exigida para um final justo e harmonizado do caso, onde o Estado deve sair menos onerado do que parece já estar e os particulares (comerciantes e tudo o resto) devem contrair o mínimo de danos possíveis. Se os comerciantes devem aguardar por quaisquer reparações de danos, devem fazê-lo na expectativa de que o Ministério da Defesa é a única e suficiente responsável pelos mesmos. Evitando, desviar-se para o Ministério do Comércio que está longe de assumir judicialmente quaisquer responsabilidades para além daquelas que se lhe impõem na qualidade de sujeito de Direito Público no uso de instrumentos como o privilégio de execução prévia que levaram a desencadear a expropriação por utilidade pública que se verifica neste caso. Dixit.
sábado, 31 de agosto de 2013
O HABEAS CORPUS VERSUS PRISÃO PREVENTIVA (O CASO DA JÉSSICA COELHO) - ENTREVISTA AO SEMANÁRIO ANGOLENSE - Albano Pedro
SEMANÁRIO ANGOLENSE: O que é o Habeas Corpus?
ALBANO PEDRO: O Habeas Corpus tem a sua origem ligada a Bíblia Sagrada quando o corpo de Jesus, o Cristo, foi solicitado para ser enterrado. Reza as sagradas escrituras (Mateus 15: 43) que José de Arimateia, Senador Romano e homem temente a Deus solicitou a Pôncio Pilatus que lhe fosse entregue o corpo do messias que jazia na cruz logo após a sua morte para que fosse convenientemente enterrado. O Governador romano solicitou ao Centurião que se certificasse da morte daquele a quem chamavam Ioudaourum Rex (Rei dos judeus) antes de cedê-lo ao honrado e importante cidadão romano. Ao entregá-lo Pôncio Pilatus disse: “habeas corpus ad subjiciendum” (que tenhas zelo pelo seu corpo). A adaptação jurídica deste acto simbólico refaz a ideia de se ter o espírito perdido pretendendo-se conservar o corpo, i.e., embora o indivíduo tenha a consciência amarrada pela justiça pública que o corpo permaneça livre das masmorras que merece, se se percebe que a permanência no local é irregular (ilícita). Tal como foi a retirada do corpo de Jesus da cruz em que os romanos entendiam dever estar colocado, com toda humilhação que tal acto representava para os que nele acreditavam, para merecer um enterro condigno; um enterro a dimensão do filho de Deus que era. Juridicamente a figura de simbologia bíblica passou a ser chamada de modo lapidar como Habeas Corpus (que tenhas o corpo). Foi tratado pela primeira vez como garantia contra o poder real na Inglaterra através da Magna Carta Libertatum de 1215, o seu âmbito foi porém restrito com o Habeas Corpus Act de 1679. Nos dias de hoje é uma das garantias constitucionais consagrada contra a arbitrariedade do poder judicial no uso do seu poder de privação de liberdade observado pela maioria dos Estados que assentam a sua organização no primado da Lei (Direito) e o da Liberdade Humana (Democracia). Entre nós, a consagração constitucional é feita através do art.º 68.º. E pretende prevenir ou agir contra as detenções e prisões ilegais pela sua interposição em tribunal competente procurando resgatar à liberdade, ainda que provisória, nalguns casos, o “corpo” do indivíduo a contas com a justiça!
SA: Quais são os pressupostos para que esse mecanismo seja accionado?
AP: É uma providência cautelar de eficácia judicial para os casos de detenção e prisões ilegais, como já disse. Por isso, grosso modo, basta que a detenção ou a prisão sejam ilegais para que se lance mão ao Habeas Corpus. Não importa se a situação ilegal seja meramente eminente (fala-se do Habeas Corpus preventivo) ou seja efectiva ou em curso (fala-se de Habeas Corpus repressivo). Para o primeiro caso, o pressuposto teleológico é a presunção do perigo provável de danos irreparáveis que advenham da detenção ou da prisão (periculum in mora). Pense-se na prisão de um Médico Intensivista (único na sua zona de jurisdição laboral); de um professor em período de provas escolares ou mesmo de um pai ou mãe que tem sob seu cuidado os filhos para cuja protecção não conta com mais ninguém e que venham a ser detidos por uma situação que se presume ser um equívoco ou com tendência probatória desfavorável à sua detenção ou prisão (V.g: Um doido, insuspeito de sê-lo, procedeu a queixa presumindo que o detido tenha colhido mortalmente um individuo que depois do atropelamento desapareceu do local em que foi projectado pela viatura pelos próprios pés). Para o segundo caso o pressuposto é a existência de um direito protegível, i.é, da existência de uma situação ilegal no constrangimento da liberdade individual (fumus boni iuris). Em resumo, o pressuposto geral é a ilegalidade do acto comprometedor da liberdade do indivíduo, independemente da salubridade legal da matéria de facto em causa!
SA: O caso mais recente de soltura por excesso de prisão preventiva com base no habeas corpus foi da jovem Jéssica Coelho. Será que as pessoas desconhecem esta prerrogativa que a lei lhes oferece?
AP: De facto o excesso de prisão preventiva configura o acto de ilegalidade, quando a prisão preventiva não seja prorrogável nos termos da Lei. O Dr. Grandão Ramos, eminente processualista penal angolano, considera criada uma situação de cárcere privado quando se verifica a prisão preventiva para além dos prazos legais. Não é possível discordar com este ponto de vista sem se colocar em causa o equilíbrio analítico. Pois, o cárcere privado é uma “aberratio iuris” que configura um perfeito exemplo de ilegalidade passível de sujeitar-se aos efeitos devastadores do Habeas Corpus. Julgo que o problema não está no desconhecimento. Embora, se diga que o Habeas Corpus tal como a própria ideia de Direito em Angola é uma figura moderna na nossa construção societária de Estado e apenas muito recentemente começou a ser amplamente utilizada pelos advogados (poucos o fizeram até agora, é certo) e também ainda persiste o problema da sua normalização infraordinária no contexto do ordenamento jurídico angolano através de um diploma legal competente que determine o seu âmbito e define os parâmetros da sua aplicabilidade promovendo a percepção sobre os limites com outras figuras judiciais afins. O problema está em que a maior parte das vezes as pessoas não sabem quando se está perante excesso de prisão preventiva, mais especificamente no caso ou quando se deve lançar mãos a esta garantia constitucional esquadrinhando a situação de ilegalidade do acto comprometedor da liberdade. Nos casos da prisão preventiva, as pessoas (e os profissionais de foro não fogem disso) são levadas a aguardar pelos posicionamentos do Ministério Público para apreciar a ilegalidade do acto, dispensando, de modo negligente ou por motivos diversos, o recurso judicial para chamar em depoimento a força vigorosa do Habeas Corpus em socorro do suspeita ou arguido em situação de detenção ou prisão ilegal!
SA: Por maioria de razão, não acha que os outros indivíduos arrolados no mesmo processo deviam ser também soltos para aguardar o julgamento em liberdade?
AP: Se estiverem em situação de excesso de prisão preventiva e houver lugar a interposição do Habeas Corpus, não vejo inconveniente nenhum. É uma questão de argúcia e dedicação dos seus advogados e dos seus familiares. Agora, sendo o crime individual, e como tal o conteúdo da sua responsabilidade jurídico-penal, não se pode esperar que os efeitos do Habeas Corpus vertidos a favor de um dos suspeitos ou arguidos venham ipso facto a beneficiar os restantes, ainda que envolvidos no mesmo caso. A responsabilidade penal é individual e assim também são os efeitos decorrentes das demarches processuais se desencadeados de modo autónomo!
SA: Admitindo-se que ela não violou os termos da Lei da Liberdade Provisória, a sua detenção justifica-se ou é ilegal?
AP: Tendo sido devolvido a liberdade pela bom e justo provimento judicial do Habeas Corpus e não havendo factos que impliquem contra a Liberdade Provisória a detenção torna-se obviamente ilegal. Ou seja, voltamos a ilegalidade da detenção e como tal o chamamento do Habeas Corpus tem de novo a sua razão de ser. Ou pelo menos na insistência pela sua eficácia para o caso. Também é bom que fique claro que o Habeas Corpus e a prisão preventiva cumprem finalidades contrárias. Enquanto o Habeas Corpus procura prevenir e reprimir perigo de danos ou actos ilegais enquanto efeitos imediatos da detenção e prisão, a prisão preventiva visa exactamente prevenir que o dano produz o seu perigo ou que a ilegalidade grasse pelas mãos do suspeito, arguido ou réu livre. São figuras de hierarquia jurídica diferentes (Habeas Corpus tem previsão constitucional e Prisão Preventiva tem base infraordinária entremeada nas leis do processo penal) que colidem frontalmente nos seus motivos. O poder constitucional do Habeas Corpus impõe que os caprichos administrativo-judiciais não permitam a vigência da prisão preventiva para além do que seja legalmente estipulado, mesmo que se chamem os argumentos em que assentam a essência da Prisão preventiva enquanto providência cautelar de igual natureza judicial, tais como o fumus comissi deliti ou o periculum libertatis como elementos que motivam a sua vigência. Mesmo porque a prisão preventiva em si mesma encerra a ideia de ilicitude por ser uma prisão que ocorre sem julgamento do ainda suspeito ou arguido (é um debate doutrinário amplamente difundido, porém irrelevante com a sua vigência admitida legalmente, embora alerte o senso comum sobre a ineficácia da justiça e do sentimento de “repulsa” que dele advém). Portanto, em nenhum momento se pode perceber a substituição dos efeitos do Habeas Corpus pelos efeitos da Prisão Preventiva sejam elas as razões recrutadas para justificar tamanha substituição!
SA: Alega-se que a mesma foi feita com base num despacho de pronúncia do juiz da causa. A lei fixa prazos entre o despacho de pronúncia e o julgamento?
AP: Pronunciada ou não, nada invalida o efeito do Habeas Corpus uma vez proferida pelo juiz competente até que aconteça o julgamento que produza sentença condenatória. Já porque a prisão preventiva via de regra tende a cumprir o seu percurso temporal até a sentença proferida em julgamento, altura em que, quando seja o caso, é transformada, ou melhor, cede a pena de prisão (chamemo-la prisão definitiva). Mais ainda, recrutamento em depoimento o argumento de que, no caso, o prazo da prisão preventiva esgotou-se completamente. É verdade que certa doutrina angolana levanta o problema da não extinção da prisão preventiva, por falta de normas idóneas que assim estipulem. Entendo que em se tratando de normas processuais e sobretudo de situações que favoreçam o suspeito ou arguido a hermenêutica jurídica leva-nos a perceber uma verdadeira extinção da prisão preventiva seja por argumentos de maioria de razão seja por interpretação a contrariu sensu enquanto mecanismos hermenêuticos do Direito quando os respectivos prazos expiram. Todavia, no caso do Habeas Corpus vertido na situação sub iudice é inútil falar-se na extinção da prisão preventiva no momento da entrada em vigor da providência cautelar de couro judicial e de raiz constitucional. Simplesmente porque o Habeas Corpus é chamado quando a prisão preventiva já não tem razão de ser; legalmente já não existe, i.é, tornou-se inexistente e como tal passível de nulidade absoluta. Caso contrário estaríamos admitir a ocorrência de uma suspensão da prisão preventiva. O que seria um verdadeiro desastre procedimental depois de ser chamada a intervir uma figura de calibre constitucional como é o Habeas Corpus. Destarte, até que seja condenada o efeito do Habeas Corpus deve vigorar como garantia da liberdade provisória da suspeita ou arguida, no caso!
SA: Conhecendo-se a morosidade dos processos nos tribunais, não se corre o risco de uma violação dos direitos humanos, por via de um novo excesso de prisão preventiva?
AP: A violação de direitos humanos fundamentais por via de um novo excesso de prisão preventiva é inquestionável tal como foi o excesso da prisão preventiva que motivou a interposição de um pedido de Habeas Corpus. E não é apenas isso, é a própria “recuperação” da prisão preventiva que levou a reentrada da suspeita ou arguida a cadeia. Retira claramente o efeito do Habeas Corpus (com a sua robustez e vigor constitucional insusceptível de ser combatido por um instrumento infraordinário como é a prisão preventiva) e procura impor a vigência de uma prisão preventiva já vencida pelo alargamento dos prazos para além da medida legal. Por isso, tenho dúvidas sobre a licitude da “nova” prisão preventiva numa situação em que a anterior foi violada com o excesso de prazo. Ademais, as leis do processo penal, em muitos episódios normativos, são alérgicas as situações em que desfavoreçam o suspeito, arguido ou réu. A fé na ideia de justiça, nos leva a admitir que a defesa em colaboração com o Ministério Público está atenta para prevenir-se desta irregularidade legal ou ilicitude (que desde já espero que seja uma mera eventualidade). Pois, na maior parte dos casos, os excessos ocorrem por negligência das partes interessadas.
quinta-feira, 8 de agosto de 2013
A REFORMA TRIBUTÁRIA EM ANGOLA: CONSIDERAÇÕES SOBRE O IMPOSTO INDUSTRIAL - Albano Pedro
Tomei conhecimento sobre a redução da taxa sobre o imposto industrial dos actuais 35% para 30% numa conversa de “roulotte” em que me vi envolvido com alguns colegas nas lides jurídicas. Uma decisão confirmada pela Secretaria de Estado das Finanças a propósito da Reforma Tributária em curso e veiculada pela comunicação social que não tive acesso tempestivo. Desde que começou o processo inerente a reforma tributária verti especial atenção ao Imposto Industrial. Para quem lida profissionalmente com o fenómeno empresarial, como eu, reforma tributária é essencialmente redução do imposto industrial, com todas as outras alterações e inovações que surgirem como “esquebra”. Sei o quanto esta taxa tem criado embaraços pouco discutidos nas lides políticas e na sociedade civil de uma maneira geral, tornando-se numa espécie de calvário para a sofrível classe empresarial angolana. Foi com desagrado que percebi que o imposto foi fixado em 30%, embora ainda em projecto normativo com a recente aprovação da lei sobre o Código Tributário.
Diria com ironia que «foi com profunda consternação» que tomei conhecimento deste infortúnio normativo fiscal. Ressaltou-me a vista a falta de vontade real para estruturação do tão ansiado mercado privado num contexto de economia crescente e competitiva com o surgimento facilitado de empresas e a criação de um ambiente que favoreça o rendimento e o lucro sobre suas actividades. Quem lida directamente com actividades empresariais entende perfeitamente o sentido que dou ao quadro fiscal emergente. Não é por acaso que esta medida normativa foi em contramão com os interesses da classe representada pela Associação Industrial angolana (AIA) que se bateu de modo inglório para que a mesma fosse fixada em pelo menos 25%. A proposta desta associação profissional foi mais longe: pretendia de modo inovador que a taxa assim fixada beneficiasse o Estado com 20%; associações empresariais com 2,5%, centrais sindicais com 1,5% e universidades com 1% afectados assim com os resultados da actividade tributária sobre as empresas.
O que não só reduziria drasticamente a pesada obrigação que incide sobre a actividade empresarial angolana ao ponto de tornar o Estado numa espécie de sócio, muitas vezes maioritário, do empresário nacional como também se tornaria numa fonte justa e razoável de financiamento da actividade associativa empresarial com vista a aumentar os níveis de organização da classe, da actividade sindical com vista a dar suporte a capacidade reactiva da classe hipossuficiente de trabalhadores contra os empregadores e finalmente, dar suporte as universidades de forma a criarem condições para investigações inovadoras que ultima ratio serão aproveitas pela classe empresarial. Ou seja, não só o Estado facilita o empresariado reduzindo o imposto como o imposto em causa cria condições para a promoção e estímulo de toda a economia privada.
Define-se por industrial o imposto que incide sobre os lucros obtidos sobre exploração de actividades comerciais ou industriais de quaisquer tipo ou espécie, incluindo a actividades por conta própria não sujeitas a Imposto Sobre Rendimento do Trabalho; de explorações agrícolas, silvícolas ou pecuárias; de mediação ou representação na realização de contratos de qualquer natureza, bem como de agentes de actividades industriais e comerciais entre outras. Desde logo, incidindo sobre os lucros, o Imposto Industrial tem a “desvirtude” de atacar o quinhão dos ganhos do empresário reduzindo as margens de lucros esperados. O que influencia no seu ânimo em manter a actividade com riscos sobre o capital empatado, muitas vezes a custo de empréstimos bancários com altas taxas de juros, e na capacidade de refinanciar a actividade e de expandir os seus interesses económicos que ultima ratio se reflecte no crescimento da própria economia. Em resumo: quanto mais imposto menos riqueza, quanto menos riqueza menos ganha a economia.
O Imposto Industrial vigente foi aprovado ao abrigo do Diploma Legislativo (DL) n.º 35/72 com alterações que lhe foram conferidas por diplomas posteriores. Ou seja, tem a taxa fixada em 35% desde a época colonial. Ora, nesta época a economia angolana era o suporte essencial da economia portuguesa. Longe de pretender criar condições locais para o florescimento de uma classe empresarial estável, Portugal tinha interesse em “evacuar” a maior parte da capacidade financeira da então colónia (estamos a falar em 1972, data da aprovação do diploma em causa) a favor da metrópole. Portanto, não havia qualquer interesse pelo desenvolvimento económico de Angola. Era uma forma de desestimular o crescimento do parque empresarial em Angola em beneficio das empresas sediadas em Portugal, embora explorando actividades na então colónia. Uma vez que o Imposto Industrial é cobrado em razão da sede da empresa (art.º 48.º e 59.º - DL n.º 35/72). Ora fixada a mesma taxa em Portugal na prática significaria mais benefícios fiscais para o estado português forçando as suas empresas a explorarem no máximo a economia das colónias sem quaisquer benefícios vertidos a favor das economias destas. Eis a razão da taxa de imposto fixada na altura. Tanto é assim que hoje Portugal, desaparecida a exploração económica das colónias, pratica a taxa de 25% para o mesmo imposto que passou a denominar por IRC (Imposto Sobre o Rendimento de Pessoas Colectivas).
É interessante tomar nota que a África do Sul, a maior economia da região económica da SADC, tem fixado o imposto industrial com a taxa de 28% numa clara visão de estabilidade da sua economia com empresariado forte e competitivo e os impostos industriais praticados pelos restantes países da mesma região económica em Angola se encontra inserida esta fixada em média abaixo de 25%. Ou seja, Angola é o único país de região com taxas altas sobre o Imposto Industrial. O que leva afinal o executivo angolano a manter a taxa sobre o imposto industrial em níveis tão alto diante de uma realidade empresarial por si só asfixiada por inúmeros obstáculos burocráticos ou normativos que o levam a uma situação de sobrevivência, senão de quase inexistência?
Que pelo menos seguíssemos o exemplo de Portugal, já que dele tomamos cópia para tudo, inclusive de quase todos os modelos de diplomas legais aprovados em Angola. E seguramente, os técnicos ligados ao processo de reforma tributária terão feito esse recorrente e viciante exercício. Só estranho que em matéria de fixação da taxa tenha exorbitado de qualquer exemplo funcional que se conhece modernamente. Se neste particular tiverem seguido, como perfeitos exemplos, os regimes fiscais de Cuba, Coreia do Norte, Cambodja ou de outras realidades económica de estabilidade duvidosa que ao menos se apresentem e se discutam publicamente as causas justificativas desta opção, por si só anormal no contexto de uma economia que se pretende organizada e crescente como é a angolana.
Seguramente, não é com o aumento da taxa de imposto industrial que veremos o florescer da economia privada angolana pelo surgimento de uma classe empresarial forte e competitiva, como já o dissemos. Uma orientação fiscal nesses termos é a todos os títulos desastrosa para quem “pretende distribuir mais e melhor”. Transparece ideias burocráticas nascidas de discussões entre decisores sem quaisquer contactos com a economia real, muitos dos quais especialistas e agentes distantes do difícil campo da gestão empresarial angolana. Acima de tudo, torna visível um projecto de emperramento da economia nacional provocando sérios entraves para o surgimento de uma verdadeira economia de mercado adiada pela vigência da economia pública herdada do passado centralista do Estado e está longe de estimular o bem-estar económico e social dos angolanos pela exploração das suas próprias capacidades criativas e empreendedoras. Dixit.
sexta-feira, 19 de julho de 2013
CRIMES FARMACÉUTICOS: RAZÃO DE SER E PREVISÃO LEGAL - Albano Pedro
No pretérito dia 10 de Junho teve início em Luanda uma reunião para 4 dias de duração com objectivo de estabelecer programas operativos de combate harmonizado aos crimes farmacêuticos promovido pela Organização Internacional de Polícia Criminal (INTERPOL) ao nível da região austral da África (envolvendo representantes do Botswana, Lesoto, Madagáscar, Malawi, Ilhas Maurícias, Moçambique, Namíbia, África do Sul, Suazilândia, Seicheles, Tanzânia, Zâmbia, Zimbabwe para além de Angola, como país anfitrião). Em questão a situação alarmante deste fenómeno pelo mundo e em especial na África austral onde a situação tem alcançado proporções alarmantes.
Entende-se por crimes farmacêuticos os actos inerentes a produção, a distribuição e a comercialização de medicamentos falsos ou sem controlo das autoridades médicas e farmacêuticas quer dos países de origem quer dos países de destino. A criminalidade farmacêutica prospera em realidades económicas onde alto nível de demanda dos medicamentos é desproporcional ao seu fornecimento regular aliada a fraca capacidade aquisitiva dos consumidores determinada pelos elevados índices de pobreza, estimulando o enriquecimento fácil dos operadores e agentes da indústria de contrafacção de medicamentos e fármacos diversos. Esta indústria que circula pelos corredores do comércio internacional e doméstico através de redes organizadas é causadora de prejuízos incalculáveis a indústria farmacêutica regular para além de provocar mortes ou resistências ao tratamento de certas doenças devido ao uso de tais fármacos pelas suas vítimas.
Em rigor, este crime não existe no ordenamento jurídico angolano. Do ponto de vista legal, as autoridades policiais tendem a equipará-lo ao crime de branqueamento de capitais, tal como deixou claro o Comandante da Polícia Nacional no seu discurso de abertura da reunião acima referida. O que demonstra claramente a falta de legislação específica sobre este tipo de actividade criminal. Não sendo admissível a analogia legis em Direito Penal diferente do que acontece nos demais ramos do direito, com realce no Direito Privado, admitir o tratamento desta espécie de ilícito no âmbito de uma conduta diferente, no mínimo configura um desvio evitável, por jurídica e judicialmente ineficaz. Já que o elemento crucial neste tipo de crime é a falsificação de coisa transformada em mercadoria e posta ao consumo público, sendo a rede comercial uma mera extensão desta actividade desejada criminal e como tal rotulável no quadro da comparticipação criminosa.
A antiguidade do Código Penal vigente não está a altura previsional de crimes de falsificação de coisas, latu sensu. Foi aprovado numa era em que a revolução industrial tinha começado os seus primeiros passos e a produção de bens em série era um sonho no longo percurso da conquista tecnológica da humanidade. Até então, a falsificação possível era a de documentos escritos e de outros elementos alcançáveis pelo progresso histórico do momento. Não estranha por isso, que o legislador penal angolano não preveja condutas criminais directamente relacionadas com a produção industrial de bens. A solução não será pois a de rotular tais condutas com outras bem legisladas como as que configuram o branqueamento de capitais. Legislar sobre os crimes farmacêuticos é preciso. E no calor da reforma do Código Penal em curso, o assunto torna-se particularmente pertinente. Até lá, temos dúvidas que os seus agentes sejam condenados por crimes farmacêuticos como tais. Salvo se no conjunto dos actos praticados se despontem outros perfeitamente enquadráveis em condutas já positivadas pelo direito Penal angolano, no âmbito dos quais se poderão igualmente identificar ilícitos relacionados com o branqueamento de capitais tal como entende o mais alto responsável da Polícia angolana.
Não havendo como responsabilizá-los na base dos crimes farmacêuticos, ficarão impunes? Claro que não! O mecanismo de segurança e certeza jurídica não permite a impunidade absoluta por inexistência ou ineficácia de medidas sancionatórias. Acontece então, que determinadas condutas repugnantes ou, no mínimo, reprováveis pela sociedade quando não sejam particularmente tratadas no âmbito dos crimes o sejam no âmbito de ilícitos civis. Neste contexto, os agentes de condutas relacionadas a contrafacção de fármacos poderão ser responsabilizados civilmente sendo-lhes imputadas condutas que vão desde a violação de direitos de propriedade industrial, a concorrência desleal, diversas formas de operações económicas ou comerciais tipificadas em ilícitos económicos entre outras condutas legalmente relevantes passando pela obrigação de reparação de danos morais ou materiais causados aos consumidores, seja pela entrega defeituosa da coisa, quando não corresponda eficazmente a prescrição médica, seja pelos danos causados directamente pelo seu consumo. De todo o modo, a conduta criminal directa sobre quem altera o fabrico de medicamentos tornando o seu uso nocivo a saúde humana ou os exponha a venda pública é estabelecida pelo Código Penal (art.º 251.º), nos termos do qual podem ser condenados os agentes de crimes farmacêuticos de acordo com os efeitos nocivos a saúde humana dos medicamentos produzidos ou comercializados e não pela contrafacção em si. Dixit.
SOBRE O ARRENDAMENTO RESOLÚVEL DE IMÓVEIS NA CIDADE DO KILAMBA - Albano Pedro
A entrega de moradias na centralidade da Cidade do Kilamba tem levantado inquietações de vária ordem, sobretudo em compradores que aguardam entrega dos respectivos imóveis sem certeza dos prazos. O assunto tem sido ventilado com importância pública tal que os contornos legais e contratuais inerentes ao processo de aquisição imobiliária merecem ser dissecados. Já porque os compradores atingiram um grau de impaciência endémica alimentada pela incerteza na entrega das moradias, já porque o vendedor não esclarece com propriedade os prazos de entrega bastando-se a meros exercícios dilatórios na informação que veicula a favor dos mesmos. A essa situação, acresce-se o facto de alguns compradores serem notificados, formalmente ou não, para entrega de moradia diferente daquela em que se candidataram. Mais ainda se impõem as ameaças de despejo, sem o reembolso dos valores pagos, das moradias aos compradores que tiveram acesso as chaves em caso de violarem normas relativas a vivencia na centralidade ou de não pagarem as próximas prestações nos prazos em que foram estipuladas.
Tudo isto levanta uma inevitável confusão pela incompreensão dos conteúdos contratuais e das responsabilidades concretas das partes envolvidas, não se sabendo em muitos casos, a parte com autoridade na relação com o comprador. Se a SONIP (procuradora ou concessionária dos imóveis em nome do Estado, tido como titular dos imóveis), se a Delta Imobiliária (mediadora de certos lotes em nome da concessionária) ou se a administração da cidade do Kilamba, configurada na forma débil de uma autarquia local em ensaio.
Desde logo, importa assentar que chegaram ao conhecimento público 3 formas essenciais de acesso as moradias. Designadamente, o acesso pela via da venda a pronto pagamento, pela via do arrendamento e pela via do arrendamento resolúvel, podendo ser com capital inicial ou sem capital inicial enquanto modalidades desta última forma de acesso. O acesso pela via do arrendamento não levanta quaisquer problemas. Não só pela falta notória de candidatos com problemas conhecidos como pela forma em como funciona. É completamente regulada pela Lei do Inquilinato e legislação subsidiária importando poucos aspectos por esclarecer. Da mesma maneira, a compra a pronto é uma das formas de acesso menos complexas do processo de aquisição de imóveis na centralidade. O pagamento faz-se numa única prestação dando acesso imediato a moradia, independentemente do contrato ser uma promessa de compra ou de compra definitiva. Há apenas que referir que as dificuldades registais no domínio imobiliário que é sensível em todo o território nacional, por razões seguramente políticas (porque não são meras burocracias administrativas), impedem que os vendedores de imóveis procedam a celebração de contratos definitivos. Ou porque faltam títulos de propriedade sobre os terrenos em que as moradias foram erguidas ou porque falta o cumprimento de certos procedimentos processuais ou administrativos que impedem o vendedor de realizar a venda definitiva com outorga do respectivo contrato. É um problema nacional cujas causas não importa escalpelizar e que, seguramente, não oneram o comprador. Podendo exigira a reparação de danos em caso de não ter a titularidade definitiva por alguma política pública ou não que venha a surpreender o promitente-vendedor. Interessa apenas tranquilizar que o contrato-promessa de venda tem o mesmo valor contratual e legal do contrato prometido ou definitivo importando os mesmos efeitos entre as partes contratantes ou oponíveis a terceiros que venham a interferir na relação dos contratantes por simples vício na formação da vontade ou por má-fé (também conhecida como eficácia inter parte ou erga omnes) ou pela recorribilidade judicial dos conflitos que venham a levantar. Portanto, é uma forma pacífica de aquisição, não importando qualquer ordem de preocupações a quem dela recorre.
O problema das aquisições de imóveis na centralidade levanta-se na forma de acesso por compra e venda com propriedade resolúvel (como lhe chama o vendedor) ou renda resolúvel, como é simplesmente chamado. Não importa a abordagem das modalidades, senão a título complementar como faremos mais adiante. Tão pouco a denominação merece quaisquer importâncias no domínio jurídico. O que importa é que configura uma forma mista de contrato envolvendo cláusulas de contratos muito bem determinadas por lei quais sejam o contrato de arrendamento (regulado pela Lei do Inquilinato como ficou claro acima) e o contrato de compra e venda (estabelecido no Código Civil). Em rigor, está-se perante uma forma pouco comum de contratação em Angola, emergente de realidades económicas de cariz capitalistas, conhecida por LEASING. Que é um mecanismo contratual em que uma das partes (vendedor) cede a outra (comprador) um bem mediante acordo de venda, reservando-se ao direito de reaver o bem vendido em caso do comprador não cumprir, total ou parcialmente, com as prestações prometidas. É uma modalidade de contrato misto usada em compra e venda a prestações ou venda parcelada. Nessa modalidade, o vendedor que reaver o bem não pago na totalidade, tem a faculdade de transformar as prestações já pagas em parcelas de renda tornando o comprador num locatário, seja de bem móvel ou imóvel, na altura em que tiver o contrato rescindido por culpa sua ou facto (atraso no pagamento, desleixo na observância do acordo, etc.) a si imputável. Daí ser um misto de arrendamento e venda tal como se configuram as cláusulas deste tipo de contrato.
Assim, o comprador pode ser rotulado como sendo um comprador-arrendatário. Já que entra num contrato observando regras de compra e venda e de arrendamento cumulativamente. Se cumpre com as prestações, passa a comprador definitivo. Se não, é um arrendatário que perde o direito sobre o imóvel por força do fim compulsivo do contrato. Ou seja, o comprador torna-se arrendatário no momento da rescisão do contrato, perdendo as prestações já vencidas a favor do vendedor na forma de renda paga pelo tempo em que teve a posse do imóvel. Percebe-se a lógica contratual?
Ora, chegados a esse porto interpretativo, interessa percorrer por três aspectos essenciais a volta desta forma contratual: as consequências do seu incumprimento (1), as penalidades que importam as partes faltosas (2) e os mecanismos de resolução de conflitos dela emergentes (3). No que toca ao incumprimento do contrato de renda resolúvel pelas partes, é de esclarecer que se o incumprimento, inobservância do contrato incluindo a falta de pagamento das prestações, for imputável ao devedor (comprador), tem o credor (vendedor) os direitos estabelecidos pelo próprio contrato celebrado. Não fará recurso a outros argumentos por legalmente ineficazes. Não havendo contrato celebrado aplicam-se as regras do contrato promessa, tendo, o comprador, valores depositados, a título de pagamento das parcelas, comprovados por recibos de depósitos ou transferência bancária. Nesse caso o Código civil entende o montante pago como sinal e estabelece que “…. a existência de sinal impede os contraentes de exigirem qualquer outra forma de indemnização…”(art.º442º - Código O Civil – CC). Ou seja, o vendedor tem o direito de fazer suas as prestações já pagas pelo comprador se este não cumprir com as suas obrigações.
Todavia, no caso sub iudice, os compradores apenas depositaram valores aguardando pela entrega das casas. Nesse caso o incumprimento só pode surgir da parte do vendedor. Assim, se o incumprimento for devido ao credor (vendedor) tem a parte lesada (comprador) o direito a ser indemnizado com o reembolso em dobro da quantia depositada a favor do vendedor. A lei não admite outra forma de indemnização para este caso como se disse, por simples existência de sinal. E sobretudo por não ser celebrado um acordo eu estipule outra forma de indemnização como admite a própria lei. Tratamos da parte da compra e venda do contrato. Quanto a parte relativa ao arrendamento, que apenas beneficia o comprador que tiver acesso a moradia e como tal parte de um contrato já celebrado ainda que com cláusulas promissórias, não faz sentido outra forma de penalização que não seja a perda das prestações a favor do vendedor e a eventual reparação dos danos que causar a estrutura imobiliária decorrente do uso, bom ou mau. A razão é simples: o contrato promessa não admite outra forma de indemnização havendo sinal. Já referenciamos a Lei sobre a questão. Quanto a reparação dos danos sobre o imóvel é uma responsabilidade que decorre fora do contrato. Assinado ou não. Diz-se que decorre de factos ilícitos (portanto, extra-contratuais) praticados pelo usufrutuário (uso inapropriado, falta de manutenção ou mau uso do imóvel em geral). Neste caso, a indemnização será sempre na medida dos danos verificados em concreto devidamente arbitrados pelo tribunal competente em caso de recurso judicial da parte interessada.
É de precisar, que a indemnização será simplesmente exigível a favor do vendedor (SONIP por si ou pela Delta Imobiliária ou outro agente seu). Portanto, não fazem sentido nenhum as ameaças lardeadas entre os moradores segundo as quais o mau uso do imóvel importa a expulsão dos moradores por decisão das autoridades administrativas da Cidade do Kilamba. Não é a proprietária dos imóveis tão pouco representa o proprietário nas vendas. A dar azo a essa situação, equivale a admitirmos um despacho presidencial a impor a saída de certos angolanos do território nacional, por conduta desordeira, abandonando os imóveis legitimamente adquiridos ou com a relação de cumprimento em dia com os respectivos vendedores. Não há estupidez ou falta de consciência legal e administrativa de maior tamanho. Caberia tal poder ao vendedor, estando estipulado no contrato livremente celebrado entre as partes. O que não acontece no caso da centralidade do Kilamba por não constar dos contratos-promessa já celebrados. Se fá-lo usando de mecanismo legal competente, este devia decorrer do novo Regime de Arrendamento Urbano, com eventuais alterações favoráveis a decisões semelhantes. Sabe-se contudo, que é apenas uma proposta de Lei, ainda não aprovada pela Assembleia Nacional, salvo erro. Não é, pois, prudente e nem avisado a aplicação de normas com vigência condicionada pela sua aprovação, por manifesta inexistência para além de configurar puro abuso do direito. Uma outra base da decisão seria pela relação de condóminos. Uma vez que estão estipuladas quotas condominiais entre as obrigações dos moradores, incorporadas por sinal no valor da compra do imóvel. Ainda assim, pode acontecer que o condómino perca o direito de habitar na moradia retirando-se-lhe do convívio com os vizinhos por incompatibilidade ética. Porém, nunca desencadeará a perda da propriedade sobre a moradia. Pois, o estatuto do condómino abrange os espaços comuns usados pelos moradores. Nunca a fracção autónoma que é o apartamento em concreto. Não só porque pode sempre arrendar a um terceiro ou alienar simplesmente por direito de titularidade sobre o mesmo (ratio cives), como a titularidade sobre a fracção imobiliária em concreto resulta da transmissão onerosa directa do vendedor, contra-parte única nesta relação (ratio legis). Entretanto, os poderes condominiais nunca são exercidos por entidades que não sejam eleitas pelos próprios condóminos. É uma exigência legal. Desde logo, a administração está longe deste estatuto (está matéria vale um outro novel de esclarecimentos que não servem nestas linhas).
Já se o incumprimento for devido ao vendedor. Não entrega as moradias ou simplesmente não as entrega no prazo determinado. Tem o comprador o direito de exigir a restituição em dobro do que tiver pago. Esta exigência vale, mesmo que receba a moradia, estando o prazo vencido como acontece em muitos casos reclamados pelos compradores naquela centralidade. Para a Lei receber a moradia fora dos prazos, antes ou depois da data estipulada, é equivalente ao incumprimento e como tal importando a respectiva responsabilidade civil. Aqui o critério da reparação de danos será sempre o sinal. O incumprimento não diz respeito apenas a entrega atrasada ou antecipada sobre o prazo, também acontece na situação em que a moradia entregue não tem as características daquela que foi escolhida pelo comprador. Verbi gratia, não tem a mesma cor seleccionada no acto da compra, não está no mesmo andar ou na mesma posição do andar, não tem o mesmo tamanho entre outras diferenças e defeitos em relação a unidade escolhida em concreto. A entrega de um imóvel nessas condições, mesmo que aceita, importa o dever de indemnização por parte do vendedor. A lei chama a essa situação de cumprimento defeituoso.
Quanto as consequências do incumprimento de acordo com a modalidade da renda resolúvel escolhida, não há muito que se lhe diga. A diferença estará no montante da indemnização em caso de incumprimento do vendedor. Na renda resolúvel com capital inicial a entrega em dobro vai obviamente ter em conta a parte inicial do capital investido para a aquisição da moradia. Enquanto eu para a renda resolúvel sem capital inicial, o comprador sai beneficiado apenas com o dobro das parcelas mensais paga.
Relativamente, a solução dos conflitos decorrentes das vicissitudes na relação comprador e vender. Os compradores insatisfeitos com os prazos de entrega têm a faculdade de abordar o vender através de uma notificação, preferencialmente escrita, exigindo deste o cumprimento sponte sua da obrigação. Servirá de meio de manifestação de vontade em resolver o conflito antes de desencadear um processo em tribunal. Contudo, as partes podem sempre negociar os termos da indemnização ou declinar os direitos inerentes no puro império da vontade livremente manifestada. É o que se chama transacção. O que pode acontecer até antes do julgamento da acção em caso de recurso ao tribunal. Este deverá ser o da comarca do local da celebração do contrato. Mais esclarecimentos devem ser obtidos juntos de um advogado preferencialmente, pelo valor litigioso contido nas preocupações aqui vertidas. Dixit.