sexta-feira, 30 de janeiro de 2009

QUANDO A VIGÊNCIA DO DIREITO É EXPRESSÃO CULTURAL

PARA HOMENAGEAR CARLOS CÔSSIO
O egologismo cossiano versus positivismo kelseniano*

Albano Pedro

(Publicado no Jornal de Angola, suplemento Vida Cultural sob título: Direito como expressão cultural)

Um dos debates pouco desenvolvido entre operadores do Direito angolano, quando desventradas as entranhas da Filosofia do Direito é o referente a ontologia das normas jurídicas. Debate este que serviria para apurar um assunto de fundo que se coloca com a questão de saber se o Direito Positivo angolano deve manter a matriz ocidental (raiz romano-germânica) ou fundar-se na cultura dos povos de Angola (matriz costumeira) e assim aproximar-se mais a natureza cultural dos angolanos, diminuindo a tensão epistemológica (comportamento-acção) nos indivíduos. Este debate que procura analisar a essência da norma jurídica é semelhante aquele que analisa, no domínio metafísico, a ratio essendi do Direito enquanto realidade social segundo as perspectivas do Positivismo Kelseniano ou Neo-positivismo e do Egologismo de Carlos Côssio. Para entender o problema revela-se imperioso destacar um esquema de análise preliminar assente em questões como: Existe alguma identidade entre o conteúdo das leis vigentes em Angola e o sentimento social e cultural dos angolanos? Servirá o Direito Positivo angolano de origem ocidental a consciências nacionais radicadas em raízes tradicionais africanas? Ou procurará o Direito Positivo angolano exprimir valores da cultura europeia num ideal de unificação das consciências ou de unidade nacional?

Para semelhantes questões Hans Herald Kelsen (filósofo e jurismetodologista alemão) baniria o conflito de compreensão in limine com a lógica básica do legalismo: A Lei é a única expressão válida do Direito Positivo. Assim, se é legítimo (por poder transmitido pelo povo) o órgão (Assembleia Nacional) que aprova as leis escritas, logo é legítima a sua vigência, não importando quem esteja satisfeito ou insatisfeito com as mesmas. Assim, a situação em que se envolveu o antigo Governador da Província do Cuando Cubango (vide caso Kamutukuleni julgado em Angola pelo Tribunal Supremo que expõe a morte de velhos acusados de feitiçaria por suposta ordem daquela autoridade administrativa) na necessidade de se decidir entre a imposição das regras do costume e a vigência imperativa das Leis revela um conflito jurídico desnecessário, visto que a Lei é aqui um imperioso, incontornável e absoluto instrumento de socialização (o que torna válida a condenação por crime de homicídio contra o mesmo nesta óptica). Eis a posição de Kelsen, também conhecida por Positivismo Legalista ou Positivismo Kelseniano e feita trave mestra de todos os sistemas jurídicos romano-germânicos vigentes em quase toda a Europa continental e países colonizados donde o Direito Positivo angolano. A Lei “como realidade pura e dura” (para parafrasear o urbanista angolano Cláudio Furtuna) é vista em Kelsen com a lupa das ciências exactas passeando toda a sua ostensiva geometria ao ponto de afastar materialmente as demais fontes do Direito como Direito Costumeiro (apenas necessária quando comporta normas conforme a Lei consuetudo secundum legem), Jurisprudência (as decisões dos tribunais são validadas pela própria Lei) e a Doutrina (como já mera opinio iuris sem por isso mesmo qualquer influência reformativa sobre a Lei vigente). É contra esta corrente, insensível a humanização das regras de sociabilização, que se opõe uma outra: Teoria Egológica do Direito ou Egologismo. Devido a perspectiva cultural que toma o nosso estudo impõe-se a análise do problema colocado a partir desta visão conceptual do Direito de Carlos Côssio.

Carlos Côssio nasceu na Argentina. Tendo concluído a sua formação em Filosofia foi, contudo, aluno do próprio Kelsen a quem viria replicar através do ensino da Filosofia do Direito. A primeira vista a terminologia que concebe para identificar a sua corrente trai a nossa compreensão arrastando-nos a um conceito próximo referente a preservação do meio ambiente. Porém, Carlos Côssio preocupa-se com algo mais profundo – enquanto centro da própria existência natural – o homem, o sujeito, o ego. E o determina como base da origem da norma, da acção legal e do comportamento jurídico. Como bom discípulo procura não discordar dos ensinamentos do mestre senão com a augusta pretensão de aprofundá-lo como o fez Platão em relação a Sócrates. Por isso, Carlos Côssio não levanta problemas como os relativos a crise instrumental do direito como os que surgem quando nos remetemos a análise comparada entre os Direitos romano-germânicos e os Direitos anglo-saxónicos em que se debatem e rebatem postulados lugares-tenentes como a oralidade e a escrita como fundamentos da positividade jurídica. Ao invés, Carlos Côssio justifica a Lei como instrumento suficiente de sociabilização humana.

Quando Hans Herald Kelsen sustentou que a validade do Direito consiste na unidade normativa do sistema, ou seja, que apenas a coerente concatenação de ponta a ponta entre a Constituição, as leis ordinárias e os regulamentos passando pelas sentenças judiciais e actos administrativos emitidos com base neles se exprime como norma fundamental necessária a validade do sistema jurídico, Ota Weinberg reagiu dizendo que a validade de um sistema jurídico não está na ordem jurídica mas nas instituições sociais. È preciso, diz este filósofo alemão, alargar o campo de observação para as instituições sociais, como o Estado, a família, a propriedade privada e outras para obter a validade jurídica; a validade de um sistema normativo como ordem jurídica é um facto sociológico-institucional, que só pode ser conhecido mediante observação sociológica.

Carlos Côssio porém adentra-se na análise da validade do sistema jurídico e proclama uma nova visão em três dimensões: O Sentido da Conduta Humana, O Tempo Jurídico e a Intersubjectividade. A validade da norma assenta na legitimidade e isto está não no sistema jurídico mas em cada cidadão. É o que Carlos Côssio entende por Direito Subjectivo. É desnecessário fazer das normas precedentes a base das normas em vigência pois não há qualquer garantia que o legislador tenha uma ideia coerente de unidade jurídica ao ponto de nesta se desencantar a validade do sistema. Portanto, as pessoas agem de acordo com o direito que tem introjectado nelas e não conforme a norma vigente e é isso o critério não só da validade como o da justiça. Não se conseguirá uma decisão mais coerente conforme a Lei do que aquela que se funda no ego humano. E é isso a realidade! A norma gélida e imóvel no momento da sua entrada em vigor é porém animada pelas relações de choques entre os sujeitos. Do plano estático transfere-se para o plano móvel através da conduta, do juízo dos próprios agentes do Direito.

Mais. O critério da validade deve ser subjectivo, porque o Tempo Jurídico é sempre virtual. O Juiz não julga no tempo em que realmente aconteceu o acto, logo o tempo não é real para que a norma jogue o papel de validade absoluta como desejado pelo Professor Kelsen. Até ao julgamento, verificam-se vários processos, passa muito tempo, sendo possível neste lapso de tempo que a conduta por julgar deixa de ser censurável (deixa de ser crime por exemplo) e até mesmo perder o sentido da conduta humana. É por isso, lógico que cessant ratione legis cessant lex ipsa.

Finalmente, a intersubjectividade como determina o egologismo é a base das relações sociais estabelecidas pelo Direito. O homem não é senão uma plataforma egocêntrica a qual repousa o “cosmos” da valoração ética e moral da norma pública ou privada geometricamente concebida e “parida” do âmago do poder público enquanto mecanismo consensual de sociabilização da comunidade. É pois, na relação entre um indivíduo e outro que nasce o juízo concreto da norma, a sua oportunidade histórica, a sua validade.

Carlos Côssio terá sido um pioneiro na humanização da norma jurídica? Te-lo-ia, decerto, se o jus naturalismo ao longo dos séculos não reclamasse já de tamanho realismo no processo de validade das normas jurídicas. Com efeito, a questão da validade é subjectiva na medida em que o homem é o critério do que seja justo. Já Emmanuel Kant quando proclamou “Age de tal modo que a máxima da tua ação se possa tornar princípio de uma legislação universal.” como base da percepção jurídica, segundo juízos apriorísticos derivados do imperativo categórico, terá seguramente pensado a subjectividade normativa como critério da expressão formal do Direito.
Nos quimbos (enquanto microcomunidades socioculturais angolanas) o direito é pensado e materializado segundo padrões subjectivos da realidade cultural como de resto é a natureza ontológica do Direito Consuetudinário. Que falar então da regra do precedente judiciário que anima os direitos de raiz anglo-saxónicos?

Destarte, não restam dúvidas que a validade do sistema jurídico assenta na humanização da norma, sendo o Direito expressão clara da cultura dos povos. Entretanto, o mérito de Carlos Côssio está em fazer a “enxertia” do Direito Natural ao Direito Positivo, tornados numa unidade de coerência necessária.

Contudo, a teoria egológica de Carlos Côssio, não prevaleceu ante a opulência alcançada pelo pensamento do seu mestre. Hans Herald Kelsen com a sua Teoria Pura do Direito é o “deus” do Direito europeu continental contemporâneo e o mentor-mor do positivismo jurídico moderno. Sem nunca ter visto proclamado o seu “acto revolucionário” no direito moderno em 1983 Carlos Côssio faleceu.


* BIBIOGRAFIA COMPULSADA

- LARENZ, Karl – Das Problem der Rechtsgeltung, 1929, 2ª ed.;
- SAVIGNY, Friedrich K – Juristische Methodenlehere, Editada por G. WESENBERG, 1951;
- WEINBERGER,Ota – Rechtslogik, 2ª Edição, 1989; Norm und Institution, 1988; Recht, Institution und Rechtspolitik, 1987;
- CÔSSIO, Carlos – Teoría Egológica del Derecho y el Concepto Jurídico de la Libertad, 1944.

quarta-feira, 28 de janeiro de 2009

A DECISÃO DOS TRIBUNAIS EM NOME DO POVO, SEGUNDO CREMILDO PACA


Albano Pedro


Da sua recente obra técnico-literária entitulada: DIREITO DO CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO ANGOLANO lançada em Portugal sob a chancela da prestigiada editora Almedina, Cremildo Paca traz ao público angolano sobretudo a classe de juristas e legisladores, elementos de grande valia para reflexão e reforma do sistema judicial e do ordenamento jurídico angolano, sendo oportuno o debate em torno da mesma, já pela actualidade da agenda sobre a elaboração e aprovação da nova Constituição da República de Angola.

Feliz ventura, esta de ler, em pouco tempo, dois nomes (Lazarino Poulson e Cremildo Paca) lançados no mundo da literatura jurídica administrativa anunciando passagem da autoridade técnica a nova geração de juristas angolanos. A sistemática da obra reflecte a docência que exerce em Direito Público com ênfase para as matérias administrativas, embora o título confine a obra ao contencioso administrativo angolano. É sensível o rigor textual e a oportunidade técnica da terminologia usada descrevendo uma mente bem treinada e com surpreendente capacidade expositiva. Muito há para ler, estudar e analisar nesta obra, contudo o que é superior é a combinação do discurso expositivo e o indagativo. Em cada capítulo os assuntos correm em harmoniosa descrição ao mesmo tempo que são questionados ou respondidos de modo que o leitor entremeia-se num verdadeiro diálogo com o autor da obra numa leitura cumplicizante que proporciona uma compreensão em crescendo. Ao primeiro contacto com obra, não resisti o reconhecimento da magnitude do empreendimento que é de longe o mais profundo dentre os escritos jurídicos produzidos por angolanos dos últimos dez anos com excepção de muito poucas. Porém, umas das questões levantadas elevam a obra a uma categoria muito superior e o adequa ao momento histórico vivido com a organização do ordenamento jurídico angolano.

Ao abrirmos a página 55 em nota de rodapé encaramos-nos com ela: “Com que fundamento” – indaga Cremildo Paca – “Os tribunais decidem em nome do povo?”. Esta questão já se me avizinhou quando Walter Ferreira, activista social, orador e estudioso angolano em matérias políticas e jurídicas, em debate personalizado procurou demonstrar a falta de legitimidade popular dos tribunais, em termos em que os juízes deviam ser eleitos pelo povo. A lógica da inquietação assenta no facto de que representatividade do povo, por qualquer órgão do Estado é feita mediante mandato. Sendo este, sempre conferido livremente pelo povo através do sufrágio universal, directo e secreto nos termos das regras democráticas modernas. Terá o legislador angolano relevado um mandato indirecto para fundamentar está pretensão ou estaremos perante a transportação inconsciente do espírito legislativo colonial ao qual a reforma constitucional não foi suficientemente revogador para afastar a sua previsão do actual ordenamento jurídico angolano?

Tais inquietações políticas encorpadas pelo Direito levam Cremildo Paca a adiantar-se no debate sobre a questão sustentando que “ Se o legislador constitucional consagrou o princípio democrático assente nos princípios da soberania popular e da representação democrática, nos termos em que o “povo é, ele mesmo, o titular da soberania do poder, mas também o povo é o titular e o ponto de referencia desta mesma legitimação” [Gomes Canotilho, Direito Constitucional, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7ª Edição, Almedina, 2003, p. 287], a questão que pode ser levantada é a de saber se, de facto, os tribunais podem decidir em nome do povo. Na verdade, nos termos da teoria da representação democrática, o órgão a quem se confere o mandato, uma vez legitimado, age e exprime a vontade geral em nome do povo que representa. A propósito, diz Reinhold Zippelius que “o povo actua através da vontade dos seus representantes a quem confere mandato para exprimir a vontade em seu lugar” [REINHOLD ZIPPELIUS, Teoria Geral do Estado, 3ª Edição, Fundação Calouste Gulbenkian, 1997, 238]. Significa que os representantes devem ser mandatados pelo povo, porquanto é no mandato popular que reside o fundamento legitimador do poder dos representantes, bem como o poder de decidir em nome desse mesmo povo, pelo que urge indagar com que fundamento os tribunais angolanos administram a justiça “ em nome do povo” (art.º 120.º/1 da L.C), sendo que estão desprovidos de órgãos de carácter representativos, por falta de legitimidade directa, própria ou típica do princípio democrático, previsto no artigo 3º da Lei Constitucional. Ora, não havendo delegação e/ou representação formal e material do povo, a actividade e “posição constitucional do juiz não é pautada pela relação de representação ou pelo carácter de representatividade” [Gomes Canotilho, Direito Constitucional…ibidem], de tal modo que a formulação constitucional que determina que os tribunais angolanos administram a justiça “ em nome do povo”, pelo menos, não é de aceitar e é de alcance duvidoso, por os tribunais angolanos terem uma mera legitimidade legal e não democrática. Logo, não é aceitável falar-se em decisão judicial ou administração da justiça em nome do povo, como se o mesmo povo tivesse conferido mandato. Os tribunais angolanos, enquanto órgãos de soberania, decidem em nome do estado que integram e da Lei. Na verdade, quem na ordem constitucional angolana legitimamente decide e exerce poderes de representação em nome do povo são o Presidente da República (L.C, 56.º/1; 57.º/1) e a Assembleia Nacional (L.C, 78.º/1).” (vide: nota de rodapé 51, pág. 55).

Não será novidade nenhuma se sustentarmos que tal indagação nasce de um exercício de lógica elementar, i.e., é claro que se os tribunais decidem em nome do povo devem ser mandatados para o efeito. Para além de que a possibilidade de eleição popular de juízes não é completa novidade. Em alguns países os Juízes de Paz (Brasil) ou Juízes de Direito (Estados Unidos) são eleitos pelo voto popular. Da mesma forma, está fora a vulgar discussão doutrinal levantada com a questão de saber se os juízes devem ser eleitos pelo voto popular ou aceder aos cargos mediante selecção e formação orientada, donde correntes que “chumbam” o voto por permitir que a “populaça” socorrida por emoções seleccione os piores magistrados (entre velhacos, astutos e incompetentes) a semelhança de outros poderes, comprometendo gravemente a paz social mais do que é comprometida pelos restantes órgãos soberanos.

Entretanto a novidade está em que o discurso leva a descortinar o véu sobre o problema da legitimidade popular do poder judiciário como terceiro órgão soberano do Estado, que ao longo de anos e anos de estudos científicos passou encoberto aos olhos de investigadores e especialistas do Direito. De tão elementar, precisaram-se decádas, para o descobrir (situação digna do retrato essencial de ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA de José Saramago). É por isso uma conquista doutrinal para o Direito angolano e não só. Afinal, com que fundamento mesmo os tribunais sem mandato popular decidem? Eis, a paixão que desperta o discurso!

O que é certo é que Cremildo Paca ajuda-nos a retirar a venda e panoramizar o mandato dos juízes em Angola. Nos termos do artigo 44.º da Lei 18/88 – Lei do Sistema Unificado de Justiça o Juiz Presidente, o Juiz Vice-Presidente e os demais juízes do Tribunal Supremo são nomeados e exonerados pelo Presidente da República. Assim, nem mesmo se fala em legitimidade legal. O mandato é derivado de um órgão soberano – é indirecto – e portanto ensaiou, o legislador angolano, a legitimidade popular indirecta, espécie, esta de “alcance duvidoso” parafraseando Cremildo Paca.

Mesmo em países de democracia aperfeiçoada, como os EUA em que os juízes federais são eleitos entre si, estabelecendo aí o princípio da separação de poderes entre os órgãos de soberania, é no uso de autênticos poderes despóticos que o fazem com todos os títulos (meritíssimo, venerando, etc.) e “praxes” em que se escudam. Pois, se não são eleitos pelo povo como ousam falar em nome deste? Mais. Cremildo Paca ajuda-nos a perceber que no âmbito dos órgãos soberanos, o poder judicial é o único que “encravou” no tempo revelando fortes nuances dos sistemas feudais e imperiais, característicos dos reinos, ante aos sistemas democráticos modernos pontuados pela figura do Estado. Onde vem então o estatuto de órgão soberano?

A inversa também é verdade! E Cremildo Paca propõe: “Daí que, a semelhança do que se disse em relação aos tribunais, seja, também, necessário reanalisar a terminologia legal para aprovação de leis, prevista no art.º 6.º da Lei 18/93, de 30 de Julho, sobre o formulário de diplomas legais. Estará mais conforme com os princípios da soberania popular e da representação democrática, consagrados na Lei Constitucional, se, no formulário de diplomas legais, no acto legislativo parlamentar, ao invés da fórmula adoptada no formulário legal e utilizada para aprovação de leis, se consagrar a seguintes redacção: “Nestes termos, ao abrigo do artigo 88.º da Lei Constitucional, por mandato do Povo (ou em nome do povo), a Assembleia Nacional aprova a seguinte Lei”. Só com base na formulação proposta e os tribunais a decidirem em nome do Estado e da Lei, estaremos a preencher as dimensões materiais e as “dimensões organizativo-procedimentais” [Gomes Canotilho, Direito Constitucional…ibidem] dos princípios da soberania popular e da representação democrática na ordem constitucional angolana.” (vide: nota de rodapé 51, pág. 55). E não é verdade? Se os órgãos soberanos eleitos pelo povo exercem o poder em nome deste, porque não decidir sempre em nome do povo? Porque não os próprios parlamentares sempre que aprovem um diploma legal? Porque não assinar o diploma legal “em nome do povo”. Finalmente, o presidente da República, em nome do mandato popular, nunca devia falar em seu nome pessoal!

Que dizer pois, do discurso proposto? Desde logo Cremildo Paca aparta-se da orientação metodológico-legalista do Direito procurando desfazer-se dos modelos rígidos dos sistemas políticos e de governo clássicos. Abandona a navegação cega dos neo-positivistas kelsenianos e integra a esquerda jurídica em meio ao legalismo rígido das “escolas” do Direito angolano pela proposta de reforma jurídico-legal e cria uma “ruptura epistemológica” (parafraseando o sociólogo angolano Rafael Aguiar) com a sua geração isolando-se numa frente nova. Esta postura técnico-literária tem desde logo de ser novidade! E é de facto! Em Portugal onde a obra foi lançada, corrente sobre a legitimidade dos juízes começa a fazer escola pela novidade que traz. Ter esgotado nas bancas ao primeiro lançamento é uma justificação óbvia. Não é por acaso que o ilustre Marcelo Rebelo de Sousa, proeminente jus-publicista português atesta em posfácio que “É, pois, bem-vinda a publicação destas lições, além do mais pioneiras e promissoras.” Finalmente, Cremildo Paca inscreve a sua obra na primeira fila de escritos técnicos com importância doutrinal para o universo jurídico nacional e internacional. Que sirva sobretudo aos legisladores a bem da nação!

domingo, 25 de janeiro de 2009

O ERRO MÉDICO
E A RESPONSABILIDADE DECORRENTE DO EXERCÍCIO DA MEDICINA

Albano Pedro*

(Texto publicado no semanário A CAPITAL)

Já na antiguidade se verificava a preocupação sobre a responsabilidade decorrente da actividade do Médico. O Código de HAMURABI previa inter alias disposições como «Se um médico trata alguém de uma grave ferida com a lanceta de bronze e o cura ou se ele abre a alguém uma incisão com a lanceta de bronze e o olho é salvo, deverá receber dez siclos.» ou «Se um médico trata alguém de uma grave ferida com a lanceta de bronze e o mata, ou lhe abre uma incisão com a lanceta de bronze e o olho fica perdido, dever-se-lhe-á cortar as mãos.» ou ainda «Se o médico trata o escravo de um liberto de uma ferida grave com a lanceta de bronze e o mata, deverá dar escravo por escravo.». Dados da Mitologia Grega apontam para um cuidado especial neste sentido, no nascimento da Medicina, quando Apolo ordenou ao Centauro Quiron que ensinasse a Asclépios, filho de Zeus, a curar as doenças dos homens, utilizando “fármacos suaves” ou “incisões adequadas” donde PHARMAKON com o duplo sentido de medicamento e veneno, entendido modernamente como “droga”. O monumental código deontológico de Hipócrates que estabelecia o juramento do profissional de medicina como condição da sua felicidade ou desgraça profissional definiu parâmetros meticulosos sobre a responsabilidade do Médico. Na África sub-sahariana pré-colonial, os sangradores (especialistas em aplicação de ventosas e sanguessugas), parteiras tradicionais, xinguiladores, curandeiros e outros especialistas de medicina vulgarmente conhecida como tradicional eram facilmente convertidos em malfeitores catalogados como feiticeiros e como tal sancionados se dos seus actos decorressem prejuízos graves, irreversíveis e não justificáveis contra a integridade física do paciente. Com a colonização, os sangradores e curandeiros em contacto com a civilização europeia passaram a expandir o exercício dos seus ofícios mediante licenças concedidas pela administração sanitária pública para controlo e responsabilização dos mesmos.

Entretanto, ao longo dos séculos o mundo se recusou a tipificar em pautas normativas específicas com carácter de Lei a responsabilidade do Médico decorrente da sua actividade. Por um lado, porque até a implantação do Estado Constitucional, a defesa de direitos era monopólio do poder dominante. Por outro lado, porque apenas com a chegada do moderno processo a prova passou a ser a base de validade efectiva na defesa de direitos. Haverá que reflectir igualmente que este profissional foi sempre visto como um semideus; aquele a quem cabe o papel de preservar e até salvar a própria vida quando nenhum outro mortal o pode; assim como pouco se configurou a ideia de que entre a frieza de um cirurgião e a sanguinolência de um estripador está a separar uma linha ténue sustentada pela moralidade consagrada pela deontologia profissional daquele.

Com o advento da alta tecnologia, desapareceu o Médico de família; o infalível profissional que merecia a cumplicidade até dos parentes da vítima ao ponto do erro fatal ser admitido como um sinal de vontade divina, e deu lugar ao médico de equipa ou médico de plantão. Surgiu a empresa-médica e com ela a complexidade da relação médico-paciente intervindo nela outros sujeitos (psicólogos, psiquiatras, farmacêuticos, enfermeiros, biólogos, químicos, etc.) numa cadeia de especialidades e tarefas multidisciplinares. Surgiu também o direito ampliado nos seus mecanismos a disciplina-la, como faz com qualquer outra relação social, e se oferece como um escudo protector para o profissional que se vê vulnerável ante a susceptibilidade do erro humano e a responsabilização desta decorrente e para a vítima retirada do convívio social ou diminuída a sua capacidade de nela tomar parte, operando os limites da acção voluntária e a base da responsabilização em geral através de dois domínios, a saber: O domínio da Responsabilidade Civil e o domínio da Responsabilidade Penal ou Criminal.

É entendimento comum no domínio da Responsabilidade Civil que «aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação» (art.º 483.º do Código Civil – doravante CC). A amplitude do conteúdo da norma é suficiente para tornar o Médico vulnerável a sua previsão. Contudo, virá a questão de saber que direitos, pode, o Médico violar no exercício da sua profissão? Ora, na relação Médico-paciente patenteia-se desde logo a ameaça de lesão ou lesão efectiva de direitos inerentes a personalidade do paciente. Sendo que, o dano ou a simples ameaça de dano poderá emergir da integridade moral (moléstias psicológicas, transtornos psíquicos, etc.) e da integridade física (ofensas corporais com ou sem risco de vida, homicídio involuntário, etc.) projectados em fases diversas da assistência médica como na consulta (o médico não diagnostica convenientemente o paciente receitando inoportuna profilaxia), nos serviços de urgência (discrepância notória entre a necessidade médica do paciente e o dinamismo do Médico apontando ao insucesso da assistência), ou nos cuidados intensivos e operações clínicas de risco (a gestante forçada a abortar por erro de diagnóstico do estado do feto, incisão em local incerto afectando órgão saudável durante a cirurgia, diagnóstico precário resultando na amputação de membro, etc.). Situações que a moderna medicina denomina genericamente como erros iatrogénicos. Erros médicos que, devido à imprudência, imperícia ou omissão do acto médico, possam provocar ou causar uma lesão ou doença ao paciente, de modo irreversível, com prejuízo ligeiro ou grave das funções vitais do ser humano. Resultando que em qualquer das fases do contacto com o paciente o Médico pode ser responsabilizado pelos danos que eventualmente venha a causar àquele por qualquer um destes erros.
Em caso de morte ou lesão corporal a responsabilidade do Médico pode ser abstraída da Lei (art.º 495.º do CC), determinando que a morte do paciente causado pelo Médico desencadeia o dever de indemnizar deste cobrindo as despesas feitas para salvar o lesado entre outras. Mesmo quando haja lugar a simples lesão corporal o dever de indemnizar cobrirá as despesas feitas por todos aqueles que socorreram o lesado, bem como os estabelecimentos hospitalares, médicos ou outras pessoas ou entidades que tenham contribuído para o tratamento ou assistência da vítima; valerá ainda para aqueles que podiam exigir alimentos ou aqueles que o lesado os prestava em cumprimento de uma obrigação natural.
Claro está que os requisitos de responsabilização maxime em situações extracontratuais obedecem a um ritual nominativo que atravessando o facto jurídico (facto relevante para o direito), a ilicitude (acto contrário a lei), a imputação do acto ao lesante, o dano e o nexo de causalidade (o elemento que liga o acto praticado e o dano causado) e coroada pela culpabilidade (susceptibilidade de ser censurável, visto existirem pessoas como menores de idade e dementes que não podem sê-lo em tese geral) corresponde a um todo cumulativo sem o qual não é possível a responsabilidade civil do Médico. Vale sublinhar que embora a obrigação do Médico se inscreva na classificação das obrigações de meios ou de diligência, onde o próprio empenho do profissional é o objecto do contrato não importando, em consequência, que garanta o sucesso ou resultado da actividade em concreto decorrente do eventual contrato entre ele e o paciente, haverá lugar a culpabilidade pelo acto médico que decorrerá da negligência, imperícia e imprudência normalmente determinável pelo grau de previsibilidade do dano pelo autor.

No domínio da Responsabilidade Penal o processo embora potencialmente símil, no que toca aos requisitos da responsabilização, apresenta características diversas. Assim, enquanto a responsabilidade civil se reporta teleologicamente a indemnização ou a reposição do status quo ante quando possível, a responsabilidade penal visa a pena, normalmente de privação da liberdade. A responsabilidade civil é accionada pelo interessado (lesado ou seu representante) e a responsabilidade penal quando casos graves como a morte do paciente e todos aqueles genericamente enquadrados nos crimes públicos é accionado por qualquer interessado cabendo ao Ministério Público assumir a causa sem interesse em transigir, visto estar em causa interesses públicos de preservação de valores.

Os factos criminais resultantes de erros iatrogénicos são em geral tipificados como crimes involuntários. V.g.: o homicídio involuntário – art.º 368º do Código Penal – doravante CP (a cirurgia ou a receita negligente com a consequente administração de medicamentos que resulta na morte do paciente) e ofensas corporais involuntárias – art.º 369º do CP (agressões físicas e lesões resultantes da actividade do médico sobre o paciente quer em caso de cirurgia quer em caso de mera consulta – vide o caso da ruptura do útero e consequente sofrimento fetal agudo provocado pelo uso de ocitócicos em gestantes que já fizeram cesarianas em parto (s) anterior (es) ou o aborto provocado por razões médicas que leva involuntariamente ao corte da (s) trompa (s) inutilizando de modo irreversível os órgãos reprodutores femininos). Haverão crimes como o de envenenamento (art.º 353º do CP) em que a involuntariedade do acto médico é questionável e em geral resultantes da receita e consequente administração de medicamentos impróprios ou em doses excessivas causando intoxicação grave e/ou morte por este facto.

E nos casos em que o Médico ciente da falta ou escassez de meios adequados para socorrer o doente em estado grave, sobretudo em eminência de morte, se vê confrontado com o dever deontológico-legal de assistência e com a omissão por incapacidade objectiva? Há situações em que o acto médico poderá configurar-se em estado de necessidade ou conflito de interesses como causa de justificação civil ou penal. É o que se passa nos casos de serviço de socorro em situação de urgência; na assistência médica em conflito armado ou operações militares intensivas, crises humanitárias ou situações de êxodo humano forçado e noutras situações em que por imperativo legal ao Médico sê-lhe subtrai o poder de decisão ou de exercício livre da vontade em favor do dever legal.

Em homenagem ao princípio da suficiência do processo penal o Médico que cometer um crime por erro iatrogénico poderá ser civil e criminalmente responsabilizado em processo judicial a correr em tribunal com competência penal, donde, a pena eventual de prisão e o consequente dever de indemnizar por danos de natureza civil, sem prejuízo das questões prejudiciais que limitem o poder de cognição do juiz penal. Daí o dever do Ministério Público em averiguar os pressupostos para ambas as responsabilidades. É o que estabelece o parágrafo único do artigo 158.º do Código de Processo Penal nos termos do qual «Na instrução deverão, tanto quanto possível, investigar-se as causas e circunstancias da infracção, os antecedentes e o estado psíquico dos seus agentes, no que interessa à causa, e ainda o dano causado ao ofendido, a situação económica e a condição social deste e do infractor para se poder determinar a indemnização por perdas e danos». O Médico só não será punido se a prova conduzir a conclusão de que todo empenho foi inútil face ao resultado inexorável, quando, como especialista idóneo, agiu com a lex artis, ou seja, usou de manifesta prudência e engenhosidade reforçado por meios actuais e não contra-indicados, suprimindo inelutavelmente a probabilidade da ocorrência do erro iatrogénico.

Sendo certo que ao médico não se pretende insuflar o espírito de perigosidade da prática da sua profissão, valendo sim o aviso que o Médico tal como um outro profissional ou mero cidadão está sujeito a Lei e as consequências da sua inobservância, haverá que se recomendar à classe médica que desencadeie e impulsione o espírito legislativo e regulamentar em torno da actividade médica e das condições do seu exercício na medida em que a falta de legislação específica para regular a actividade médica e o exercício da Medicina constitui uma situação de risco para o exercício desta actividade em Angola; a inexistência de um Direito Médico Angolano susceptível de prever, em determinados casos, causas justificativas ou de exclusão de culpa conducentes a redução ou extinção do valor sancionatório das condutas negligentes ou imprudentes dos profissionais de medicina torna os médicos vulneráveis a duras previsões legais em matéria de responsabilidade nos termos em que o são quaisquer outros cidadãos por sujeição ao ordenamento jurídico-civil e jurídico-penal comum. O que representa desigualdade de tratamento visto que a equiparação legal do comum dos homicidas ao bem intencionado médico que comete o crime de homicídio por erro iatrogénico, mesmo quando concorram circunstâncias atenuantes em favor deste, é no mínimo desproporcional e como tal injusta. Dixit.

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* jukulomesso@yahoo.com.br
QUESTÕES PÚBLICAS DO DIREITO ANGOLANO
O problema da moral no exercício de direitos humanos fundamentais

Albano Pedro

(Texto publicado no Semanário A CAPITAL)

Várias escolas teóricas nasceram a propósito da relação de precedência entre o Direito e a Moral. A do “mínimo ético” é a mais proeminente delas. Exposta pelo filósofo inglês Jeremias Bentham e aperfeiçoada por vários autores, dentre os quais, o alemão Georg Jellinek está teoria procura aclarar a ideia de que em toda a norma jurídica esta imanente uma regra moral. Ensaio esta abordagem a propósito de uma questão desenvolvida em televisão (Entrevista apresentada pelo canal 2 da TPA a 19 de Maio de 2008) pelo meu par nas lides do Direito, Lazarino Poulson, o qual, a dado passo da entrevista, defendeu a ideia próxima da necessidade de, no comportamento interactivo dos cidadãos, dever invocar-se mais a Moral que o Direito, visto que o simples cidadão despido da mais estruturante ideia da coisa jurídica não está preparado para defender-se com normas em face a demanda social na composição de conflitos e imposição de interesses. Esta ideia também defendida, em entrevista radiofónica, em tempos que levam anos pelo então Procurador Municipal Moisés Moma Capeça, também meu par nas lides do Direito, em termos de ser expressa como a sociedade angolana regista uma gritante falta de cultura jurídica razão pela qual os criminosos superabundam, levanta um debate que propõe um discurso jurídico organizante, visto que esta corrente se generaliza a galope pela perigosa superficialidade com que trata o fenómeno jurídico no social angolano.

Nos dias que correm, é de defensibilidade precária a ideia de que a Moral deve ser invocada antes do Direito no quadro dos comportamentos sociais. Este pensamento pretende a pretensa ideia de que numa sociedade estatalizada a Moral é de relevante necessidade. Não é assim desde o iluminismo contratualista de John Locke, Jean-Jacques Rousseau, Voltaire, Montesquieu e outros importantes nomes em que se pensou no Estado como uma entidade integradora de vontades formalizadas pela Constituição, tornando-se, esta no principal acordo entre os homens e ipso facto no Código de conduta das sociedades desde então. A Estatalização das sociedades modernas retirou, há muito, a pretensão medieval de se fazer conduzir as sociedades humanas através dos supremos ditames da Moral laudamente defendidos pelas regras religiosas infundidas pelo catolicismo romano. Com a organização das sociedades modernas na modalidade de Estado, a sociedade estabeleceu-se e organizou-se em termos de ser permitido um único instrumento de conduta dos homens: o Direito.

É pois certo que a Moral é uma realidade necessária a manifestação do Direito. É uma verdade de inelutabilidade tal que não existe Direito sem Moral. Esta é uma realidade substantiva àquela donde a ideia Espinosiana de realidade sub estante, i.e., aquilo que está por detrás, ou o que sustenta. Não sendo de aceitabilidade gratuita a ideia de existência de uma norma jurídica se quer cuja integração sistemática no conjunto normativo do Direito não seja assistida pelas mais elementares bases da Moral, sendo por isso uma realidade anterior a própria conduta jurídica. É assim que a Boa-Fé, enquanto reservatório de toda acção do Moral, se tornou no princípio estruturante de todo Direito, amplamente identificado no Direito Privado, quer inspirando os actos quer estruturando os contratos com outros princípios a ele devedores como o da Liberdade Contratual, da Vinculatividade, da Pontualidade (Pacta Sunt Servanda), da Irrevogabilidade e Intangibilidade, da Estabilidade (Rebus Sic Stantibus), da Prioridade Temporal da Constituição ou Registo das Relações de Créditos entre outros. Ainda no domínio dos contratos, enquanto realidade dominante no mundo jurídico, constatamos que pela base da Moral (representada pelo Princípio da Boa-Fé) são admissíveis importantes desvios aos princípios da Vinculatividade, da Pontualidade e da Irrevogabilidade e Intangibilidade através da instrumentalização de regras contratuais como a Reserva de Propriedade (Pactum Reservati Domini), a Excepção do não Cumprimento da Obrigação, a possibilidade ex-lege da Resolução do Contrato entre outros importantes engenhos legais. Para sustentar a estreita relação entre a Moral e o Direito muitas figuras e exemplos podem ser chamados a colação com toda a facilidade que permite a operação mental de um Jurista, sem deixar de referir que a própria materialização social do Direito só é possível pela conduta moral dos indivíduos e mesmo das instituições, quando juridicamente pessoalizadas.

Defender um projecto discursivo nos termos do qual se pretende entender a Moral como uma realidade socialmente invocável é admitir a rotura contratual dos homens através do Estado e aceitar o recurso ao passado histórico bíblico ou darwiniano em que as sociedades humanas estavam próximas do exercício instintivo da coexistência social. Vem daí que, não há anomalia nenhuma quando o comportamento do cidadão angolano é infestado pela invocação e convocação quase crónica do Direito e seus comandos em todos os seus actos, sobretudo em face das instituições públicas. O problema estará certamente na disfuncionalidade do Estado angolano que se capacitou e se especializou como um instrumento cerceador dos mais elementares direitos dos cidadãos, quer pela inoperância do sistema de justiça quer por ineficácia das instituições públicas em geral ao ponto dos cidadãos se sentirem na obrigação de os reclamarem continua e progressivamente.

Em Estados organizados o cidadão, embora consciente dos seus Direitos, não tem necessidade de os invocar pelo simples facto de ter as instituições judiciais e administrativas do Estado em pleno funcionamento. A própria sociedade civil organizada, multisectorizada e maturada pelo senso de justiça social surge muitas vezes muito mais interessada na defesa dos direitos dos particulares ao ponto de suavizar a necessidade de recurso particular ao expediente legal ou jurídico. Não é, infelizmente, o caso de Angola em que o cidadão empobrecido e entregue a si mesmo pelo Estado – enquanto pessoa jurídica de condão comportamental público – com cariz ora errante ora predador (subsídios colhidos da obra Abordagem Metodológica das Classes Sociais em Angola, da autoria do eminente cientista político angolano Nelson Pestana “Bonavena” publicado na Revista LUCERE – revista académica da UCAN, 2 de Junho de 2005, páginas 55 a 71), se obriga a auto-tutela de todos os seus interesses chegando mesmo a se ver muitas vezes no dever sobrevivencial de se defender contra o próprio Estado.

Vem deste raciocínio que o Estado angolano, actualmente resistindo de modo regular na veste de Estado-Predador (embora eventualmente esta historiometrização não coincida com a do autor ora citado) e muitas vezes se elevando ao sumo estatuto de Estado-Criminoso, passe a marginalização do princípio penal societas delinquere non potest, sempre criou argumentos relevantes para o simples cidadão se ver constantemente ameaçado. Este, fartas vezes se vê espoliado, usurpado, vilipendiado e até economicamente empolado pelo próprio Estado. São exemplos patentes, que perfilam aos milhares, os casos das expropriações abusivas de moradores dos bairros da Boavista, Cambambas e tantos outros em Luanda e outras províncias de Angola sem quaisquer compensações dignas de um cidadão como tal, a greve mais duradoura do mundo operada pelos trabalhadores da extinta ANGONAVE terminou impune como todas outras ilegalidades, abusos de direitos e mesmo barbaridades protagonizados pelos senhores do poder. Não estranha por isso que a par da invocação constante do Direito o cidadão se faça socorrer de uma gravosa e quase inexplicável incredulidade para com as instituições do Estado e para com todo o sistema de justiça material angolano. Dixit.

JUSTIÇA ADMINISTRATIVA ANGOLANA

EM LAZARINO POULSON E CARLOS FEIJÓ


Albano Pedro

(Texto publicado no Semanário A CAPITAL)

Quando liguei a felicitar Lazarino Poulson como co-autor da obra lançada com o sugestivo título: A JUSTIÇA ADMINISTRATIVA ANGOLANA fi-lo com a satisfação de quem viu o mercado da literatura jurídica um pouco mais evoluído e sensação de ver compensada a minha apatia na publicação de textos compilados por um irmão nas lides académicas. Embora em co-autoria, Lazarino Poulson passou assim da primeira fase da produção literária jurídica (comentar Leis) para segunda fase (expor e comparar pensamentos – próprio das teses académicas), virá num futuro, espero, a terceira geração de escritos (contribuição para o pensamento jurídico universal por proposta efectiva para a reforma doutrinal dos pequenos aos grandes agregados jurídicos) a pulsação do seu raciocínio jurídico assim prognostica. De resto, acompanhado de Carlos Feijó, a quem reconheço vocação jurídica e empenho doutrinal é um importante passo. Ademais, o pioneirismo demonstrado com a publicação dos escritos compilados como PENSAR DIREITO é encorajador para a nova geração de juristas em que tomamos parte e uma importante lição para aqueles que carregam o título de jurista sem qualquer peça escrita posta ao consumo público.

Num país, como Angola, em que as atrocidades legais e a cultura da impunidade entre os entes públicos são moedas correntes, A JUSTIÇA ADMINISTRATIVA ANGOLANA chega a ser um grande desafio temático. Se, entretanto, pensarmos que nele encontramos a panaceia, estaremos “engravidados” de ilusões! Enquanto professor comum, Carlos Feijó ensinou-nos a delimitar os temas por abordar. Técnica suficiente para nos desembaraçar das questões “irrespondíveis” que a nossa intervenção pública possa suscitar! Os autores lançaram está técnica em disparo frásico na composição do prefácio. Entende-se! O livro nasce como uma compilação de lições ministradas no 5º ano de Direito na especialidade das ciências jurídico-políticas da Faculdade de Direito da Universidade Agostinho Neto cumprindo um fim fundamentalmente académico. Nada de visão casuística ou análise de factos integrados na dinâmica diária das actividades da administração pública, nada de percepções sobre os “choques” causados na relação entre particulares e órgãos da administração pública, nada de processos visíveis e chocantes que demonstrem as desgraças em que mergulham os cidadãos petulantes que ousam desafiar titulares de órgãos públicos no exercício das suas funções, enfim nada da dinâmica dos tribunais na decisão de questões judiciais que resultem da propositura da acção por simples indivíduos a pedir a condenação de um Ministério das Finanças ou Educação, um Governo Provincial, uma Administração Municipal ou Comunal ou equivalente. Nada disso! A visão é meramente formal como convém ao procedimento académico e as lições orgânicas dos cursos universitários. O livro é um conjunto metódico de proposições científicas. Por isso definições, por isso raciocínios comparados, por isso opiniões e discussões de autores. A delimitação temática, de tão zelosa, apartou-se mesmo da possibilidade de um Direito Processual Administrativo ou Direito do Contencioso Administrativo e os autores cruzam ao direito e as avessas a percepção dos leitores quando ao sustentar que a obra não está apenas para matérias substantivas ou adjectivas não delimitam propriamente as “lições” de justiça administrativa angolana ao nível da lógica judicial sugerida pelo título.

A obra demonstra um curso enriquecido desde que, há menos de décadas, foi institucionalizado no último ano de licenciatura. Adivinho a surpresa de Lazarino Poulson ao encarar o texto que corre. Durante os nossos encontros como colegas de carteira ficaram delimitados os nossos campos de intervenção jurídica. À minha preocupação em assuntos jurídico-filosóficos mergulhada em raciocínio abstracto opunham-se a visão de fluidez tecnocrática sobre o mundo jus-publico aparelhada pelo raciocínio geométrico de Lazarino Poulson. Nossas conversas e trocas de opiniões foram, por isso, de natureza complementar e sem conflito opinativo, conservando no imo individual uma excelsa admiração de génios recíprocos. Porque entro no campo próprio de meu confrade e equevo?

A sugestão do título é por demais provocante. Embora lições já estudadas com escassas novidades temáticas, esperei uma abordagem alargada dos assuntos apresentados como de resto meu génio científico solicita de todas as obras com que contacto. Claro está que, ao ler a obra não me perdi em buscas milimétricas dos temas que A JUSTIÇA ADMINISTRATIVA ANGOLANA apresenta ao leitor. Preocupei-me em procurar a visão sobre um dos assuntos mais polémicos da justiça administrativa angolana, na esperança de uma luz para a sua resposta. E o facto da obra estar a disposição de juristas, magistrados e sobretudo decisores políticos alimentou a minha expectativa neste sentido. Como prato servido ao consumo de um público intelectual mais alargado, era razoável que os juristas da praça angolana e não só percebessem a partir dele os profundos embaraços que expõe o problema da inexecução das sentenças judiciais administrativas. Porém os autores foram cautelosos em grafar o título como lições. Sim! Lições sobre a realidade formal da justiça administrativa angolana, o que reduz a obra num plano puramente fotográfico da realidade formal jurídico-legal angolana digna de mero instrumento de consulta aos discentes.

Para alargar o debate ao público (para além dos estudantes finalistas de licenciatura em Direito) como foi a pretensão dos autores é preciso polemizar! E a inexecução da sentença, como problema fundamental do sistema de justiça administrativa angolana, é, para tanto, indispensável. Ora como se produz este problema? É preliminar perceber que em qualquer propositura de uma acção ao tribunal ou recurso judicial é esperado a plena integração do objecto da relação controvertida submetida a apreciação do juiz com o supremo objectivo de realizar o sentimento de satisfação produzido pela realização da justiça. Resolver os conflitos que opõe as partes por aplicação justa da Lei é o objectivo supremo de qualquer tribunal e a satisfação da parte beneficiada com a justiça feita o fim último da paz social! Este ideal ocorre em todas as formas de processo judicial menos em processos em que a administração pública intervém como condenada sem se despir dos poderes de jus imperi que lhe são reconhecidos publicamente. Eis o problema de fundo do sistema de justiça administrativa angolana! Para esta questão, pontuado pelo dever de executar a sentença judicial, os autores, embora rabiscando, com visível timidez, visões comparadas de autores como o omnipresente administrativista português Freitas do Amaral e com as necessárias insuficiências impostas pelo fim do livro, arriscam um pronunciamento: “É um problema difícil e complexo…” (vide pág: 160) e reconhecem a dificuldade do sistema por assente no contencioso de mera anulação, que consiste no facto de o tribunal apenas anular o acto recorrido sem obrigar a administração pública a executar a respectiva sentença judicial.

Com efeito, segundo o nosso sistema de justiça administrativa a administração pública é reservada a possibilidade de “desobedecer” justificadamente a decisão do tribunal, abandonando o particular que venceu a causa numa incontornável frustração. É o que se chama Inexecução da Sentença Judicial. Situação que ocorre sempre que o órgão da administração pública condenado invoca o interesse público como causa da inexecução da sentença judicial. Quem não se lembra do caso da antiga Reitora da Universidade Agostinho Neto, a Doutora Laurinda Hoygaard? O processo de pedido de reintegração ao cargo de que foi afastada que venceu magistralmente com recurso ao Tribunal Supremo tornou-se pura e simplesmente inexequível por que a administração pública (então representada pelo Ministério da Educação) invocou como causa o possível prejuízo público que adviria do cumprimento, por aplicação, da sentença judicial proferido pela mais alta instância judicial angolana. Assim, não foi reconduzida ao cargo de Reitora daquela universidade apesar de ter ganho a causa na justiça. Pior ainda: a causa da inexecução da sentença, normalmente fundada no interesse público, não é clara visto que a Lei não define o interesse público deixando ao arbítrio da administração pública propô-la em juízo e ao critério abalável do juiz da causa a sua definição. Percebe-se o problema?

E o problema de fundo, em segundo grau, é estoutro: como falar de Estado de pleno Direito quando a administração pública em certos casos está acima da Lei? (se a inexecução da sentença é um facto legal, não o são as causas dela muitas vezes abstraídas por exercícios hermenêuticos falhos sobre o confuso e “tristemente célebre” interesse público como um dos muitos conceitos gerais e abstractos no sistema jurídico angolano). Os nossos autores não debitam nem afiançam qualquer raciocínio próprio neste sentido! Entretanto uma proposta teórica para auxiliar no esclarecimento da gravidade da questão é necessária e urgente para que obra venha a integrar o domínio da Doutrina como fonte de Direito (opinio iuris) e sirva efectivamente a decisores políticos (enquanto reformadores do status quo) como é pretendido pelos autores. E Carlos Feijó tem “estômago” suficiente para tragar em doses aceitáveis as preocupações de tamanha grandeza prática para corporizá-las em linhas temáticas, já pela sua cumplicidade na materialização dos diplomas legais em causa. E os leitores atentos certamente aguardam com expectativa, que o faça noutros passos ou momentos da sua evolução literária, compreendendo que Lazarino Poulson é neste particular o que Platão foi para Sócrates.

Se A JUSTIÇA ADMINISTRATIVA ANGOLANA for vista num ângulo puramente académico nossos subsídios não são suficientes para abalar a magistral capacidade métrica na evolução concatenada das matérias que sustentam as 23 lições da obra. É visível a partilha da estrutura formal do discurso jurídico habitual na oratória de Carlos Feijó, e identificado nas exposições de Lazarino Poulson, com a qual arrebatam as atenções de leigos em ciências jurídicas. A conclusão é: Leitura fácil, instrutiva e agradável! E se o essencial para a compreensão das principais matérias avizinhadas ao contencioso administrativo está exposto, respondo a inquietação prefácica dos autores que: não há qualquer falha na vossa jornada! Ad perpetuam rei memoriam!

CARTA AOS PARTIDOS POLÍTICOS XIV

Albano Pedro

(Texto publicado no Semanário A CAPITAL)

Não há dúvidas de que o processo de selecção “desnatural” dos partidos políticos concorrentes as eleições desencadeou estímulos emocionais diversos, recortados entre os que defendem a ideia da supressão de números de partidos pelo uso de os meios possíveis e os que defendem esta selecção pelo voto do povo. É óbvio que a sensatez nos leva a aderir a última posição, já porque a Lei Constitucional e a Lei dos Partidos Políticos são suficientemente eloquentes quando sustentam a personalidade jurídica das formações políticas como garante da participação nas eleições legislativas de 5 de Setembro, já porque a Lei Eleitoral, ao exigir a subscrição de lista de candidaturas por milhares de eleitores, tornou-se impracticável, oferecendo argumentos de resistência jurídica (por inconstitucionalidade) e política (por desvio ao exercício do poder de escolha dos partidos políticos pelo povo, enquanto poder inalienável).

Enfim, foram seleccionados 14 organizações políticas, entre partidos políticos e coligações de partidos políticos, ordenados segundo o sorteio como seguintes: PRS, PLD, FpD, PDP-ANA, PPE, FNLA, PAJOCA, FOFAC, Nova Democracia, MPLA, UNITA, PADEPA, PRD e AD-Coligação. Com falhas e palhas ao eleitorado dá-se a possibilidade de escolher o partido que melhor realiza o seu interesse. Entretanto, vale a ideia de que nem todos os partidos políticos entram no campo das opções do povo para a “batalha” eleitoral. Há que descontar os partidos e coligações que entram no cenário eleitoral, com pretexto de apoiar o partido mairitário, apenas para dividir as verbas diponibilizadas para a campanha eleitoral. Outros ainda por falta de expressão política e estratégias idóneas se apresentam como verdadeiros grupos diversionistas, sem perder de vistas aqueles que ao longo dos 16 anos não protagonizaram nenhum exercício político em defesa dos interesses do povo. E com a retirada do PADEPA de Leitão restam para avaliação séria da grande corrida partidos como MPLA, UNITA, FpD, FNLA, PDP-ANA, PAJOCA e PLD.

Ora, o PLD é um dos partidos que parte com a imagem ofuscada pela inoperância da liderança nos últimos anos e pela visível centralização dos interesses partidários em torno da figura do seu Presidente; segue-se o PDP-ANA que, depois do desaparecimento físico de seu presidente fundador, perdeu capacidade de intervenção e persuasão pública. A FNLA, enfraquecida pelo desmembramento operado na liderança que se impunha bicefálica e com a saída de Tozé Fula, um dos mais influentes membros da sua organização juvenil, parte com o eleitorado perdido. A mesma desgraça tem atropelado as pretensões do PRS. Para além da AD-Coligação, que já não conta com a FpD e com o Simão Cacete, as coligações partidárias peredem-se nos desconhecimento quase total do eleitorado angolano.

Grande ganho tiveram a FpD e o PAJOCA. A FpD que parte com um plantel de deputados integrado por grandes figuras do universo académico e intelectual como o economista Filomeno Vieira Lopes, o advogado Luis do Nascimento e o jurísta e cientistas político Nelson Pestana Bonavena foi reforçado pela entrada do economista e professor universitário Justino Pinto de Andrade. O PAJOCA que já balançava de desgaste com a direcção de Sebastião André teve a ventura de voltar a “recrutar” um militante de peso. O advogado David Mendes que certamente se propõe a persuadir todos os eleitores que beneficiaram da sua defesa nas lutas cívicas operadas pela associação Mãos Livres. Assim, a FpD e o PAJOCA surgem como os grandes reforços para as escolha dos eleitores desavindos com o MPLA e a UNITA e dos eleitores sérios e exigentes.

Se é certo que o PAJOCA se encontra rejuvenescido, a FpD ganha terreno sobre a maioria dos partidos da oposição pelo facto de ter estado a ensaiar modelos de intervenção política que lhe garantem o estatuto da terceira força política nacional e a única organização política angolana com identidade própria (assume-se como partido de esquerda – reivindicador da reforma do status quo político) e com capacidade de condicionar o discurso político parlamentar.

Para o povo angolano resta a escolha certa. Muitos votos serão lançados na futilidade das emoções, misturados na demagogia e no infantilismo do discurso inconsistente e sem fundamento, entretanto a opção dos eleitores sérios e responsáveis, dos eleitores que se sacrificam em nome da maioria do povo, dos eleitores que sabem o que Angola é hoje e o que Angola deve ser amanhã; dos eleiotres que sabem que os partidos políticos devem estar ao serviço dos interesses de todos os angolanos é a mais esperada por todos os angolanos, mesmo aqueles que pensam no voto egoísta.

CARTA AOS PARTIDOS POLÍTICOS XIII

Albano Pedro
jukulomesso@yahoo.com.br

(Texto publicado no Semanário A CAPITAL)

Existem – disse o filósofo – dois grupos de pessoas, o dos que passam na vida como condicionadores da História e o dos que nela passam como meros espectadores, vítimas das circunstâncias da História escrita e encenada por àqueles. O mercado político angolano permite um recorte epistemológico do perfil psicológico dos partidos políticos em termos de atender a este enunciado, sobretudo neste efervescente período em que se aproxima, em ritmo acelerado, o pleito eleitoral atinente a renovação do poder legislativo.

Antes do partido da situação ter dado o tiro de largada, com a sua retumbante campanha que agride a ritmo frenético e progressivo as artérias e principais locus de concentração populacional das cidades mais influentes de Angola, nenhum partido, com excepção da FpD (Frente para Democracia), se dignou a aproximar-se do povo apresentando estratégias políticas sobre a reforma política necessária aos desafios dos angolanos para a estabilidade política e para o desenvolvimento social e económico do país. Houve o esforço da UNITA ao apresentar ao consumo público a pouco esclarecida ideia de amplo movimento para a alternância – contendo projecto de sociedade integrado em lugares-comuns da política nacional, estimulando em quase nada os seus destinatários. O grosso perdeu-se nas tristes e pouco dignificantes reivindicações sobre o atraso ou ameaça de corte das verbas destinadas aos partidos políticos, havendo mesmo alguns, não poucos, que entenderam marchar em protesto de tais situações como se tratassem de interesses da maioria do povo perdido na miséria que nem noção de Orçamento Geral do Estado tem.

Com efeito, o mercado político angolano permite visualizar a realidade segundo a qual o MPLA dita e a maioria dos partidos escrevem o texto do ser e estar no político. Pelo que é possível ver um alinhar de fileira em que tais partidos políticos são animados sob comando daquele. É o que está sensível quanto as campanhas eleitorais. Está situação permite perceber que muitos dos partidos na oposição estão deslocados para a situação de modo que esta se encontra preenchida pelo MPLA, os seus partidos satélites e as alas influentes de importantes partidos na oposição, diminuindo gravosamente o sentido de oposição política nacional. Daí que seja possível, a luz das lógicas discursivas avançadas na carta anterior, constatar três visões sobre a viabilidade política de Angola, a saber: A visão política da FpD, que se assume como um verdadeiro partido de oposição, em que é panoramizada uma participação política do povo nos mais importantes e fundamentais assuntos do Estado, mediante a ideia da multipartidarização do Estado viável entre eleitores sérios e pouco manipuláveis; a visão política do MPLA, que procura manter a hegemonia política sobre o Estado mediante manipulação do povo, determinada pela manutenção do status quo ante e pela projecção e consolidação social de uma elite económica maioritariamente estrangeira em detrimento do bem estar social dos angolanos e a visão da UNITA, já desfeita dos profundos ideais de seu inspirador e líder fundador o Dr. Jonas Malheiro Sidónio Savimbi, que hoje se identifica muito mais com a necessidade de acomodação entre os operadores do poder assumindo o papel de o maior partido da oposição. Não estranha que entre o MPLA e a UNITA circule a ideia cumplicizante da bipolarização política do Estado angolano quando ambos assumem sem pejo o projecto da vitória eleitoral com maiorias absolutas em detrimento da representação multipartidária da Assembleia Nacional.

Deste modo, e dado ao gravoso silêncio manifestado pela maioria dos partidos políticos angolanos, ao povo se apresentam três propostas de gestão do Estado, como sejam a gestão do Estado pelo povo da FpD; a direcção do Estado pelas elites económicas do MPLA e a gestão do Estado pelo partido da UNITA. Sendo a maioria dos partidos políticos arrastados pelas propostas do MPLA e da UNITA. Assim é que o voto consciente, i.e., baseado na viabilidade de projectos políticos, deve ser disputado entre a FpD, o MPLA e a UNITA, donde o voto sério, pela importância da reforma social e económica do Estado pelo povo, é destinado incontornavelmente a FpD enquanto proponente de um espaço reivindicativos dos interesses das maiorias sociais marginalizadas.

De resto é pela FpD que a sociedade civil – enquanto base de sustentação das grandes reivindicações do povo – tem vindo a ganhar espaço nos processos de participação política, consolidando o seu espaço enquanto actor das grandes mudanças sociais. A própria imagem da sociedade civil emergente em Cabinda através da Mpalabanda, politicamente – mas não legalmente – extinta e outras organizações em Cabinda e outras partes do país encontram mais espaço de solidariedade e reivindicação política nos círculos da FpD que em nenhum outro partido político. É pela FpD que vem a ideia estruturante de Estado Democrático e de Direito em que o povo, destinatário único e absoluto das políticas partidárias, é senhor absoluto dos projectos de viabilidade económica e social, quer participando na projecção e discussão das principais políticas públicas quer controlando a sua execução. Ideia esta traduzida através do programa de reivindicação do espaço social no poder político do Estado.

Na verdade, o que o MPLA procura com a confirmação do seu mandato é a consolidação das elites económicas por si estruturadas, através da deslocação de importantes interesses empresariais do domínio público ao domínio privado sem critérios favorecedores para os angolanos. O aliciamento da maioria dos eleitores demonstra a realidade em que a busca do voto miserável é necessária para a sustentação dos ricos e novos-ricos cuja ganância acabará por esmagar esse mesmo voto miserável, pobre e necessitado. E estando mais próximo da ameaça de renovação periódica do poder a sua política de gestão do Estado, uma vez confirmada no próximo pleito eleitoral, será muito mais exclusivista donde o favorecimento da classe de capitalistas em detrimento das políticas sociais em abono do povo. Haverá, como se adivinha, uma maior expansão de empreendimentos imobiliários e empresariais tendentes a caracterizar os capitalistas emergentes (dos desvios do erário público e da importação de capitais – muitos deles de origens e causas duvidosos) e um distanciamento qualitativo entre estes e os miseráveis e pobres. Sendo de admitir que com o MPLA a maioria do povo angolano experimentará os seus piores dias de sobrevivência social e económica. Pela gravosa pobreza da maioria das famílias, as crianças terão maiores dificuldades de acederem ao sistema de ensino – alargando o nível de analfabetismo – e os jovens terão maiores desafios para acederem ao primeiro emprego – aprofundando o fosso das desgraças sociais – devido ao baixo aproveitamento escolar e a especialização imposta pelos avanços tecnológicos dos serviços derivados das expansões capitalistas. É pois certo que o capitalismo florescente jogará um papel importante para o contínuo crescimento da economia angolana contudo não deve esmagar as pretensões sociais da maioria dos angolanos. E o MPLA não está preparado para proteger o povo através de políticas sólidas de distribuição e redistribuição da riqueza pelo simples facto de não estar habituado a fazê-lo desde que tem experimentado a gestão do Estado.

Para a UNITA a linha de prioridade se desenha na necessidade de garantir a sua sobrevivência política através da sobrevivência económica de seus dirigentes, procurando manter a coesão pela cumplicidade dos seus tradicionais membros em detrimento da cooptação de novos militantes e da partilha de interesses com a maioria dos seus simpatizantes, o que alimenta a ideia de manutenção do seu papel de o maior partido da oposição política contra o interesse efectivo e directo de participar da governação do Estado.

Finalmente, a FpD, com a sua tendência inclusivista e globalista, promove a proposta de uma gestão próxima aos interesses do povo, donde a força da sociedade civil enquanto base de sustentação da sua política de Estado. Todavia, independentemente dos resultados que venham a ser expressos, perigando ou não a estabilidade política nacional pela satisfação ou insatisfação dos maiores anseios da sociedade. Uma coisa é certa. O povo angolano sairá vencedor!