SOBRE A POSSIBILIDADE DE UM DIREITO PRÉ-COLONIAL COMO FUNDAMENTO DA CONSCIÊNCIA JURÍDICA CONTEMPORÂNEA
Albano Pedro
O debate sobre o reencontro de África consigo mesma, além da revisão da história pré-colonial e mesmo colonial, passa pela sua determinação identitária que deve abranger as várias realidades sociais. Uma delas é sem dúvidas a realidade jurídica dos povos africanos em geral. Boaventura de Sousa Santos, ilustre Jurista e Sociólogo português faz referência deste facto (In: Semanário AGORA, edição de 02 de Fevereiro 2008, página 27.) abordando a questão no âmbito da análise sobre as novas relações entre a Africa e a Europa. No caso angolano, vale desenvolver a ideia de que um dos efeitos gerados pelo choque civilizacional protagonizado pela colonização de Angola por Portugal é a falta de entroncamento cultural de ambos no domínio jurídico ao ponto de a maioria dos angolanos – sobretudo os que carecem de descendência ocidental – terem fartas dificuldades no uso, utilização e aplicação dos comandos jurídicos do ordenamento jurídico positivado em Angola.
A cultura jurídica angolana fundamentalmente baseada no costume e como tal forjadora de condutas sociais com forte tradição comportamental no espírito de cidadania nacional é profundamente alérgica ao sistema jurídico português de raiz romano-germânica. Este problema quase inexistente no domínio do Direito Público vigente (quod ad statum rei publicae expectat) é contudo proeminente no domínio do Direito Privado (quod ad utilitatem singulorum expectat). Não tanto quando se tratem de direitos laborais, comerciais ou reais, devido a forte presença pública na tutela dos interesses destes derivados. Mas, e sobretudo, quando em causa estão direitos sucessórios, direito de família e proeminentemente direitos de créditos.
Nota-se no Direito Privado – tratado na variante civil – que a cultura jurídica dos povos de Angola nunca alcançou o espírito romano germânico do Direito Português positivado em Angola, mesmo já na fase do pós-indepêndencia de Angola em que o espírito público do cidadão revela uma notável emancipação. Vale para exemplificação que os litígios familiares e sucessórios raramente têm lugar em foro judicial – quando os pleiteantes não tenham beneficiado do processo de assimilação cultural europeia ou não sejam descendentes de europeus – havendo forte preferência na justiça costumeira que estabelece, embora, regimes duros na partilha dos bens resultantes da abertura da herança ou na tutela dos filhos – e mesmo da esposa (variante suis generis do Direito Sucessório de alguns povos de Angola) – do de cujus (porque o Direito Costumeiro procura tratar as questões da tutela de menores e o divórcio no âmbito da herança, quase coisificando as relações pessoais estabelecidas pelo finado, ao contrário do direito ocidental positivista que procura autonomizar a solução da questão para o domínio ius familiar). Sobre as relações obrigacionais é notória a exiguidade no trato jurídico de determinadas figuras jurídicas na vida dos angolanos – V.g. o contrato de mútuo não cumpre com a sua função nas relações sociais – o que é emprestado acaba não reembolsado sem qualquer penalidade visível – e o contrato de compra e venda cumpre formalidades probatórias do tipo testemunhal afastando a autenticidade dos documentos que o envolve. Figuras como Gestão de Negócios (derivada de situações de abandono patrimonial geradas na 2ª guerra mundial em quase toda a Europa) ou Enriquecimento Sem Causa ganham fortes implicações relacionais expansivas à relações familiares no costume angolano. As próprias relações familiares, subsistentes nos dias de hoje em diversas etnias, reduz a uma única modalidade o regime de casamento devido ao facto de o costume patrimonializar esta forma de relação conferindo ao esposo o poder quase absoluto sobre a mesma.
Mesmo quando o problema não é bastante no domínio do direito público há ainda assim a quebra evolutiva entre o comportamento social ou ético com relevância jurídica desde o período pré-colonial ao período colonial e sobretudo o período pós-colonial. Pena é que o princípio da legalidade enquanto baliza do Direito Público, – derivado do raciocino geométrico das escolas positivistas de forte pendor legalista, – que procura consubstanciar a ratio ética de que o que não é permitido é proibido, afasta qualquer discussão sobre a possibilidade jurídica do costume constitucional, financeiro e administrativo ou ordenacional para tornar profundo o debate no domínio deste ramo do Direito.
Pois, se assim não fosse, seria de utilidade académica discutir temas como a organização dos Estados angolanos pré-coloniais em moldes visionado pelo John Locke ou Barão de Montesquieu e surpreender neles traços normativos de Direito Público, visíveis no comércio entre os Estados e nos negócios inter-estaduais (tratados de guerra, actos de comércio internacional, entre outros) proclamadores de uma reconhecível actividade diplomática sustentada pelo respectivo Direito Internacional Público. Ainda, neste ângulo, quando se fala do Estado – para alguns Reino – do Kongo, há lugar a forte presença pública na prática dos actos do soberano expondo um Direito Financeiro (V.G.: há já um modelo próximo da actual administração financeira autárquica em que os estados, ou quase-Estados, vassalos se obrigam a prestações financeiras periódicas ao Tesouro Nacional do Estado do Kongo) e de um Direito Fiscal como seu sub-ramo (também o pagamento de impostos pelos súbditos assim classificados pelo seu estatuto de cidadania perante o Estado) impondo com isso uma forte actividade bancária do Estado (o fundo de reserva monetária era a Ilha de Luanda).
Entretanto, um debate nestes termos, se perde nos arcanos da demência técnico-jurídica quando a análise é viciada pelo positivismo legalista, normalmente defendida pela maioria dos agentes ligados a praça técnico-jurídica angolana e implantado genericamente no sistema de ensino universitário do Direito. Não admitindo qualquer jurisdicidade de tais actos muito menos imputando-lhes qualquer base jus-pública. Deixando inclusive estampada a ideia de que os próprios Estados pré-coloniais (com todos os seus órgão soberanos) praticavam actos jurídicos inscritos no Direito Costumeiro.
Esta visão radical, destilada pelo construtivismo positivista do direito romano germânico, impôs-se mesmo ao arrepio de correntes que procuram ver o positivismo em esteios mais lógicos como na própria vigência da norma jurídica – justificando assim a positividade da norma costumeira ou do direito constitucional inglês não escrito –, contrariamente a visão positivista legalista que vê na escrita a suficiência da positividade normativa – servindo-se da instrumentalidade documental da norma jurídica. Na lógica da vigência da norma jurídica a positividade do Direito ganha amplitude suficiente para abarcar o conjunto de normas rotuladas como costumeiras dando-lhes condão de positividade suficiente para timbra-los na summa divisio necessária para resgatar o espírito público das normas emanadas no período pré-colonial.
Com efeito, o positivismo jurídico, escola teórica pontificada por Hans Herald Kelsen e nascente na Alemanha, procura sustentar que apenas é Direito Positivo o direito “publicado” pelo Estado através de comandos normativos escritos na forma de Lei. Ideia esta que sustenta o legalismo como a base do Direito moderno. Contudo, já universalmente avançada a ideia de que a base da positividade da norma (debate normalmente desenvolvido em sede da Filosofia do Direito e da Metodologia do Direito) não está na escrita (que é apenas uma das duas formas de instrumentalidade material da norma ao lado da transmissão oral) mas na vigência, enquanto consciência generalizada da sociedade sobre a existência de um determinado comando jurídico. Portanto, será positivo o direito vigente. Sendo a escrita ou a enunciação oral simples formas da sua instrumentalidade. De resto é a visão aproximada de John Gilissen (in: Introdução Histórica do Direito, Edições da Fundação Calouste Gulbenkian, 2ª Edição, PP 32 e seguintes) que procura afastar a ideia de “Direitos primitivos” ou “Direito Costumeiro” (Costumary Law) para a classificação dos sistemas jurídicos dos povos sem escrita visto que “…numerosos povos conheceram uma longa evolução da sua vida social e jurídica sem terem atingido o estado cultural da escrita; tal foi o caso, por exemplo, dos Maias e dos Incas na América” sendo que “…o nível dos povos que se servem da escrita pode ser menos desenvolvido do que o de certos povos sem escrita.” (1º parágrafo, pág.33).
Na verdade, o Precedente Judiciário é uma das fontes criadoras de regras jurídicas nos sistemas jurídicos ditos costumeiros, onde os chefes e anciãos têm a tendência involuntária ou voluntária para aplicar aos litígios soluções dadas precedentemente a conflitos do mesmo tipo. Esta característica leva os direitos pré-coloniais dos povos de Angola a estarem mais próximos dos sistemas anglo-saxónicos do que dos sistemas romano-germânicos. Provavelmente os modernos Estados africanos integrados no sistema jurídico anglo-saxónico tenham maior sucesso sócio-jurídico por isso. Por isso, só abandonando o radicalismo técnico-jurídico exacerbado pelo positivismo legalista será possível reabilitar o debate sobre a possibilidade de um Direito Público Pré-colonial necessário ao estudo da constitucionalidade dos Estados angolanos pré-coloniais. Tamanho debate serviria ainda para requalificar o tecido jurídico pré-colonial e patenteá-lo no âmbito de um estudo comparado com o direito angolano vigente e provocar a análise sobre a oportunidade de um sistema jurídico padronizado pelo modelo civilizacional próprio dos angolanos, segundo a sua evolução histórica. Dixit.
quinta-feira, 19 de março de 2009
Metodologia do Direito
granda dica
ResponderEliminarsobre a posição do cônjuge sobrevivo, tem alguma matéria em que possamos perceber que argumentos o legislador utilizou para que o cônjuge sobrevivo viesse a herdar na 4ª posição? se Angola nunca seguiu praticamente o direito romano-germânico herdado dos portugueses e sim a lei costumeira, porque razão o código civil ainda não sofrer alteração com relação aos sucessíveis?
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