O SISTEMA UNIFICADO DE JUSTIÇA VERSUS CONSTITUIÇÃO JUDICIÁRIA
Albano Pedro
Sendo os tribunais a ultima ratio da Lei são também os verdadeiros garantes da legalidade do Estado não se concretizando em consequência o Estado de Direito sem a sua completa independência no contexto dos poderes soberanos. As sociedades humanas, compostas de emoções conflituosas pelos desnivelamentos racionais e culturais dos seus membros que abanam perigosamente os interesses colectivos, não sobreviveriam ao longo da História se não lhes assistisse um conjunto de mecanismos capazes de harmonizar os interesses individuais no conjunto das prioridades colectivas. A Moral do indivíduo sacrificada pela necessidade de convivência colectiva passou a ceder a Ética enquanto conjunto apurado de valores individuais eleitos ao convívio social e esta passou a ser tutelada pela coercibilidade própria do Direito, ou seja, pela susceptibilidade de fazer incidir castigos ou desvantagens sobre as condutas desviantes aos interesses eleitos pela comunidade como garantes da paz e harmonia social. Ao longo da evolução dos povos, o Direito oral (geralmente descrito como Direito Consuetudinário) evoluiu para o Direito escrito, também identificado como Direito posto ou positivo pela actividade reguladora do Estado que passou assim a monopolizar a composição dos conflitos determinando para o efeito procedimentos que deram razão ao surgimento dos tribunais enquanto corpos de juízes integrados num sistema de hierarquia orgânica denominada como poder judiciário pela soberania que modernamente lhes assiste nas civilizações mais idóneas.
A multiplicação de tribunais quer horizontal (comportando tipos comuns e especiais) quer vertical (espécies inseridas em toda a estratificação administrativa do Estado, onde a linha desde os tribunais comunais e municipais ao tribunal supremo, passando pelos tribunais provinciais e os tribunais da relação, admitindo em meio os julgados de paz e os tribunais arbitrais) é sempre sinónimo da multiplicação de actos e contratos numa sociedade difusa pela densidade crescente de interesses individuais impostos pelo consumismo frenético que ao Estado, dinâmico e provedor do bem-estar e segurança pública, urge tutelar acautelando aqueles em risco de colisão ou em colisão efectiva com outros, cuidando inclusive dos prejuízos derivados de tais fricções bem como racionalizando as margens admissíveis de inobservância das obrigações comuns pelos indivíduos acantonados, da agressividade das relações sociais, como os incapazes ou os ausentes. Um dinamismo interactivo (Estado – justiça – particular) que passa a cronometrar a evolução social e económica das comunidades politicamente organizadas num círculo presidido pela recorrência rígida e constante entre a norma, acção e coerção.
Tendo sobrevivido da experiência colonial uma construção judiciária que previa ao lado de tribunais comuns os tribunais especiais, esta ruiu desconsoladamente ante ao poder demolidor de um novo sistema de justiça completamente estranho e revelador da opção política nacional pelo comunismo gerido pelo Partido-Estado (MPLA). Sistema de justiça adoptado sobretudo pela irrelevância que este conferia a actividade judiciária, visto que para a doutrina ideológica dos Estados centralistas com vocação comunista em que tristemente se inscreveu Angola, o Direito é um mecanismo, criado pelas orientações sociais do tipo burguesas, através do qual os mais capazes (fortes) subjugam os menos capazes (fracos), como apregoou Karl Marx para inspirar W. I. Lenine na perspectivação do socialismo como estágio prévio para o comunismo qualificado como científico em que as forças conflituosas, pela impossibilidade dialéctica do tipo hegeliana, entrariam numa espécie de nirvana político onde a confraternidade paradisíaca era possível arrastando todos ao sonho quimérico da paz eterna. Era na verdade um ingrediente contra natura, tanto ao arrepio do evolucionismo darwiniano quanto da dialéctica cristã, que levaria os mais elementares mecanismos reguladores da sociedade humana investidos no Direito à extinção. Pois, acredita-se, com as lentes do comunismo, que a garantia ao Direito da sua redução ao mínimo de importância na sociedade equivale a promoção da igualdade no seio do povo, não cidadão pela ausência de estatuto jurídico atinente, dividido entre proletários e camponeses.
Não espanta que os juízes e advogados, desta época escura entre os angolanos, rotulados como “populares” eram convertidos a partir de indivíduos curiosos ou simples candidatos a empregados públicos, a mais das vezes, sem concorrência visível na disputa das vagas disponíveis, com classificação literária pouco exigente para inserção socioprofissional inseridos num ambiente em que o legislador popular ordinário instalou um sistema de justiça em que todos os tribunais obedecem a uma hierarquia piramidal convergindo no topo com o Tribunal Popular Supremo. Nasce desta visão distorcida da importância da justiça na regência do Estado, a Lei 18/88 – Lei do Sistema Unificado de Justiça e com ela morreram os tribunais especiais entre os quais tribunais marítimos, tribunais fiscais entre muitos outros que fazem gritante falta a dinâmica económica do Estado actual que ser deseja pela Democracia e pelo Direito.
Esta lei encontrou correspondência normativa na Lei Constitucional então vigente e sobreviveu até a Lei Constitucional de 1991 consagrando a nomeação dos juízes pelo Presidente da República num ambiente político que justificou plenamente a razão da norma. Desde 1992 com a consagração do Estado Democrático e de Direito defendendo que a soberania reside no povo que determina a sua transmissão através de eleições periódicas para a legitimação dos órgãos de soberania esta Lei, ainda vigente, encontra finalmente razões para ser declarada inconstitucional e em consequência ser erradicada do convívio das leis vigentes. Sistema de justiça nela vigente é, nos dias de hoje, visto como contraproducente para além de emperrar o sistema de justiça num quadro arcaico em tribunais que acompanham a dinâmica económica do Estado estão completamente desactivados e fora do quadro de prioridades.
A nova Lei Constitucional vem repor a previsão do legislador constitucional colonial em matéria de tribunais especiais afastando o sistema unificado de justiça e prevendo a existência de sistemas paralelos. Um sistema de jurisdição comum encabeçado pelo Tribunal Supremo e um sistema de jurisdição militar encabeçado pelo Supremo Tribunal Militar para além de admitir outros sistemas de jurisdição (art.º 176.º). Prevê, como novidade acentuada, o perdão genérico a todo o povo angolano de todos os crimes militares ou a estes relacionados cometidos até 2002 (art.º 244.º) como forma de ultrapassar a possibilidade de responsabilização criminal que impende sobre todos aqueles que tendo participado no conflito armado cometeram actos dignos de procedimento judicial. Infelizmente, as normas constitucionais correspondentes ao conteúdo normativo da Lei 18/88 em matéria de nomeação de juízes sobrevivem aos dias de hoje. O Presidente da República continua com os poderes de nomear magistrados judiciais (art.º 119.º) numa altura em estes podiam ensaiar mecanismos de eleição interna entre os próprios magistrados libertando-se da dependência do poder executivo. São competências que se impõem injustificadamente e contra um sistema jurídico-constitucional que admite o princípio da separação dos poderes soberanos colocando em suspeição a possibilidade de exercício independente das funções jurisdicionais (art.º 175.º). Analisado numa perspectiva vertical a partir da base, o poder judicial clama por um verdadeiro ajustamento aos sistemas democrático e de Direito já que órgãos de instrução criminal como a Direcção Nacional de Investigação Criminal (DNIC) e as respectivas divisões provinciais se encontram afectos a Polícia Nacional como corpo distendido do poder executivo, quando uma polícia judiciária dependente do poder judiciário tem tudo para nascer com urgência. Aliás, o poder judiciário é, em Angola, o único que não tem sido alvo de acesas, ou melhor, sérias discussões entre os políticos, visto que estes demonstram estarem mais interessados na estrutura do poder executivo do que quaisquer outros. Sendo aquele o mais importante de todos os órgãos de soberania em se tratando de garantir a estabilidade política do Estado pela observância e aplicação da lei para todos em igualdade de circunstâncias permitindo a edificação efectiva de um Estado Democrático e de Direito.
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