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    sexta-feira, 21 de maio de 2010

    NOVA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA V

    QUESTÕES NORMATIVAS E PROCEDIMENTAIS NO CONTEXTO DA ORDEM JURÍDICA PÚBLICA INTERNACIONAL


    Albano Pedro

    As relações entre Estados são geralmente concluídas na forma de contratos internacionais normalmente conhecidos por tratados na linguagem técnica comummente usada neste nível. Não importa se os políticos ou estadistas lhes chamem acordos ou memorandos. Os tratados podem ser bilaterais – envolvendo dois Estados –, ou multilaterais – envolvendo mais de dois Estados. Embora as relações internacionais públicas envolvam em regra os Estados, são também qualificados como sujeitos deste nível de relações as organizações internacionais de Direito Público. Nomeadamente aquelas que congregam no seu seio Estados. Os exemplos fazem perfilar a União Africana, Organização das Nações Unidas, União Europeia entre outras. Umas têm âmbito internacional permitindo a filiação de todos os Estados mediante condições previamente determinadas, outras circunscrevem-se ao âmbito regional filiando apenas os Estados abrangidos pelos seus limites geográficos como a SADC ou a MERCOSUL. Umas têm objectivos mais gerais como é a Organização das Nações Unidas e outras objectivos mais específicos como a OTAN (Organização do Tratado Atlântico Norte). Ficam de fora as organizações internacionais que comportam indivíduos como a Associação Internacional de Juristas; comportam organizações regidas pelos respectivos direitos internos, caso das organizações internacionais que filiam partidos políticos segundo tendências ideológicas (Internacional Socialista) ou organizações internacionais que filiam empresas ou sindicatos de trabalhadores, porque o critério de personalização do Direito Internacional Público importa princípios inerentes a soberania dos Estados e a sua continuidade em outras pessoas jurídicas integradas na comunidade internacional. Na base deste critério é que os movimentos de luta armada que eclodiram ou pouco por toda África e América Latina antes dos anos 70 mereceram a dignidade de sujeitos de Direito Internacional Público quando lhes fosse reconhecido o direito de reivindicar a independência do território visado. Assim é que o Brasil foi o primeiro sujeito da comunidade pública internacional a reconhecer a soberania do Estado angolano aquando da independência proclamada por Agostinho Neto, como líder de um movimento de libertação (MPLA), a 11 de Novembro de 1975. Entre nós, recentemente, foi este o critério aplicado para emancipar a UNITA ao convívio das nações quando o Governo lhe reconheceu dignidade como contraparte contratual na celebração dos Acordos primeiro do Lusaca e depois de Bicesse com a participação de observadores internacionais como a RUSSIA, os EUA e Portugal conhecidos então como a Troika de Observadores.

    No uso da doutrina clássica jus-publicista internacional a UNITA não pode ser vista como sujeito de Direito Internacional Público porque a reivindicação do Estado mediante processo de libertação ser-lhe-ia reconhecido com prejuízo da existência constitucional do Estado angolano dirigido pelo Governo com quem celebrou os acordos. Entretanto, o reconhecimento pelo Estado angolano como parte idónea para a celebração dos acordos de Lusaka e Bicesse, elevaram ipso facto a UNITA à categoria de sujeito de Direito Internacional Público perfeitamente enquadrável nos critérios de acesso subjectivo que assiste a comunidade pública internacional. Isto na prática, significa que a UNITA passou a ter a garantia de cumprimento dos acordos celebrados com o Governo assistidos pelos mecanismos internacionais reconhecidos para aplicar justiça e dirimir conflitos entre Estados, cabendo neles plenamente os recursos contenciosos relativos a violação das normas acordadas.

    A vigência das normas internacionais no Direito interno de cada Estado impõe-se sob duas regras comuns. Uma que a doutrina denomina como regra da transformação directa dos tratados no direito interno em que o Tratado celebrado entre os respectivos chefes do Estado entra automaticamente em vigor na ordem jurídica interna sem a necessária aprovação pela Assembleia Nacional, Ratificação pelo Presidente da República e consequente publicação no Diário Oficial. Este tipo de tratado impõe-se automaticamente sobre a Lei Constitucional sempre que constituído, modificado ou extinto. Em Angola a Lei Constitucional de 1991 conferia este privilégio a Carta Organização das Nações Unidas, a Carta da Organização de Unidade Africana e aos princípios do Movimento dos Países Não-Alinhados (art.º 16º). A Lei Constitucional de 1992 manteve a letra e o espírito (art.º 15º). A Lei Constitucional vigente retira deste leque apenas os princípios do Movimento dos Países Não-Alinhados (art.º 12º) e estende o privilégio para a generalidade de tratados de que Angola seja parte e que estejam inscritos no plano das relações entre as nações do globo integrando assim o Direito Internacional Público comum (art.º 13º, n.º 1). Esse mecanismo de adopção directa dos tratados na ordem jurídica interna dos Estados impõe uma vinculatividade eterna que apenas a revisão constitucional pode afastar, também de forma automática.

    Para a transformação indirecta, aos tratados são traçados, pela Lei Constitucional e normas de Direito Internacional Público, um percurso lógico desde a celebração a sua publicação como condição necessária para a vigência na ordem jurídica interna (art.º 13º, n.º2). O percurso ascendente – aquele que coloca os Estados no plano das conversações e consequente conclusão de pré-acordos finalizando com a celebração entre os respectivos chefes do Estado -, tem interesse executivo e é por isso um processo que se expõe à autoridade técnica de especialistas em Relações Internacionais e a competência executiva de altos funcionários ligados aos negócios estrangeiros do Estado, sem prejuízo dos procedimentos e obrigações que impõe a assistência de juristas atreitos ao ramo. O que tem proeminência jurídica, e para análise no plano da nova Lei Constitucional, é o percurso descendente na sequência do qual o tratado ora celebrado pelo Presidente da República, na qualidade de chefe de Estado, vai a Assembleia Nacional para a competente aprovação (art.º 161.º alínea k). Os deputados analisarão os aspectos que circundam os interesses nacionais na adopção e execução do respectivo tratado vindo de seguida a aprovação quando seja a opção deliberativa. O Presidente da República que celebrou o tratado na veste de chefe do Estado volta a receber este mesmo instrumento da Assembleia Nacional, e aqui está na veste do mais alto magistrado da nação, para cuidar de comparar as normas aprovadas com a ordem jurídica interna encimada pela Lei Constitucional. O exercício tem como consequência a Ratificação do Tratado cujo conteúdo tem a mesma importância que a promulgação das leis internas (art.º 119º, alínea r). O Presidente pode sempre solicitar, querendo, a fiscalização preventiva do Tratado (art.º119º alínea c) para o qual o Tribunal Constitucional terá o prazo único de 45 dias para pronunciar-se sobre a constitucionalidade do diploma legal internacional (art.º 228º). Havendo inconstitucionalidade o Presidente da República pode sempre vetar o Tratado impondo a sua devolução à Assembleia Nacional para nova apreciação e aprovação (art.º 229º). Não havendo nada para obstar a vigência do Tratado é dado o último passo para o efeito: a publicação no Diário da República (art.º 119º, alínea r).

    Questão de interesse discursivo é a de saber qual seja a importância do condicionamento da aprovação da Assembleia Nacional de tratados celebrados pelo Chefe de Estado, uma vez que, por um lado, este é investido com a dignidade de um órgão soberano e como tal representante natural dos interesses nacionais, por outro, sempre volta a “averiguar” o tratado por si celebrado no plano jurídico interno quando vai a ractificar e com a possibilidade de veto? Entende-se, pois, que as relações jurídico-internacionais públicas são assistidas pelos princípios da autodeterminação dos povos que se realiza através dos órgãos do Estado pelo princípio da soberania dos Estados e pelo princípio da boa-fé. Este último, reflexo claro da manutenção do poder de contratar no plano internacional na esfera jurídico-política dos cidadãos determinados colectivamente. Uma vez que os Estados, embora pessoas jurídicas, não têm vontade própria “societas delinquere non potest”. Deriva disto que sempre que o Presidente da República movimenta os interesses nacionais para o plano dos acordos deve merecer a posterior confirmação do povo seu mandante. O poder originário de contratar é assim soberanamente confiado aos deputados a Assembleia Nacional na qualidade de fiéis depositários da vontade individualizada do povo como um todo (art.º 3º, n.º1). Faz sentido, assim, que os acordos internacionais celebrados entre os Estados reflictam a autodeterminação dos povos no contexto das nações.

    Outra questão de interesse prático, embora com laivos de teoria, é a de saber se uma vez vigente na ordem jurídica interna, os tratados dispõem apenas para o futuro, como logicamente é sensível, ou tem efeitos retroactivos sobre as situações jurídicas e políticas internas anteriores a sua vigência? Pense-se por exemplo num acordo internacional sobre proibição de tráfico de armas e drogas que incrimina seus agentes, em que Angola seja parte, que ao ser alterada e consequentemente incorporada na ordem jurídica interna passa a dispor que todos os estrangeiros, antes presos sob tal acusação, sejam descriminalizados? Colocar-se-á o problema de determinar se a liberdade prevista no tratado abrange os estrangeiros presos antes ou apenas os estrangeiros que passar a ser presos depois da sua entrada em vigor. É o problema de saber se os tratados têm efeito ex-nunc ou apenas efeito ex-tunc ou ainda ambos os efeitos. A generalidade da doutrina propõe soluções diversas alternando entre as duas soluções ou ambas de acordo com as situações jurídicas e políticas que as partes tendem a acautelar. Assim é o procedimento no plano das negociações para a celebração do tratado em que as partes cuidam de averiguar o grau de benefício ou prejuízo na aplicação das normas internacionais propondo em consequência a formas e modos da sua vigência interna. Acórdão efectivo em toda a doutrina extensiva a prática tratadística está para aquelas situações que favoreçam a condição dos seus destinatários, normalmente pessoas físicas, em que a regra da retroactividade das normas do tratado modificado é acolhida sem reservas. É uma constante nos tratados internacionais de natureza criminal nos casos em que as novas medidas a aplicar para o passado favoreçam o réu. É a solução acolhida pela Lei Constitucional (art.º 65º).

    Novidade no plano internacional acolhida pelo texto magno está na possibilidade do Estado angolano participar “em forças de manutenção da paz e em sistemas de cooperação militar e de segurança colectiva” apesar de manter a proibição de instalação de bases militares estrangeiras em território nacional (art.º12º). O contexto da guerra fria em que os americanos não eram bem-vindos determinou a proibição de instalação de bases militares e foi assim mantida com espírito consciente até 1992. A sobrevivência desta disposição na nova Lei Constitucional é um claro sinal da necessidade de consolidação da paz recentemente alcançada. A Lei Constitucional de 1991 era peremptória em desactivar qualquer forma de participação militar internacional de Angola (art.º 18º) e a Lei Constitucional de 1992 não alterou a redacção (art.º17º). A lei Constitucional de 2010 acolhida com o fim da guerra e pelo sucesso das campanhas militares não declaradas desenvolvidas além fronteira por Angola, mesmo ao arrepio da Lei Constitucional, para a estabilidade da paz em toda região, recomenda novas inspirações constitucionais como a que surge com a nova redacção determinando a possibilidade de participação militar internacional de Angola. Embora seja de discutir a importância estratégica de inspirar um clima de receio por invasão militar entre os países vizinhos.

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