sexta-feira, 26 de novembro de 2010

PERTURBAÇÕES NA RELAÇÃO JURÍDICO-LABORAL

O PROBLEMA DO DEVER DE OBEDIÊNCIA DO TRABALHADOR

Albano Pedro

(Texto publicado no Semanário Angolense)

Há despedimentos de trabalhadores que acontecem por razões bizarras: O trabalhador com funções de motorista da empresa obrigado a fazer trabalhos de jardinagem na casa do gestor da empresa recusa a tarefa por escapar grosseiramente da sua esfera de actividades estipuladas em contrato e é despedido ou a promoção de processo disciplinar contra trabalhadores tidos como desobedientes que se recusaram a oferecer os seus esforços para trabalhos domésticos em casa de pessoas recomendadas pelo gestor. Convencido de que o trabalhador desobediente deve ser descartado, o empregador promove então um acordo de rescisão de contrato ou um processo disciplinar com vista ao despedimento fundado em causas “inventadas” muitas vezes mediante conselhos de consultores jurídicos. O trabalhador vê o contrato de trabalho a cessar ou se vê despedido consciente de que a causa é a desobediência registada pelo empregador. Essas razões “bizarras” levam a reflectir a esfera de actividades naturais do trabalhador permitindo estabelecer os marcos do dever de obediência do trabalhador à luz da Lei Geral do Trabalho (LGT).

Os deveres do trabalhador vêem genericamente previstos na LGT (art.º 46º) determinando entre os mesmos o dever de respeito e lealdade para com o empregador, dever de assiduidade e pontualidade, entre outros. Porém, as obrigações inerentes ao trabalho, são especificamente estabelecidas no contrato de trabalho e no regulamento interno da organização empresarial e estes determinam o dever de obediência a volta das tarefas concretas a que o trabalhador se encontra vinculado. Saber se o trabalhador que não obedece a uma ordem não prevista no seu leque de actividades regulares deve ser punido é completamente dispensado pela LGT. Esta determina que o trabalhador deve obediência ao empregador em relação as actividades para as quais foi contratado. Não acontece por acaso. O trabalhador e o empregador são assistidos pelos princípios da liberdade contratual, da igualdade das partes entre outros derivados da autonomia da vontade, i.é, durante o contrato as partes negoceiam as cláusulas contratuais e acordam os termos do contrato por oposição da assinatura no respectivo contrato quando não seja celebrado verbalmente (nos termos em que a Lei admite). Desde logo, o trabalhador só executa as tarefas que derivarem das suas obrigações funcionais determinadas previamente. Não faz sentido o cumprimento de tarefas não vinculadas como acontece nos exemplos acima mencionados.

A LGT dispõe que o trabalhador tem o direito de reclamar sobre quaisquer violações dos seus direitos estabelecidos por Lei e acordados pelas partes (art.º 45º alínea i). O que pressupõe a necessidade do trabalhador estar vigilante quanto as suas obrigações naturais. Há situações que a tarefa mandada executar está na esfera das competências do trabalhador, todavia a sua realização importa uma conduta contra Lei ou contra a ordem pública. Por exemplo: o guarda das instalações da empresa é orientado a encerrar as portas aos trabalhadores grevistas que pretendem contactar o empregador numa situação que este deu o seu acordo com o líder da greve para este fim; o tesoureiro que é orientado a não pagar o salário do trabalhador a quem o empregador quer punir sem qualquer processo disciplinar ou o empregador que solicita um parecer negativo sobre o trabalhador em regime de estágio ao seu superior hierárquico para obter fundamentos para fazer cessar o vínculo contratual, etc. Qual deve ser a atitude do trabalhador? Desde logo, este deve avisar ao empregador das consequências que acarretam tais orientações e esperar pela reacção deste. Se o empregador insistir na ordem, não restam dúvidas que as consequências de tais actos se transferem para esfera jurídica do empregador sem quaisquer perigos para o trabalhador, salvo nos casos em que a conduta configurar crime e o trabalhador seja tido como cúmplice ou outra sorte de co-autor.

Acontecem situações em que o volume de actividades aumenta e diversifica ou inesperadamente ou por razões de flutuação positiva do mercado, o empregador pode não admitir novos trabalhadores por prever a sazonalidade da situação. Neste caso o empregador mobilizará a força de trabalho disponível para a situação actual negociando com os trabalhadores sobre o acréscimo das tarefas e, obviamente, proceder ao ajustamento da remuneração. Pode ainda acontecer que pelas mesmas razões o empregador aumenta somente a carga horária dos trabalhadores. Num e noutro caso, os trabalhadores são livres de admitirem o novo regime laboral imposto pelas circunstâncias, denunciando as correspondentes violações da relação jurídico-laboral em caso de imposição. Se bem que em casos de aumento da carga horária o que é comum é o trabalhador exigir o pagamento das horas extraordinárias ao seu horário normal de trabalho, como de resto recomenda a própria LGT observados certos limites.

Nos casos em que a tarefa escapa mesmo da competência do trabalhador, este terá de adoptar uma das duas atitudes: ou realiza a tarefa e depois reclama dela ou não executa pura e simplesmente a tarefa justificando a conduta adoptada ao empregador. Este é o caso que leva aos despedimentos apontados em cima. Mas no caso do trabalhador que obedece a ordem injusta a reclamação deve conter a chamada de atenção ao empregador sobre como a tarefa escapou da sua obrigação fundamentando com as bases normativas do contrato e da Lei se necessário. O empregador pode compensar os esforços do trabalhador ou tomar qualquer outra atitude, porém o registo da reclamação será um elemento de ponderação para futuras ordens levando-o a inibir-se de as orientar. É um exercício pedagógico entre o trabalhador e o empregador que leva certamente ao aperfeiçoamento da relação jurídico-laboral no sentido de equilibrar os interesses das partes. É claro que o trabalhador que demonstra carecer do emprego não adopta nenhuma destas condutas preferindo antes executar as tarefas injustamente orientadas sem as comentar se quer com o empregador. Porque é sabido que na relação jurídico-laboral o trabalhador é a parte fraca (o tipo hipossuficiente), daqui resulta que o temor referencial que coloca o trabalhador em relação de subserviência para com o empregador dificulta, na maior parte das vezes, a capacidade de resistência daquele em relação aos abusos do poder de autoridade deste.

Contudo, o trabalhador pode sempre denunciar tais irregularidades aos serviços competentes de Inspecção Geral do Trabalho, mesmo como anónimo ou por intermédio de terceiros, quando a comissão sindical da empresa ou sindicato em que os trabalhadores estejam vinculados não intervenham. De todo modo, a função da comissão sindical da empresa, quando existe, joga um papel fundamental no processo de inibição das ordens injustas do empregador. A solidariedade que caracteriza os organismos sindicais pode suprir a falta de coragem do trabalhador em enfrentar o empregador quando estejam em causa situações desta e doutra natureza. A comissão sindical assume a responsabilidade de enfrentar o empregador pelo trabalhador.

A LÓGICA DOS CONTRATOS PRIVADOS

Excepções, desvios e vicissitudes – O caso de Yola Araújo Vs Comité Miss Huambo


Albano Pedro

(Texto publicado no Semanário Angolense)

Veio a público – por este semanário que prometeu uma análise jurídica a propósito da qual debitamos – o caso que opõe Yola Araújo, famosa e querida cantora angolana e o Comité Miss Huambo sobre a “quebra” do contrato em que se obrigava a cantar num evento público organizado por esta entidade colectiva. A análise jurídica vem na base da seguinte percepção: O conflito nasce porque por um lado a organização do evento alega que a cantora deve devolver o dinheiro adiantado por virtude do acordo havido e por outro lado a cantora se vê no direito de reter o dinheiro já recebido (metade do valor global do contrato) com argumentos de que a falha no cumprimento do contrato se deve àquela organização. Não há dúvidas de que se está perante um conflito que pede esclarecimentos sobre as relações contratuais e suas consequências entre as partes. A ideia de contrato vem desde os latinos (contra actum) para elucidar a fusão de actos de vontade com proveniências subjectivas contrárias. Um acto (proposta) vai ao encontro de um outro (aceitação) e se fundem num único: contrato. Vindo a sua formalização (verbal ou escrita) seguido de outros elementos de validade jurídica conforme tipos ou espécies legais. A classificação técnica dos contratos é variável. Uma delas, procura determinar os sujeitos que neles se vinculam. Assim, teremos contratos unilaterais (em que apenas uma das pessoas se vincula – caso exemplificativo do testamento, e a maioria dos contratos mortis causa, em que apenas o interessado promete (ou prometeu, se de cujus ou falecido) dispor de certos bens ao sucessível (testamentário) independentemente da vontade ou aceitação deste), bilaterais (envolvendo duas partes contrárias – casos mais frequentes: compra e venda de bens, doação (oferta), mutuo, etc.) ou multilaterais (envolvendo mais de duas pessoas – os exemplos vão desde as sociedades comerciais – exemplos das sociedades anónimas com número igual ou superior a cinco sócios, entre vários). Este último tipo de contrato também é frequente nas relações públicas internacionais quando os Estados subscrevem tratados multilaterais ou fundam organizações internacionais (OUA, SADC, ONU, etc.).

A Lei prefere, na maior parte das vezes, que os contratos sejam reduzidos por escrito como requisito de validade e não raro acresce-lhes uma outra exigência: a escritura pública, i.e., que sejam também publicamente conhecidos de acordo com as espécies de bens ou valores que acautelam. No Direito Público (aí onde intervêm o Estado e seus órgãos com poderes privilegiados – jus imperii) a possibilidade dos contratos verbais é rara devido ao Princípio da Legalidade que vincula tais entidades. Embora quando se fale em áreas cruzadas do Direito (onde normas de natureza pública coexistem com normas essencialmente privadas) surgem exemplos interessantes: O caso do contrato de trabalho por tempo indeterminado admissível em legislações laborais com a forma verbal ou o casamento no Direito de Família (embora muitos não admitam esta relação social como sendo contratual), entre poucos outros. Porém, nas relações fundamental e genuinamente privadas a existência de contratos verbais é mais frequente em homenagem ao princípio da autonomia da vontade das partes. Em boa verdade, não haveria necessidade de contratos reduzidos a escrito se as pessoas fossem capazes de honrar os seus compromissos tal como prometem fazê-lo quando extremamente necessitados. Já lá vão os tempos em que um fio de cabelo era tido como elemento de penhora sobre as promessas contratuais verbais. Tempos de um cavalheirismo honroso pós-medieval e renascentista imbuído de valores morais e éticos elevados, donde a prevalência da ideia de pacta sunt servanda (os contratos devem serem cumpridos) como fórmula ética já viabilizada desde os romanos clássicos. A flutuação da vontade humana bem como a complexidade das relações sociais recomendam modernamente que os acordos entre os homens sejam reduzidos por escrito, quer por razões de segurança material (verba volant, scripta manent) quer por razões de provas. Sobretudo depois de serem admitidos no convívio social um tipo de pessoa sem vontade própria: as pessoas jurídicas (entidades colectivas, etc.). Como à um Direito cabe sempre uma justiça (princípio da composição judicial necessária dos litígios sociais) os contratos verbais não serão pura e simplesmente ignorados. Assim, nasce uma diferença entre os contratos verbais e escritos. Enquanto estes se regem pelas cláusulas que as partes estabelecem voluntariamente (no calor da emoção do negócio) sendo subsidiariamente apoiadas pela Lei, os contratos verbais são defendidos directamente pelas leis correspondentes (Leis civis – Obrigações em especial, etc.) vindo daqui um regime de protecção mais rígido e pouco disponível à vontade das partes.

O caso Yola Araújo Vs Comité Miss Huambo, visto no prisma dos interesses da cantora pode configurar um incumprimento excepcionalmente admitido por Lei na base de vários institutos jurídicos, dentre os quais o da Excepção do Não Cumprimento da Obrigação (Exceptio inadimpleti contractus - art.º 429.º - Código Civil – doravante CC) ou da perda do sinal em virtude da frustração de um contrato-promessa (art.º 410.º - CC) estabelecido entre as partes. A excepção do não cumprimento da obrigação ocorre naqueles casos em que um indivíduo que se propôs a adquirir a viatura de outrem vem no dia combinado sem o dinheiro completo para a realização do contrato de compra e venda. O vendedor neste caso tem o direito de recusar a venda da viatura exercendo uma prerrogativa legal (excepção de não cumprimento) sem a qual seria igualmente tido como incumpridor. Em homenagem ao princípio da boa-fé (art.º227.º - CC), que torna rígida a vinculatividade dos contratos, qualquer parte faltosa é obrigada a reparar os danos que venha a causar com a sua conduta. Contudo, a Lei protege o vendedor do incumprimento doloso ou negligente do comprador, i.e., “se não dás não dou” – excepção. Uma vez que a regra ética do cumprimento dos contratos sinalagmáticos (i.e., com nexo de correspectividade) é: do ut des (dou para que dês). A excepção do não cumprimento da obrigação ocorre em geral naquelas situações em que o contrato está na eminência de ser celebrado faltando apenas o cumprimento acessório de certos actos. As partes acertaram o dinheiro e os pormenores do contrato porém falta a prática dos actos materiais para que se assine definitivamente o contrato como mostra de cumprimento cabal das obrigações que os envolve: Basta a recusa daquele que é protegido pela cláusula de excepção e o contrato já não acontece. É diferente da Reserva de Propriedade (pactum reservatti dominii – art.º 409.º – CC) em que o problema está na transferência da titularidade da coisa objecto do contrato: exemplo, o vendedor da viatura não transfere o título de compra e venda em seu nome para o comprador enquanto este não pagar os últimos tostões conforme acordado em contrato já celebrado. Pode, até exercer a posse e utilizar, mas a viatura está ainda em nome do vendedor. Esta excepção é hoje muito frequente nos créditos automóveis cedidos pelos bancos comerciais em que o comprador (devedor bancário) vê a viatura comprada em nome do banco até completar o pagamento do respectivo crédito, embora a utilize em proveito próprio sem qualquer ingerência do banco. Falaríamos também de uma outra figura vizinha: o Direito de Retenção (art.º 754.º - CC) se não tivéssemos receio de cansar o leitor. Recapitulando: na excepção do não cumprimento da obrigação a parte protegida pela excepção não pratica um determinado acto (recusa a venda, por exemplo) ou não entrega determinada coisa, enquanto que na reserva da propriedade a parte protegida que já aceitou a venda não passa a titularidade da viatura em nome do comprador, embora este já a tenha efectivamente e a utilize em proveito próprio. São diferentes no tipo e iguais na finalidade. Porém, acontece que nem sempre o contrato pode ser estabelecido antecipadamente. Por exemplo, quem quer vender e ainda não tem os documentos da viatura ou o comprador que ainda não tem o dinheiro completo. As partes celebram então um contrato-promessa (em que prometem celebrar o contrato definitivo tão logo as condições em falta estejam reunidas). No contrato promessa com sinal (que está muito próximo do caso) em que uma das partes avança um montante pecuniário ou financeiro, embora a título de pagamento antecipado – total ou parcial, a Lei estabelece que aquele que receber o sinal (montante adiantado) pode retê-lo a título de indemnização se a causa do incumprimento da obrigação for imputável àquele que constituiu o sinal – i.e., se for por culpa daquele que deu de avanço o montante prometido. Porém, se o incumprimento for devido a quem recebeu o sinal, este tem a obrigação de devolver (a Lei fala em restituição) o montante em dobro (art.º 442.º – CC). Não interessa à Lei que Yola Araújo tenha viajado de carro para Huambo (com os riscos que bem conhecemos) e tenha feito gastos pessoais e extraordinários. Se houveram riscos e custos adicionais estes podem ser exigidos complementarmente à parte incumpridora mediante competente processo judicial, em caso de resistência ex-voluntate. De todo o modo, a Lei é clara. Há sinal e as partes regem-se pelas regras por ele estabelecidas. Há o problema de saber se este tipo de contrato pode ser verbal, visto que a Lei estabelece certos tipos de contrato-promessa como sendo obrigatoriamente escritos. Na melhor hermenêutica jurídica inscreve-se a ideia de que quando o contrato definitivo (contrato a que refere a promessa) é exigível documento autêntico ou particular, a redução escrita da promessa é obrigatória. Pelo que, por argumento ad maius (maioria de razão) se entende que para os contratos de prestação de serviços a redução por escrito não é indispensável e como tal a respectiva promessa pode ser verbal. O contrato promessa coloca ainda o problema da tutela jurídica (garantia) em caso de incumprimento. Não tendo sido reduzido a escrito, a garantia idónea seria a execução específica (art.º 830.º - CC) como regime-regra. Contudo, há um montante (2.000,00 USD) adiantado pela organização do Comité Miss Huambo que a Lei entende como sendo sinal. Neste caso, afasta-se a garantia da execução específica em favor da regra do sinal que estabelece a forma de indemnização.

CRIMES CONTRA A SEGURÂNÇA DO ESTADO

Da violência da Lei contra o Sistema Jurídico e Democrático Angolano
(Texto publicado no Semanário Angolense)

Albano Pedro


A Lei 7/78 de 26 de Maio (Lei dos Crimes Contra a Segurança do Estado – adiante LCCSE) é um instrumento legal de carácter repressivo legitimado pelo Estado angolano de opção centralista pro-comunista contra os efeitos da instabilidade política da época e das guerras sustentadas pelo ambiente da guerra fria em que o mundo mergulhou, após a 2ª Guerra Mundial. Igualmente reforçada pelo conturbado processo de independência em que os movimentos de libertação que terão negociado os acordos de Alvor mediado por Portugal, como potência colonizadora, em que ficou assumido o compromisso para a divisão do poder político entre as três principais forças políticas militarizadas (FNLA, MPLA e UNITA) para a composição do Governo de transição, enquanto projecto que acabou dissolvido pelas desconfianças e estratégias engendradas pelas várias potências ocidentais disputando a hegemonia sobre o novo país programado a nascer com a proclamação da independência de 1975. Tendo traído as expectativas dos movimentos políticos seus parceiros (FNLA e UNITA) que assim se viram forçados a mobilizar forças estrangeiras (zairenses e sul-africanos) para combater a tendência de exclusão política apoiada pelos russos e cubanos, para além de se ver sacudido por uma brutal perseguição política dos seus membros que culminou com o célebre massacre de 27 de Maio, o MPLA, auto-proclamado representante único do povo angolano, se vê na condição de vítima permanente de inimigos multilaterais. Como consequência, os angolanos vêem, nos anos que se seguem, os seus direitos fundamentais manifestamente restringidos com a introdução de instrumentos como a DISA (Polícia de feição política com fortes poderes repressivos), recolher obrigatório para todos os cidadãos a partir das primeiras horas da noite, viagens e passagens interprovinciais autorizadas mediante guias de marchas, serviços militar obrigatório forçado por recrutamentos discricionários em que as idades mínima ou mesmo máxima nem sempre eram respeitadas entre outros mecanismos compulsivos e repressivos da época para impor uma vigilância política extrema.

É neste ambiente de inimigos internos e externos, identificados ou não, que nasce a famigerada LCCSE. Não estranha que a mesma comporte matérias que reflectem um clima de insegurança generalizado vivido pelo MPLA como partido proclamador da independência da nação. Não é por acaso que é introduzido o tristemente célebre art.º 26.º procurando interpretar quaisquer actos vistos na conveniência da extinta DISA como atentadores contra a Segurança do Estado e na base delas centenas de milhares de vidas tenham desaparecido naqueles tenebrosos momentos da vida política nacional. A LCCSE vai dividir as principais matérias de segurança do Estado em Segurança Externa (art.º 1º e SS) e Segurança Interna (art.º 16º e SS) e dispõem a partir destas um conjunto de dispositivos normativos envolvendo molduras penais com fortes penalidades com vista a inspirar o terror entre os “inimigos do Estado” e motivar a sua captura ou denúncia pelos cidadãos bem como a sua vigilância pela CPPA, pelos múltiplos organismos de segurança e vigilância criados desde então como as BPV (Brigadas Populares de Vigilância) ou ODP (Organização de Defesa Popular) e mesmo pelas organizações de massas do partido como a OPA (Organização do Pioneiro Agostinho Neto), JMPLA ou OMA. É o MPLA-Povo mobilizado para a protecção do Estado pro-comunista. Há então normas incriminadoras que confundem as preocupações do Estado com as do partido único ao ponto de confundir as matérias estritamente ligadas à segurança do Estado por um lado e são estatuídas condutas que vão para além da necessidade de segurança do Estado por outro lado. O que leva o cidadão a ter sérias dificuldades em compreender o verdadeiro conceito de segurança de Estado e as respectivas matérias jurídicas deste âmbito. Dentre estas normas são de destacar a incriminalização de condutas como o arrancamento e supressão de sinais fronteiriços (art.º11º) – quando é certo que esta conduta em nada implica a alteração do espaço territorial oficial do Estado; ofensa à honra do Chefe de Estado ou membros de governos estrangeiros (art.º12º) – Quando a tutela jurídica dos direitos de personalidade noutros diplomas legais bem cuida destes aspectos; o conceito de traição à pátria leva em conta a prática de uma conduta praticamente impossível: o da entrega do território angolano a um país estrangeiro (art.º 1º, n.º 1); a desnecessária relevância criminal para efeitos de segurança da difamação do Estado angolano (art.º 8.º), entre outros. Não há dúvidas que o aludido art.º 26º seja dentre todos, o mais perigoso, por permitir a subsunção legal de quaisquer factos tidos como relevantes para as autoridades oficiais como sendo crime contra a Segurança do Estado. Pois, estabelece o corpo da norma que “Todo e qualquer acto, não previsto na lei, que ponha ou possa pôr em perigo a segurança do Estado, será punido…”. Outros dispositivos normativos tornam mais evidente a inadequação da LCCSE aos momentos actuais: casos de incriminação do Lock-out e incitamento à greve (art.º 23º); da instigação à desobediência colectiva (art.º 24º); a definição duvidosa do crime de rebelião (art.º 19º), etc. Está claro que a LCCSE põe em causa o conceito de Estado e a segurança que lhe é inerente procurando acautelar no fundamental os perigos divisados no interior do partido que lhe sustentava. Uma das confusões desta Lei é a preocupação sobranceira de acautelar a Independência em detrimento da própria soberania do Estado, quando é certo que a independência reconhecida internacionalmente é um título jurídico-político irreversível e como tal insusceptível de ser ameaçado. É a soberania que resulta da independência, como elemento frágil por sujeito a flutuações políticas, que carece de protecção e tutela jurídica desta natureza. Confusão que resulta das preocupações partidárias e não políticas da época. Já que à luz dos acordos de Alvor, o MPLA receava novas independências que podiam ser reivindicadas ou pela FNLA ou pela UNITA.

O Estado foi durante muitas escolas políticas entendido como o conjunto de três elementos essenciais, nomeadamente o território, o povo e o poder. Modernamente as correntes mais convincentes entendem o Estado como sendo o substracto humano: o povo. O território e o poder são meros sustentáculos ou condições materiais de uma realidade fundamental assente no substracto humano. Na verdade as leis constitucionais têm como objectivo último proteger os mais sensíveis e profundos interesses comuns dos cidadãos em que se incluem o próprio território e o poder que exerce a soberania originalmente detida pelo povo. Assim sendo, o conceito de segurança de Estado deve evoluir no mesmo sentido. Neste conceito a integridade física do Chefe de Estado pode ser considerado no âmbito da tutela da segurança do Estado como condição de integridade do poder soberano conducentes dos interesses do povo, mas nunca a integridade moral (ofensa à honra, difamação, etc.). Não diz respeito a segurança do Estado que o Presidente da República seja insultado ou injuriado porque tais actos não põem em causa e nem condicionam o exercício do poder político confiado pelo povo. Da mesma forma é discutível a relevância absolutamente política da segurança do Estado ou seja pensar que segurança do Estado é a mera conservação dos órgãos de soberania e do território administrado em detrimento de outros interesses igualmente importantes e profundos do povo resulta numa deturpação do conceito de Estado e da segurança que lhe subjaz. Sendo o povo o elemento central do Estado ao qual diz respeito as matérias relativas a segurança do Estado é de todo útil considerar matéria de segurança de Estado tudo o que coloca em perigo a existência harmoniosa da sociedade e a sobrevivência do povo. Neste prisma a existência injustificada da pobreza extrema e da fome e miséria em grande escala, a ocorrência de catástrofes naturais por omissão do Estado ou acidentes de grandes efeitos sociais devido a condutas de certos agentes públicos e mesmo até de certas endemias ou pandemias causadores de graves prejuízos sociais porém susceptíveis de prevenção, a acumulação de dívidas públicas para além da capacidade do Estado em cumprir com os respectivos serviços de dívidas onerando em consequências as gerações futuras, o incumprimento negligente ou doloso de programas executivos, resultantes de promessas eleitorais, em prol do desenvolvimento social e económico dos cidadãos, a nomeação de juízes como factor de ingerência no poder judicial, entre outras matérias, podem ser considerados factos relevantes para a Segurança do Estado.

É claro que esta variante da segurança do Estado coloca os titulares dos órgãos de soberania e demais decisores do Estado e órgãos afins nos mais variados escalões hierárquico no centro da autoria das condutas juridicamente relevantes para a segurança do Estado. O que não foge às tendências das constituições modernas em que, por exemplo, o crime de lesa-pátria (alta traição) é fundamentalmente atribuído ao Presidente da República ou Chefe de Estado e/ou do Executivo (conforme caso). E faz sentido. Em boa verdade, a segurança do Estado só pode ser colocada em causa por quem tem a responsabilidade de o administrar (titulares de órgãos de soberania) e não o destinatário desta administração (povo). E o povo, pelo contrário, deve garantir a protecção dos seus interesses contra os actos de gestão dos seus mandatários prevenindo dentre os mesmos aqueles que põem em causa a segurança de todos os cidadãos, i.é, a segurança do Estado.

A consideração de base é, nesta reflexão reformista das leis de segurança do Estado, a gestão danosa do Estado que deve acarretar as mais graves consequências jurídicas aos seus autores à semelhança dos crimes mais relevantes contra a segurança do Estado. Vindo disto que, os roubos ou furtos (conforme classificação oportuna) operados em instituições públicas envolvendo somas avultadas (i.é, a partir de certos montantes pecuniários) que põem em causa a estabilidade financeira das instituições públicas devem ser considerados como sendo condutas sancionáveis no âmbito das matérias tuteladas pelas leis de segurança do Estado. Aqui estaríamos a transplantar na legislação sobre a segurança do Estado uma feição económica e social (sobrevivência do povo) que se junta a feição política (conservação dos órgãos de soberania e da integridade territorial), para além de introduzir a tutela civil em reforço para a garantia efectiva dos interesses protegidos pela Lei. Estaríamos perante uma nova Lei (Lei Sobre a Segurança do Estado e não mais Lei dos Crimes Contra a Segurança do Estado) prevendo a responsabilidade civil ao lado da responsabilidade criminal em matéria de segurança do Estado, levando deste modo a sua conformação com as opções políticas, económicas e sociais fundamentais admitidas na III República.

QUESTÕES INERENTES A INVESTIGAÇÃO CRIMINAL

Albano Pedro

(Texto reservado à publicação ao Semanário Angolense)


A edição passada deste semanário surpreendeu o público ao trazer a matéria relativa ao processo de investigação criminal a que está a ser sujeito, Quim Ribeiro, comandante da Polícia Nacional de Luanda suspenso das suas actividades por este facto, dando conta que o mesmo está a ser conduzido por agentes afectos ao SINFO. O que coloca a questão de saber se este organismo pode, à luz da Lei, proceder a diligências investigativas normalmente desenvolvidas pelos serviços de investigação criminal ligados a Direcção Nacional de Investigação Criminal (DNIC). Ou seja, pode o SINFO substituir-se a DNIC?

É uma questão que não se responde directamente sem convocar uma outra questão do tipo: qual deve ser o órgão, em países de regularidade legal, a conduzir tais diligências? Desde logo, é mister considerar que a instrução de um processo criminal, normalmente iniciada com uma denúncia ou auto de notícia do cometimento de uma infracção criminal, se reporta a investigação e recolha de provas (formação do corpo de delito) com vista a fundamentação da acusação do Ministério Público em juízo, i.e., tem fins judiciais, levando a que o indivíduo objecto da referida investigação (arguido ou réu conforme a fase processual) seja condenado ou absolvido em competente processo judicial e no respectivo julgamento mediante a convicção carreada pelos elementos de prova assim reunidos.

Em países como Portugal (o exemplo vem menos por mérito do que pela aproximação de culturas jurídicas) a investigação e recolha de provas com fins judiciais é feita pela Polícia Judiciária (PJ) sob direcção do Ministério Público embora a Polícia tenha também órgãos de investigação e recolha de provas, porém, com finalidade diferente (eventualmente a de fundamentar as próprias diligências policiais em relação as matérias ligadas a crimes e outros actos relacionados de que tenha responsabilidade em provar ou investigar).

Nada repugna que Angola siga o mesmo caminho, como aliás muito se tem discutido a esse propósito, i.e., nada impede que paralelamente exista uma DNIC integrada no Ministério do Interior e uma Polícia Judiciária integrada no Ministério Público (PGR) contando que as suas funções e finalidade (competências e/ou atribuições) sejam distintas e para este último órgão se reconheça o papel de conduzir a investigação criminal com fins judiciais. Todavia, em Angola, a função de investigação e recolha de provas é desenvolvida visivelmente pela DNIC (ou DPIC conforme o caso), embora a Lei impõe que a condução da instrução processual (sobretudo em fase de instrução preparatória) seja feita pelo Ministério Público representada pela Procuradoria Geral da República (PGR) que exerce, «ultima ratio» a acção judicial geralmente materializada com a acusação (art.º 12.º - Dec. Lei 35.007 – 13 de Outubro de 1945).

Nada impede que outros órgãos integrem ou participem da instrução preparatória do processo criminal contando que a direcção desta seja assumida pelo Ministério Público (art.º 14.º - Dec. Lei 35.007). O que, desde logo retira a hegemonia do Ministério do Interior, mesmo através da DNIC, de conduzir de modo autónomo a fase da instrução preparatória do processo criminal, ainda que com argumentos de, posteriormente, vir a “depositar” o processo correspondente nas “mãos” da PGR.

A interferência de órgãos não vocacionais e outras anomalias do género ou não que se registam durante a fase da instrução preparatória do processo criminal, são tributários da falta de clareza e definição do sistema de instrução processual angolano que é fortemente dominado pelo Ministério do Interior (DNIC) por razões pacificamente justificadas num passado recente em que as matérias de segurança do Estado estavam no centro das atenções em razão do clima de instabilidade provocada pela guerra civil e pela debilidade do sistema político vigente. Modernamente há uma ponderação obrigatória: a irreversível caminhada para a regularização das instituições legais e democráticas angolanas recomenda uma postura organizante nova e sobretudo orientada para a reposição da normalidade funcional das instituições. O que a acontecer em relação ao sistema judicial e serviços afins ofereceria mais garantias de materialização da justiça em benefício dos cidadãos e outros entes sociais.

terça-feira, 9 de novembro de 2010

35 ANOS DE INDEPENDÊNCIA DE ANGOLA

O difícil processo de construção de um Estado de todos os angolanos

(Texto original reservado ao bissemanário folha8)

Albano Pedro

Para um balanço sobre os 35 anos de independência de Angola é obrigatório dividir as fases históricas do processo de construção da nação e do Estado em três momentos facilitados pelas reformas constitucionais que deram lugar às três repúblicas desde 1975. Obrigatório ainda é determinar que o processo de conquista da independência sofreu uma das maiores vicissitudes que pesa sobre os angolanos que hoje surge na veste de intolerância política demandando uma verdadeira política de reconciliação nacional. Essa vicissitude é sem dúvidas o desentendimento operado entre os principais movimentos de libertação nacional: FNLA, MPLA e UNITA, tendo causado todas as guerras civis que os angolanos conheceram até aos dias de hoje com fortes sequelas em cada cidadão.

PRIMEIRA REPÚBLICA

Surgida com independência de 1975, a I República caracteriza-se como um projecto de sociedade forçado sobre uma plataforma de conflitos políticos em que o MPLA, partido proclamador da independência, se vê obrigado a afastar a UNITA e a FNLA do Governo de Transição, proposto pelos acordos de Alvor assinado pelos três movimentos armados, como mecanismo de organização e preparação das primeiras eleições livres em Angola depois da colonização portuguesa. Pressionado pelas potências ocidentais, o MPLA-PT prefere governar sozinho submetendo o povo a um regime totalitarista promovendo no Estado nascente uma opção política fundamental de cariz socialista pro-comunista integrando desta feita o bloco socialista no contexto da guerra fria que promoveu a “cortina-de-ferro” contra o bloco capitalista. Com o Governo revolucionário do MPLA-PT, instala-se um ambiente legal, policial e político extremamente repressivo e os direitos, liberdades e garantias fundamentais são suprimidos ao mínimo. O cidadão não é um elemento de plenos direitos constitucionais e como tal vê a sua soberania absolvida pelo partido-Estado que a exerce directamente na legitimação dos órgãos de soberania do Estado. A sociedade civil como tal é inexistente. Apenas o trinómio Estado, partido e povo podem ser configurados dentro do sistema social emergente, embora sejam autorizadas representações de organizações internacionais como as nações Unidas. A economia é estatalizada com toda a propriedade privada transferida para o domínio público e apenas os indivíduos ligados ao sector público têm acesso a salário e ao fornecimento regular em bens de consumo mediante atribuição de cartões de abastecimento. Várias empresas estatais prestando desde serviços básicos aos mais complexos são criadas, muitas sobre património de empresas coloniais nacionalizadas. Há então uma economia informal próximo da evolução artesanal que absorve os indivíduos “marginalizados” pelo sistema por falta de certos requisitos, nomeadamente falta de cumprimento do serviço militar obrigatório, certo grau de ensino geral concluído, documentos de cidadania nacional, etc., que sustenta maioritariamente os cidadãos regressados de países vizinhos (Zaíre, Zâmbia, etc.) por virtude do fim da colonização e dos últimos conflitos produzidas por ela. Após o massacre de 27 de Maio que dizima milhares de angolanos no seio do partido-Estado reforçado com a guerra desencadeada pelos desentendimentos no processo de independência pela FNLA e UNITA e seus parceiros estrangeiros, nasce um ambiente de suspeição generalizada no seu do MPLA-PT que leva o seu Presidente a proclamar mais tarde uma política nacional de clemência visando descomprimir o ambiente de medo entre os angolanos pelo perdão generalizado a todos aqueles que figuravam como “inimigos da pátria” (mormente do Estado socialista). O que proporcionou a rendição progressiva de números significativos de integrantes das forças militarizadas que desenvolviam a guerrilha pela UNITA ou pela FNLA, esta praticamente substituída no terreno militar pela FLEC-FLAC.

Nos finais dos anos oitenta, o projecto de Estado socialista, desgastado pelas guerras civis e por inimigos internos e externos do MPLA-PT era praticamente declarado falido, com os seus múltiplos programas sociais e económicos cronicamente disfuncionais para além do não acatamento efectivo de slogans e palavras de ordens (“o mais importante é resolver os problemas do povo”, “ao inimigo nem um palmo da nossa terra”, etc.) pela consciência colectiva frustrada pelo regime social e económico vigente. As empresas dirigidas maioritariamente por “gestores-guerrilheiros” (indivíduos da confiança do partido com curriculum e experiência duvidosa neste domínio) eram mantidas em situação técnica de falência (não tinham rendimentos) sustentadas por “plafonds” desgastantes para o Orçamento Geral do Estado. O lançamento do Programa de Saneamento Económico e Financeiro (SEF) bem como das “campanhas” de reforma empresarial do Estado pela política de redimensionamento e privatização são dos últimos argumentos na tentativa de salvar um sistema social gravemente atingido pela inoperância económica. Em 1991 os ideais de reforma política convencem o MPLA-PT que admite a democracia pluripartidária forçada pela UNITA e pelas circunstâncias internas do Estado, as conversações para os acordos de paz têm início e em 1992 – com as primeiras eleições livres – é enterrado o sistema social trazido pelo MPLA-PT e com ele desaparece a I República. O balanço é apenas positivo no que toca a admissão da reforma social e económica pelo MPLA sendo catastrófica no que tange as perspectivas de desenvolvimento social e económico. Afinal, o comércio é inoperante e a indústria é inexistente. A actividade informal de cariz artesanal sustenta grande parte da população angolana, o povo está empobrecido carregando consigo problemas sociais gravíssimos misturados com altas taxas de analfabetismo, mortalidade infantil entre outros problemas. Há quem, no desespero, prefira o regresso à colonização portuguesa. O sonho da independência inspirado pelo Primeiro Presidente da República (Dr. António Agostinho Neto) é já uma névoa nas esperanças dos angolanos e os rostos desenham a necessidade de uma salvação política diferente.


SEGUNDA REPÚBLICA

Em 1992 nasce a II República com a cessação dos conflitos armados protagonizados pela UNITA e o MPLA, por força dos acordos de Lusaka em que as duas forças entenderam lançar um país de vocação democrática assente no primado das leis. Mas Angola está destruída pelas guerras e enfraquecida pelos graves problemas sociais. As eleições livres acontecem num clima de suspeições, não produzem os efeitos esperados pelo povo e a frustração das partes leva ao reinício das guerras civis para o desespero de todos os angolanos. Como consequência, as previsões constitucionais de um regime social e económico aberto a participação do indivíduo e à livre concorrência são “arquivados” e o povo vai enfrentar ainda o fantasma do partido-Estado com o MPLA procurando reformar os seus velhos hábitos de gestão da coisa pública. O país mergulha numa economia de concorrência selvagem onde a corrupção e o clientelismo são palavras de ordem para os “novos-ricos”. Há uma confusão nas estruturas sociais onde a permissão de uma economia de livre concorrência é misturada a uma ditadura política persistente desde a primeira República, e como tal a economia privada não nasce ante a um conjunto de constrangimentos políticos.

Contudo, há um Governo de Unidade e Reconciliação Nacional (GURN) que junta partidos da oposição ao MPLA na governação do Estado configurando um “cocktail político dos diabos” em que os que acusam de má governação podem ser vistos a participar dela, sendo contudo uma experiência muito válida para a manutenção de um clima de esperança para dias melhores. Em 2002 está claro que a guerra faz parte do passado, com a morte do líder da UNITA e rendição de todas as suas forças militares. Durante 16 anos as eleições democráticas não aconteceram e o clima de relativa paz vai levar o MPLA a organizar e a realizar as segundas eleições legislativas em 2008 vencendo-a esmagadoramente. Nesta II República, os momentos relevantes são notáveis desde 2002 em que a consolidação do processo de paz iniciado em 1992 é nota dominante e pela primeira vez na história da Angola independente o MPLA dirige sem guerras civis de abrangência nacional (há a descontar as operações militares da FLEC-FLAC em Cabinda). Porém, a situação social requer reformas urgentes e profundas. José Eduardo dos Santos dá então um passo significativo: contrai empréstimos volumosos da República Popular da China para acelerar a corrida contra o subdesenvolvimento, embora os seus termos em muito sejam contestáveis. O crescimento económico proporciona está ousadia e temos então Angola a caminhar para algum lado depois de 1975, mesmo quando persistem os profundos problemas sociais herdados da primeira República.

TERCEIRA REPÚBLICA

Com os últimos resultados eleitorais, a Lei constitucional sofre um duro golpe procedimental dando lugar a uma nova reforma precipitando a III República. O MPLA quer uma direcção isolada (sem o GURN ou sombras de fortes partidos de oposição) para começar a corrida ao desenvolvimento numa estratégia em que privilegia a dimensão económica (infra-estruturas técnicas e sociais) em detrimento das políticas sociais de emergência e sustentáveis. Há uma atenção virada para a reconstrução nacional que inclui áreas não vocacionais como a construção do parque imobiliário residencial e o relançamento do sector empresarial do Estado em áreas de plena concorrência com o sector privado. Os volumosos recursos aí mobilizados não permitem um programa de saúde e educação que inspire novos ânimos. Com a reestruturação do Governo, nasce uma dinâmica que inspira uma acelerada reforma jurídico-legal sobretudo no plano infra-ordinário e pela primeira vez a vontade de prestação pública de contas do Estado que permite uma certa monitorização dos programas executivos. Finalmente acontece um discurso à nação na Assembleia Nacional em Outubro deste ano. As estatísticas no sector social ainda são assustadoras (altas taxas de mortalidade infantil, índices elevados de desemprego e de habitação social condigna entre outros problemas). O executivo porém, persiste “no caminho certo” com o privilégio sobre o plano da reconstrução de infra-estruturas económicas numa visão em que o Estado é o único proporcionador do bem-estar económico e social dos cidadãos diante de uma economia privada inexistente.

OS DESAFIOS DA TERCEIRA REPÚBLICA

Chegados neste ponto, não é difícil delinear os desafios dos angolanos para os próximos tempos: a conversão da economia pública para uma economia privada organizada e crescente, a devolução do Estado ao sector público libertando-se das actividades de natureza privada, a reconciliação nacional que passa pela nova aculturação política do partido no poder e uma nova perspectiva de desenvolvimento (sustentável).

1. Economia privada

A economia privada, esta quimera dos anos 90, esta difícil de parir porque o executivo persiste numa política de estatalização da economia em que o sector público condiciona toda a actividade económica nacional incluindo a actividade da banca comercial. Para que ela nasça efectivamente é necessária uma política de organização e estruturação deste sector que passa pela abertura da Bolsa de Valores e Derivados de Angola como alavanca impulsionadora do mercado financeiro angolano, este proporciona o surgimento de serviços e agentes financeiros que diversificam a sustentação da economia privada nascendo assim uma classe empresarial multissectorial. Os índices de emprego sobem e os salários gerados pela concorrência melhoram as condições de vidas dos cidadãos em particular e os rendimentos dos particulares em geral. O que encoraja o sistema bancário a actuar na economia privada. Para tanto, uma nova política fiscal deve ser estabelecida, o sistema cambial estabilizado, a política aduaneira facilitada e a política comercial aberta à região da SADC e ao investimento estrangeiro entre outras medidas não difíceis de divisar pela boa vontade política.

2. Estado Social

O Estado deve abandonar com urgência a política de mobilização de investimentos públicos para sector de concorrência privada tais como o de fomentos e desenvolvimento habitacional e o do relançamento empresarial. Privilegiando a política de fomento empresarial pelo apoio e o incentivo das parcerias público-privadas. O Estado passa a ter uma intervenção reguladora na economia e deve assumir a política de defesa nacional, saúde e educação concentrando nestes sectores os mais avultados recursos disponíveis, com destaque não já na política de redistribuição da riqueza mas do fomento de emprego pela criação de infra-estruturas económicas que suportem um empresariado nacional facilitado e apoiado pelo Estado através de múltiplos incentivos e facilidades incluindo uma política fiscal motivadora.

3. Partidos políticos democráticos

Angola continua a manter um sistema de privilégios que favorece largamente quem milita nas fileiras do partido no poder. A UNITA e o MPLA dividem os grupos sociais com tendências ao radicalismo exclusivista e a supressão dos interesses nacionais em favor do partido e seus líderes. É a fonte da intolerância política e do medo generalizado do povo que recomenda uma política de reconciliação nacional efectiva e urgente. A reforma da Lei dos Partidos Políticos bem como a prática destes deve orientar-se para a harmonia social e a promoção dos interesses nacionais diluindo o divisionismo social que impede a mobilização e junção dos esforços individuais para o desenvolvimento.

4. Modelo de desenvolvimento

No balanço do crescimento económico o Estado deve projectar um desenvolvimento urgente socorrido por um empresariado nacional crescente que assuma os riscos de investimentos em sectores não vocacionais do Estado, permitindo deste modo a mobilização de recursos para sectores estratégicos para o desenvolvimento sustentável como a educação, a saúde, a defesa nacional com actuação marcada por um intervencionismo indirecto para toda a economia privada. Falaríamos então num desenvolvimento económico sustentável proporcionador do bem-estar social dos cidadãos.

sábado, 23 de outubro de 2010

SOBRE A VIABILIDADE DAS CORRENTES DE OPINIÃO E OUTROS INTERESSES EM PARTIDOS POLÍTICOS

(Original do Texto publicado no Semanário Angolense)


Albano Pedro


Na senda da propositura de uma acção judicial ao Tribunal Constitucional por parte de alguns membros do MPLA com fundamentos genericamente enquadrados na necessidade de igualdade de exercícios de direitos político-partidários extensivos a todos os militantes deste partido político, incluindo daqueles que se vêem “marginalizados” no quadro das oportunidades estatutaria e legalmente estabelecidas vem a reflexão de que os partidos políticos, tal como todas as pessoas colectivas, são individualizáveis e sujeitas as leis. A individualização das pessoas jurídicas diante da Lei determina a clara separação entre as organizações e as pessoas (membros) que as compõem. Podendo acontecer que qualquer membro da organização que se sinta lesado nos seus interesses recorra contra a mesma enquanto pessoa jurídica responsabilizando-a dos respectivos danos morais ou materiais, forçando a alteração de condutas dos seus gestores ou dirigentes em prol dos interesses colectivos dentro de critérios fundados na proporcionalidade dos efeitos dos seus actos e contratos.

Não havendo qualquer pejo em admitir que as organizações sejam judicialmente demandadas, coloca-se-nos o problema de saber se os membros das organizações são livres de demandar as mesmas sempre que se lhe apeteça? A resposta negativa é evidente na medida em que o sentido de acção colectiva imposta pelo princípio da colegialidade das decisões que afectem a vontade e interesses dos seus membros implica que sejam deliberadas pela decisão das maiorias enquanto mecanismo deliberativo amplamente aceite nos sistemas democráticos modernos. Reportemos a um exemplo de escola pela fotografia de uma empresa sob forma de sociedade comercial (não importa o tipo) em que os sócios em Assembleia Geral deliberem sobre uma matéria que afecte visivelmente os interesses de um deles com o pretexto de que a mesma é vital para a empresa explorada pela sociedade comercial. Acontecerá que a maioria votará a favor de tal decisão social tendo em conta que a sobrevivência da empresa deve sobrepor-se aos interesses de cada individuo, porém o sócio prejudicado pela decisão pode instar a sociedade (gerência ou administração) para que lhe sejam reparados os danos emergentes ou, não conseguindo por esta via, demandar judicialmente a sociedade através da sua gerência com vista a ver satisfeito os seus interesses lesados. Este exemplo fotográfico ampliado num tamanho que cubra as organizações políticas pode ser visualizado sem quaisquer restrições, com a simples alteração de que nestes tipos de organizações as decisões são tomadas tendo em conta os interesses (ideologias e perspectivas políticas) das pessoas (e não de quaisquer empresas autónomas) e como tal devem acautelar os interesses das minorias procurando sacrificá-los, quando necessário, o mínimo possível. Daí que, em partidos políticos, sejam proibidas certas formas de descriminações entre os seus membros (art.º 8º alínea a) – Lei n.º 15/91 de 11 de Maio – Lei dos Partidos Políticos, doravante LPP) e que aos mesmos sejam vedadas práticas que promovam o tribalismo, racismo, regionalismo e outras formas de descriminação (art.º 5º, n.º 2 alínea a) – LPP), o que representa a protecção de interesses de igualdade entre os cidadãos consagrados na Lei Constitucional.

Apreciando em concreto os fundamentos do pedido em causa há a constatar a necessidade de reconhecimento de diversas correntes de opinião, a “abolição” dos comités de especialidades e a possibilidade de exercício abstracto de todos os direitos dos membros (militantes) estatutaria e legalmente consagrados. Quanto ao reconhecimento de diversas correntes de opiniões no seio do partido, a Lei Constitucional admite a liberdade de consciência e de opinião como direitos fundamentais. Se assim não acontece, estamos inequivocamente perante actos (incluindo omissões) perfeitamente inconstitucionais. O problema na verdade se coloca na concretização desta possibilidade legal, i.é, embora o Tribunal Constitucional reconheça esta liberdade e em consequência condene o MPLA a afastar tais normas estatutárias (se existem) haverá o problema de determinar se o simples afastamento normativo será suficiente para a satisfação deste interesse assim manifestado pelo grupo de militantes em causa. É que os aspectos subjectivos (interesses políticos) e as matérias (normas) nem sempre são coincidentes no plano da concretização. Podendo ser extintas as normas e mantidas as práticas. O que resolve o problema da inconstitucionalidade suscitado sem resolver os problemas manifestados pelos membros interessados. Nos parece que tais actos podem ser desencorajados pela responsabilização jurídica em função de ameaças de interesses ou dos danos efectivos deles decorrentes e como tal impor sanções disciplinares, civis ou mesmo criminais aos seus agentes na medida do prejuízo patrimonial causado a organização correspondente. Já a hipótese da extinção dos comités de especialidades (dos economistas, dos sociólogos, psicólogos, juristas, médicos, etc.) não parece ser constitucionalmente relevante, pois que as organizações podem agrupar os seus membros em razão de capacidades técnicas sem que disto decorram efeitos discriminatórios. As necessidades de maior desempenho organizacional recomendam tais modelos desde que sejam úteis para o efeito. Todavia, não é admissível que tais comités de especialidades sejam criados com prejuízo de interesses dos restantes membros. Nesta variante, o problema da inconstitucionalidade pode ser colocado desde que estejam em causa interesses de igualdade de tratamento dos membros no âmbito dos direitos e deveres gerais reconhecidos a todos os membros. Pelo que o problema não está na extinção de tais comités mas na limitação dos seus objectivos e actividades em razão da especialidade técnica dos seus membros. No que toca a necessidade de exercício abstracto dos direitos político-partidários não há dúvidas que a sua inviabilidade representa violação de direitos, necessariamente estatutários (art.º 23º n.º2 – LPP), com fundo constitucional assente em direitos fundamentais de igualdade. Por isso é que a Lei Proíbe procedimentos disciplinares dentro dos partidos políticos que põem em causa tais direitos fundamentais (art.º 28º - LPP).

De todo o modo, as organizações políticas primam pelas discussões dos interesses dos seus membros em homenagem ao princípio da colegialidade das decisões dos seus órgãos sociais, o que impõe que todos os recursos internos sejam esgotados antes de quaisquer recursos judiciais, salvo quando hajam danos evidentes ou interesses legítimos seriamente ameaçados e os seus responsáveis não manifestem interesse em resolvê-los. Ao que passa a ser imputado pelo seu representante legal máximo, visto que os partidos políticos são representados judicialmente pelos seus Presidentes ou pelos órgãos definidos pelos respectivos estatutos (art.º 20º n.º2 alínea j) – LPP). Finalmente, vale recomendar que as normas estatutárias e regulamentares obedecem aos ditames da Lei dos Partidos Políticos vigente que materializa os interesses constitucionalmente consagrados pelo que é casuisticamente viável o procedimento judicial para impugnação de certos actos imputados ao partido em causa, embora nos assista algum cepticismo quanto a possibilidade de tais interesses serem completamente satisfeitos com o provimento de uma acção de inconstitucionalidade posto que em partidos políticos a protecção dos interesses subjectivos (ideologias ou estratégias de grupos) são proeminentes em relação as normas que os consagram e protegem, para além de que por essa via judicial não se reparam ou se previnem danos.

terça-feira, 19 de outubro de 2010

CARTA AOS PARTIDOS POLÍTICOS VIII

Albano Pedro


Um dos principais erros dos sistemas democráticos modernos assumido pela maioria das constituições políticas é o de permitir que um instrumento fundamental do povo, de conteúdo e característica não alienável, seja depositado na mão de um único indivíduo: A capacidade de determinar o momento da renovação dos governos através do exercício do direito de convocar as eleições. Nada mais absurdo, se considerarmos que ninguém precipita a sua própria derrota a menos que tenha um certificado de baixa num manicómio qualquer. O referendo, o plebiscito e até o impeachment (que levou o povo brasileiro a decidir sobre a saída do poder do Collor de Melo como seu presidente) constituem instrumentos através dos quais o povo não permite a decisão sobre os problemas mais sensíveis se quer nas mãos dos deputados, seus representantes. Uma dessas decisões tem de ser obviamente o direito a marcar as eleições, sobretudo quando se verifiquem injustificados atrasos para o efeito. É claro que para os Governantes a questão logística constitui razão de sobra para que o Presidente da República tenha este direito e para os constitucionalistas revestidos de visões parciais, dentre várias razões, invocam o débil facto de que, por força do solene juramento em cumprir com as leis, o papel de guardião da constituição basta para tamanha autoridade.

Outro facto interessante, porém incompreensivelmente tolerado pelas forças sociais interessadas, é o poder de organizar o processo de registo eleitoral e o consequente processo eleitoral com a pretensa ideia de partilha no controlo e fiscalização do referido processo através da indicação de agentes representantes dos partidos da e na oposição civil e da sociedade civil em geral. Nada como isso pode salvar a quem a esta plataforma se submete de ser rotulado como estando fora do seu perfeito ser.

Graças a estes poderes, acrescidos com o de controlar a administração do Estado, quem se acha na situação pode ilimitadamente recrutar e arregimentar em torno de si mesmo miríade de instrumentos multifuncionais propícios ao esmagamento da vontade do povo. Já porque não é possível que um processo nestes termos possa decorrer de forma justa, já porque todos os argumentos, com recurso ao maquiavelismo, podem ser chamados para o adiar de acordo com as conveniências de quem coordena o mesmo.

São determinantes, para o sucesso deste importante projecto em fase final de conclusão, as divergências no seio de uma oposição civil, desorientada e incapaz de reconhecer os seus erros sucessivos, que pela força da ganância (ou ambição desmedida como alguns chamam) pelo poder não consegue unir forças para a luta por uma causa comum. Assistindo a todo o tempo a sua própria manipulação pelo regime, incluindo a aceitação pacífica de um engodo como este.

Vale alertar, embora em tempo inútil, que no limiar das eleições cuja marcação ocorrerá quando convir a ala futunguista do MPLA, o atraso ou adiamento na disponibilização das verbas para o apoio dos partidos no processo eleitoral será um instrumento que ao ser usado no momento certo surtirá efeitos fatais para a maioria, senão todas, as formações políticas que para a substituição do regime se propõem. Para que essa justificação seja válida, será necessário que o próprio MPLA seja vítima do problema. Provavelmente, a capacitação financeira desta formação política através da adopção de recursos financeiros extra-orçamentais para que possa, em tempo útil, socorrer-se de meios não disponíveis pelo Estado seja com este propósito. Para além de que a programação técnica dos meios informáticos a empregar no processo eleitoral para a contagem dos votos e o apuramento dos resultados não garante a pessoas sérias quaisquer garantias de estar livre de vícios.

É claro que este quadro, manifestamente favorável ao partido da situação, não é estranho para a maioria dos dirigentes políticos da e na oposição, cujo comportamento e práticas recorrentes mais identificados com as dos comerciantes, vêm já manifestando aos olhos mais atentos o sentido de cumplicidade contra a vontade honesta do eleitorado nacional, confundindo mesmo a oposição e a situação política. Tão abusivo comportamento demonstra, não só, desrespeito e falta de sensibilidade perante os problemas mais profundos do eleitorado nacional e a consequente vontade de alternância do poder como denota gritante falta de vocação política, o que é notável pela falta de acção política, estruturação efectiva de programas de governo e falta de planos concretos de governação. Por isso, constitui verdadeiro elogio alistá-los ao quadro de cúmplices de um processo de distorção daquilo que devia ser a primeira oportunidade de exercício consciente de direito de eleger, uma vez que as primeiras eleições gerais caíram em descrédito devido ao emperramento que causaram a dinâmica democrática que se esperou efectiva com a renovação periódica dos mandatos.

CARTA AOS PARTIDOS POLÍTICOS IX

Albano Pedro


O problema de Cabinda, várias vezes ventilado como sendo de natureza eminentemente política causado por um ideal separatista e independentista e encarado pelo poder como solucionável pela via da extinção das forças sociais de oposição que incitam o povo a subversão armada, está mais próximo de ser relacionado com a falta de comunicação efectiva entre os cabindas e o resto do povo angolano.

O que não ocorre entre os políticos da praça angolana é a ideia de que a maioria do povo, geralmente pobre, não tem recursos que cheguem para usarem transportes marítimos e aéreos, normalmente mais caros que quaisquer outros. E que por via disso essa mesma maioria, no caso, nascida e residente em Cabinda não conhece o resto de Angola, seu território nacional o qual seria alcançado e identificado com maior facilidade e frequência se ao povo deste enclave se colocassem outras vias de comunicação. Por isso, não deve estranhar a ninguém que os cabindas sejam dos povos que menos circulam pelo território nacional e que, se identificado o facto com precisão, as pessoas que defendem a ideia da separação política e administrativa do enclave através da independência, fora os inspiradores, nunca viajaram pelas restantes provinciais compreendidas pelo território nacional em busca da semelhança cultural que une os angolanos e por isso sejam vítimas de interesses políticos insuflados a partir de países aos quais sentem maior aproximação. É pois essa visão redutora de território que leva a maioria dos cabindas a defender um ideal pouco esclarecido e contraproducente para a sua própria emancipação social e económica.

Na verdade, os cabindas estão muito mais ligados as culturas dos povos vizinhos (os dois Congos) com os quais trocam interesses e estabelecem tráfegos de influências sociais e culturais que se reflectem marcadamente na forma de ser e estar. Serve de comparação o facto dos Reinos Unidos, hoje estarem mais ligados a Europa do que houve memória no passado e como consequência estarem mais sensíveis ao projecto da União Europeia ao qual resistiram no princípio, graças ao canal que liga a Inglaterra e a França. E ao contrário, Portugal tem nas Ilhas da Madeira e Açores estatutos especiais devido a pouca fluidez na transferência de valores culturais e políticos causados pelos transtornos da falta de ligação rodoviária e ferroviária.

O papel das vias rodoviárias e ferroviárias na ligação dos povos é actualmente inquestionável. Devido a malha rodoviária e ferroviária funcional, países como Namíbia, Botswana, Lesotho, Suazilândia e Africa do Sul se encontram tão ligados que são quase dispensáveis as independências política de cada um. Ao mesmo tempo que a privação tecnológica e o lento desenvolvimento económico e social é uma realidade que os países insulares como São Tomé e Príncipe, Cabo Verde, Cuba, para citar alguns, encaram com permanência ao longo dos tempos devido ao facto de faltarem, no conjunto dos meios de comunicação com outros povos, as vias rodoviárias e ferroviárias. Entre nós, o exemplo da fase do conflito armado em que os comboios ferroviários e os camiões não podiam circular, apesar dos aviões em trânsito frequente, levou províncias como Kuando Kubango e Moxico a ruína de que hoje têm dificuldades de se verem livres. Para mais, Angola ficou literalmente distante dos países vizinhos a partir do momento em que as vias rodoviárias e ferroviárias deixaram de ser acessíveis. O conceito de país desenvolvido e país em via de desenvolvimento está relacionado fundamentalmente com a fluidez na comunicação que é determinada, no âmbito da circulação de pessoas e bens, pela complexidade da malha rodoviária e ferroviária que os países assim rotulados comportam. São casos disso a Índia, Brasil, China, Países membros da União Europeia, Rússia, EUA, etc. A funcionalidade e o sucesso de plataformas económicas de âmbito regional como SADEC, MERCOSUL, etc. é determinada pela teia de estradas e linhas férreas que ligam os Estados membros.

A solução técnica da ligação entre Cabinda e o resto de Angola (se feita com base em via subterrânea ou aérea) é da competência de especialistas nestas matérias aos quais caberá viabilizar a zona exacta do curso do Rio Zaire em que as estruturas físicas encontrarão maior segurança. Entretanto, no que toca a necessidade material desta via, ela pode compreender vias férreas e rodoviárias e a sua construção pode resultar do concurso do investimento privado nacional, internacional ou multinacional suportado por um acordo multilateral que envolva Angola e os dois Congos, certo de que o projecto sobretudo na sua componente ferroviária pode, para maior rentabilidade, alcançar as capitais dos três países, cujos ramais podem ser determinados pelas políticas internas das partes signatárias.

Visto, os transportes aéreos e marítimos serem os mais caros se comparados com os transportes rodoviários e ferroviários, muito dificilmente a maioria do povo de Cabinda se sentirá enquadrado no contexto sócio-cultural nacional e por arrasto, o sentimento independentista de cada um será alimentado pela distância instalada entre Luanda, enquanto capital e a província de Cabinda.

CARTA AOS PARTIDOS POLÍTICOS VII

Albano Pedro


O sentimento nacional e o espírito patriótico são tão tributários da titularidade do património privado que o mundo se encontra dividido essencialmente em dois sistemas de organização económica e social. O comunismo que consiste num sistema de solidariedade social forçada pelo empobrecimento causado pelo Estado através da extinção de todas as formas de aquisição da propriedade privada e o capitalismo que privilegia o acesso a propriedade privada como base do exercício de direitos e liberdades dos cidadãos.

O que é caracterizado hoje como capitalismo selvagem é fruto da recuperação desenfreada do tempo esgotado pelo comunismo parcialmente assumido no passado pós-independência. O povo angolano que no final dos tempos da colonização começava a acumular capital através das oportunidades de emancipação económica e social que o regime colonial proporcionava aos autóctones mais empreendedores, foi literalmente assaltado e roubado pelo regime instalado no pós-independência. Perdeu a propriedade privada e durante todo o período da vigência da opção comunista atravessou um autêntico deserto económico, mendigando tudo o que necessitava a um regime paternalista de vocação social duvidosa.

Com o advento da democracia e da economia de mercado, o povo que se encontrava amparado pelas mãos do Estado-Senhor-de-Tudo se revelou patrimonialmente nu e tecnicamente incapaz diante de uma invasão desenfreada de povos de todo o mundo cuja experiência e capacidade empreendedora permite tomar conta dos mais rentáveis e prósperos segmentos comerciais. O próprio Governo pelas hostes palacianas desencadeou um processo de depuração que tem vitimado o povo no seu desesperado esforço de emergir num ambiente económico individualista. Promoveu uma elite económica composta por àqueles que se têm revelado particularmente servis ao regime e desenvolveu um complexo mecanismo de acesso a propriedade privada que dificulta o cidadão de se ver realizado longe do controlo do regime e facilita o cidadão estrangeiro, empreendedor ou não, que se apresente a corresponder ao apelo para a cumplicidade na exploração desenfreada do património público sob controlo da elite económica em questão.

O quadro actual é simplesmente desolador. Se grande parte do património económico e imobiliário foi nacionalizado e confiscado pelo Estado, a grande maioria dos angolanos não se vê beneficiado desta operação. Sendo certo que o bem imobiliário constitui a base de hipoteca para o acesso ao crédito financeiro, os poucos angolanos que têm acesso a esse bem não dispõem de título de propriedade sobre os mesmos. Situação criada para que o desenvolvimento da propriedade privada fora das simpatias do poder não tenha lugar. Ao invés verifica-se uma concentração abusiva de avultados meios patrimoniais ao redor dos senhores do poder transferindo agressivamente os principais meios de produção do Estado e os mais significativos bens patrimoniais públicos.

As referidas elites arrogam-se ao direito de fazer o uso da força, espezinhando e humilhando um povo desamparado pela expropriação de bens e pela obstrução no acesso aos serviços públicos essenciais as populações, criando como consequência, uma divisão de “classes” com diferenças económicas e sociais catastroficamente abismais, onde os “filiados” desfavorecidos são agravados com o “vírus” do analfabetismo e da pobreza e todos os ingredientes necessários como doenças de vária ordem, mendicidade, etc. E tudo acontece aos olhos cúmplices de uma plateia de partidos políticos que se pretendem propostas de alternância ao poder.

CARTA AOS PARTIDOS POLÍTICOS V

Albano Pedro


Para os olhos mais atentos e faro experimentado o caso Fernando Garcia Miala (FGM) encerrado recentemente em primeira instância judicial (uma vez que não se prescindiu do recurso judicial) para além de configurar uma perfeita demonstração de falta de seriedade na implementação do projecto de democratização e institucionalização de um Estado de Direito em Angola, representou a repetição de mais um ciclo de supressão da vontade reformadora do status quo em Angola que pela primeira vez foi protagonizada através do célebre 27 de Maio em que o sistema vigente arrastou intelectuais de respeitada craveira e milhares de almas inocentes sob a capa nominal de Nito Alves e com o mesmo elemento de causa: o subtil e persuasivo argumento do Golpe de Estado. Com a queda da cúpula militar (Chefes das FAA, do Exército, da força Aérea e de modo indeferido da Marinha de Guerra) e do Comandante da Polícia Nacional, o dossier FGM conseguiu refazer aquele cenário apenas com a ausência de cenas de morte e tiroteios a mistura. Pois, levou ao abismo do silêncio político uma enorme teia humana composta por milhares de cidadãos exercendo as mais diversas funções públicas e com as mais múltiplas referências de estarem ligados ao FGM.

É certo que um homem da estatura de FGM pelas funções exercidas e os efeitos que a sua actividade gerou junto da sociedade, sobretudo civil e da imprensa privada, não foi completamente inocente na formação da falta de escrúpulos da máquina que o vitimou, mas o que é certo é que a maioria dos cidadãos, revelou-se revoltada com a sentença política accionada contra o caso que o envolveu. Sobretudo devido ao facto de estar evidente a falta de um sistema judicial angolano que confira certeza e segurança jurídica.

Há lugar entretanto, ao recurso judicial em sede do Tribunal Supremo. Porém antecipadamente é sabido que aquela instância judicial há de sancionar a decisão proferida pelo Supremo Tribunal Militar, salvo se a vergonha fizer suficiente pressão moral sobre o sentido profissional dos juizes. A razão é simples: os juízes podem sempre decidir contra a Lei se quiserem (e acontece quase sempre na nossa praça judicial) sobretudo quando se sabe que o Presidente do Tribunal Supremo é indicado pelo Presidente da República. A única arma disponível contra as decisões discricionárias, muitas vezes proferidas ao arrepio da ordem jurídica, dos juízes é o recurso a instâncias judiciais superiores. Ora, o Tribunal Supremo é o último e não haverá um outro para decidir o caso FGM. E como é sabido que a decisão judicial é praticamente encomendada pelos senhores do poder então a justiça não será feita dentro dos critérios da legalidade, caindo pesadamente em desfavor do recorrente. O que restará ao FGM?

Um Tribunal Constitucional seria a única e verdadeira solução do caso FGM num país, que como o nosso, as decisões políticas são omnipresentes, até no sistema judicial. O Tribunal Constitucional ao qual seria de recorrer após a decisão do Tribunal Supremo e cujo objecto seria apreciar as questões de direito (e apenas de direito) inerentes ao processo que atentem contra a Lei e o espírito da constituição angolana. Seria o único capaz de obstruir o sentido discricionário das decisões dos juízes, em qualquer das instâncias, e destruir todos os efeitos gerados pelas sentenças e acórdãos proferidos nomeadamente pelo tribunal de 1ª instância (no caso Supremo Tribunal Militar) e a provável decisão reiterada na forma de acórdão pelo tribunal de 2ª instância (Tribunal Supremo). É que ninguém está acima da Lei e nenhuma Lei está acima da Lei Constitucional: Assim, o papel fiscalizador de um Tribunal Constitucional seria suficiente para destruir toda a farsa produzida contra a verdade subjacente ao caso FGM e destruir do topo a base todos os efeitos gerados pelas decisões produzidas pelo sistema judicial em todas as suas instâncias, uma vez que a este nível jurisdicional os juízes não são completamente livres de interpretarem a Lei nos termos que bem entendam, senão no quadro em que permita a Lei Constitucional enquanto Lei – Mãe.

Mas o sistema judicial angolano não comporta um tribunal Constitucional autónomo, o que representa, para além da própria decapitação e impossibilidade funcional do sistema de justiça angolana, um verdadeiro atentado contra o projecto de Estado de Direito. E quando se diz que o tribunal Supremo exerce a jurisdição constitucional não passa de outra farsa porque nenhum juiz do Tribunal Supremo exercendo a jurisdição constitucional anulará a decisão que proferiu na veste de uma outra jurisdição a menos que tenha um atestado psiquiátrico que atribua perturbações comportamentais graves. Chamo a isto impossibilidade jurisdicional subjectiva propositadamente criada com a omissão material de um Tribunal Constitucional cujo importantíssimo papel na construção de um Estado de Direito passa quase despercebido aos olhos e ouvidos das maiores autoridades políticas da e na oposição civil.

O que restará ao FGM num quadro em que a justiça, quando trata de casos políticos, tem uma mera representação estética? Reagir à decisão política do tribunal com uma outra medida política. A saber: Negociar com o poder uma possível amnistia ou comutação penal que só o Presidente da República pode conceder. Uma vez que o poder político tomou de assalto o poder judicial, e em consequência a manipulação da própria Lei, mesmo diante de uma oposição civil que se diz alternativa ao poder do Estado.

CARTA AOS PARTIDOS POLÍTICOS III

Albano Pedro


A maioria dos líderes políticos da e na oposição está longe de imaginar que o modelo de organização administrativa adoptado pelo MPLA, nos termos do qual as estruturas orgânicas do partido repartem-se pelo território nacional na dimensão da extensão da divisão administrativa do Estado, atravessando províncias, municípios, comunas, sectores, aldeias, povoações e “Kimbos”, obedece a lógica das formações partidárias de cunho comunista que, sendo verdadeiros monopólios políticos, têm a gigantesca função de administrar o Estado por tempo indefinido, tutelando o povo a tempo inteiro e em todos os locais de existência social possíveis (residências, salas de espectáculos e lazer, acampamentos, lavras, campos militares, escolas, agremiações culturais, artísticas e desportivas; empresas, repartições públicas, etc.) através de pulverizantes, recorrentes e asfixiantes mensagens propagandísticas que afectam todos os sentidos e proliferam nas artes, letras e mesmo ciências com o fim de “viciar” o raciocínio dos seus destinatários; configurando um verdadeiro universo cultural fictício sob o peso da ideologia forjada pela “classe dominante” dentro de um padrão paternalista de Estado que alcança o último cidadão dando-lhe inclusive o que comer e o que beber em quantidade e qualidade “politicamente” determinada. É pois a lógica de partido-Estado de que a UNITA igualmente se revestiu ao longo dos anos em que apostou na oposição armada. O que justifica o facto de ambas as formações políticas terem na forma de organização do Estado o seu modelo.

É um modelo organizativo que, por mais próximo da base social, permite maior controlo sobre a massa militante, divisando neles aqueles cuja evolução psicossocial, tendencialmente orientada ao questionamento da existência social, ameaça a estabilidade da ideologia no seio da maioria procurando prevenir a subversão com medidas compulsivas como ameaças e todas as formas de intimidação e torturas. Sendo um modelo em que o Partido dispõe da vida do cidadão.

A imitação deste modelo de organização partidária, por parte de outras formações políticas, pode resultar de uma “vontade inocente”, visto que estão longe de relacionar esta forma de organização com os modelos ditatoriais de que o ambiente democrático procura, pela sua natureza, despir-se. Porém, configura a ideia de que os partidos assim organizados apelam por um perfil ditatorial de controlo do Estado pretendendo assenhorar-se do pensamento do último cidadão.

O que vale reflectir é que, para além de ultrapassado pelos ventos da democracia, este modelo tem o defeito de trazer consigo consequências interessantes. O primeiro grupo de consequências compreende a excessiva “massa” humana no quadro orgânico devido a gigantesca complexidade que os partidos atingem ao abarcar o território e o desvio de grande parte dos recursos materiais e financeiros em actividades não relacionadas com a vocação partidária. O segundo grupo de consequências, derivadas do primeiro, comporta a falta de qualidade técnica dos recursos humanos devido a incapacidade natural de que se vestem os partidos políticos, que assim se estendem pelo território, de conferirem remunerações aceitáveis, para além de outras. Resultando deste quadro, o clima de “impotência” financeira da maioria das organizações partidárias e da escassez de quadros técnicos capazes de “exaltar” a vocação política destas mesmas formações partidárias.

Nos dias de hoje, em que os partidos políticos vivem as expensas do povo através do Orçamento Geral do Estado, o debate sobre a possibilidade de supressão de tão gigantescas estruturas partidárias ou para o “redimensionamento” dos partidos políticos angolanos tem absoluta prioridade. Já porque os perto de 200 partidos “roem” significativa fatia das finanças públicas que bem serviria para importantes e proveitosos empreendimentos públicos, já porque estes mesmos recursos financeiros nem sequer chegam para que os partidos políticos cumpram com os seus objectivos. Assim, os recursos disponibilizados em somas significativas, se perdem sem proveito para os cidadãos.

O que a democracia recomenda, e o mundo tem exemplos que proliferam aos milhares, é que os partidos se desfaçam da pretensão de “acumular” cada vez mais militantes, insuflando neles o espírito de “confiança cega” pela ideologia partidária, desprezo pelos interesses não identificados com as organizações em que militam e ódio contra os membros de outras organizações partidárias. Resultando disto, que nenhum partido sóbrio deve pretender controlar a massa de militantes senão com o interesse único de consciencializá-la para o exercício eleitoral. E nesta realidade, o principal papel dos partidos políticos é o de alcançar o poder político preparando os seus militantes para a administração do Estado, libertando-os para o senso de simpatia pelos programas e agendas políticas afastando deles o sentimento fanático pelos chefes como se de uma irmandade se tratasse.

Esta atitude passa naturalmente pela forma de organização dos partidos políticos cuja extensão territorial se bastaria, quando muito, ao nível das províncias. Não já como representações orgânicas locais burocratizadas (Secretariados Provinciais ou Divisões Regionais), mas como núcleos de interesses políticos organizados em níveis de hierarquia horizontal, sendo modelo disto os clubes e casas de sócios.

CARTA AOS PARTIDOS POLÍTICOS I

Albano Pedro

Com as recentes eleições tendentes ao cargo de Presidente ocorridas na UNITA, o país parou por alguns momentos a espera dos resultados finais. Não só por se tratar de um acto que ocorreu dentro do maior partido da oposição e da consequente lição de democracia daí decorrente, como dos seus efeitos em todas as esferas sociais e círculos de interesses políticos. Com efeito, os dois candidatos (Abel Chivukuvuku e Isaías Samakuva) dividiram, em visíveis tendências, o partido e o país. Duas perspectivas: a que se propunha a retirar a UNITA da letargia política e imprimi-la o sentido dinâmico que lhe permita encarar as próximas eleições gerais com merecida folga e provável hegemonia sobre os demais partidos, incluindo o da situação, e a que pretendia manter o status quo acomodando vontades e interesses pessoais. Para a primeira, ameaçando seriamente os interesses palacianos surgiu em cruzamento óbvio com os interesses do eleitorado nacional que ameaça grave abstenção nas próximas eleições. Aos partidos da oposição, agora vivificados pela plataforma dos POC e pelos actos sorrateiros do PADEPA, vem como uma catapulta para o afastamento do MPLA do poder propiciando coligações estratégicas para o efeito. Mais interesse ainda tinha para o próprio MPLA que augura por uma democracia interna pela pressão externa de um partido forte e competente na oposição, procurando livrar-se da “democracia de voto por mão levantada” afim de efectuar as devidas limpezas que interessam entre os camaradas.

Para a outra, restava apenas a correspondência com os interesses palacianos, vindo daí uma forte expectativa nacional cruzando em rotas de choques uma maioria esmagadora de angolanos contra uma minoria circunscrita ao poder. Os resultados favoreceram os interesses palacianos e por arrasto as correntes internas da UNITA e do própria MPLA que daí colhem algumas migalhas para a sobrevivência individual. Acto legitimado por uma minoria representante de uma maioria completamente inocente das perspectivas dos resultados alcançados.

A UNITA entra mais uma vez em hibernação e com ela o sentido efectivo de oposição política nacional. Para a maioria dos angolanos, mais um sonho adiado e a reafirmação de uma perigosa incerteza quanto ao day after das eleições gerais. Ficam de fora grandes interesses actuais como o obstáculo injustificado levantado contra os angolanos na diáspora de exercerem o direito ao voto pela confirmação do registo eleitoral, a conclusão da implementação dos acordos de LUSAKA para a inserção social dos cidadãos desmobilizados das partes em conflito armado, a execução duvidosa do contrato bilionário com os chineses, o galopante desvio obscuro do património financeiro público para esfera privada, etc.

A esperança almejada, com a renovação de uma presidência “relaxada”, perde-se com este acto protagonizado pelos “senhores do absurdo” e é carimbado o passaporte da certeza de uma UNITA em corrida para a derrota eleitoral. O cenário está agora mais claro para a ala “pró-futungo” do MPLA. O perigo de um MPLA em reforma pressionado por uma UNITA activa está agora fora de cogitação. A UNITA mantém a linha de um fiel apêndice da ala pró-futungo jogando o seu papel de um partido na sombra da oposição, como convém a este tipo de contrato.

O MPLA pró-futungo esfrega agora as mãos de contente, visualizando apenas a ocasião de desfazer-se de uma UNITA servil no devido momento. Com um processo eleitoral já devidamente “cozido” a partir do registo eleitoral, a UNITA tem pela frente uma “expulsão” em massa do poder. Com o GURN extinto e um resultado em legislativas certamente minguante, só muito dificilmente a presença de mais de uma dezena de deputados será possível. E se os outros partidos da e na oposição não fazerem o uso útil das oportunidades desperdiçadas pela UNITA, chamando a si as respectivas vantagens, correm o mesmo risco.

Assim, teremos um MPLA que, na perspectiva presidencial fica apenas derrotado pela contagem regressiva da permanência no poder que o processo eleitoral traz consigo, pode bem fazer as suas matemáticas no poder fazendo ressurgir o ambiente de partido único dos anos oitenta apesar de uma constituição democrática e com ele a soma de uns longos e felizes anos na situação. Salvo, se outra for a postura da nova direcção saída do X Congresso do partido fundado por Jonas Savimbi.

EUTANÁSIA OU SUICÍDIO ASSISTIDO

SOBRE A POSSIBILIDADE DE RECONHECIMENTO DE UM DIREITO A MORTE

Albano Pedro*



Para este tema, não vem a propósito a questão da permissibilidade da morte como um direito reconhecido ou reconhecível aos homens. Tema, aliás, afastado quer da jurisdicidade dos valores sociais e humanos quer da ética das macro organizações sociais modernas – em que sobressai o Estado, já que a sobrevivência dos valores mais elementares das comunidades humanas está estreitamente relacionada com a preservação da vida. A vida como valor fundamental a existência social é defendida em todas as realidades políticas, permitindo-se em muitos poucos casos a sua extinção.

Porém, a morte como um instrumento de solução de situações juridicamente tuteladas é enquadrada de forma insuspeita na cultura dos povos, já quando se permite o aborto – para atender a casos especiais em que esteja em causa a integridade física (sobrevivência condicionada da mulher grávida) ou moral (aborto permitido em casos de violação) da mãe. A pena de morte não se afasta desta realidade. A aplicação desta grave penalidade surge na sequência da tutela de bens jurídicos fundamentais a sociabilidade humana que a pessoa do delinquente põe em causa.

Ponto assente é o “acórdão” lavrado entre a maioria dos Estados modernos sobre o afastamento da possibilidade da morte como direito autónomo. Angola é parte deste espírito quer prescrevendo de forma directa quando consagra a proibição da pena de morte (artigo 22º, n.º2 da Lei Constitucional – Doravante LC) quer de forma indirecta quando estabelece a protecção da vida (artigo 20º, in fine e artigo 22º, n.º1 - LC), mesmo em situações excepcionais (artigo 52º, n.º 2 –LC), embora seja um dado valorativo da moderna constituição angolana.

Passe o quadro desenhado, verifica-se nos dias de hoje a tendência universal de se razoabilizar a possibilidade da morte como um instrumento ao serviço da medicina sobretudo para os casos clínicos irreversíveis. Surge o debate para a sua institucionalização na forma de eutanásia ou suicídio assistido. Embora, correntes de especialidades procuram não confundir um e outro com argumentos juridicamente irrelevantes uma vez que numa e noutra situação há a morte “administrada” com fundamentos clínicos aceitos pelo paciente assim contemplado.

Esta realidade é legalmente vivida em alguns países. O Estado de Oregon (EUA) foi o primeiro a permitir explicitamente a um médico prescrever drogas letais com vista ao termo da vida do paciente. A Holanda tem legalizado a Eutanásia desde o ano de 2002. O movimento pró-eutanásia é hoje crescente procurando impor a necessidade de uma morte digna aos doentes terminais subtraindo-os de um prolongado e desnecessário sofrimento. A figura de Jack Kevorkian (apelidado Dr. Morte), médico americano preso por crime de homicídio, após um julgamento polémico e mediatizado, por ter administrado drogas letais a pedido do seu paciente e consentimento dos familiares deste desencadeou o movimento que hoje ganha tribuna nos debates legais da maioria dos estados dos Estados Unidos e no mundo inteiro.

A verdade é que a eutanásia encontra uma “folga” legal deixada pela maioria dos sistemas penais que não estabelece a criminalização do suicídio. O que levanta a questão de saber se o auxílio ao suicídio deve ser incriminado. Nem o suicídio nem a tentativa de suicídio são criminalizados em muitos países. O suicídio não é penalizado por motivo evidente: o suicida morre e, por isso, não pode ser punido. Argumenta-se que a tentativa de suicídio não deve ser penalizada para facilitar que as pessoas que a cometem possam recorrer a ajuda antes de a morte chegar e acresce-se que não há necessidade de penalizar quem já sofre com um mal que a leva a dar tão ousado passo. A tendência legal moderna é a de punir, apenas, quem incitar outra pessoa a suicidar-se, ou lhe prestar ajuda para esse fim. O código penal angolano estabelece esta previsão pelo artigo 354º acrescendo no seu parágrafo único a impossibilidade legal da eutanásia por essa via.

Vale lembrar que o movimento pró-eutanásia desenvolve “campanhas” que se assemelham as do movimento pró-aborto. Em comum têm que ambas procuram propagar a “filosofia da morte preventiva”. Passe a similitude material das duas realidades que se apresentam nos pólos contrários da existência humana (o início e o fim da vida), os argumentos para a “morte digna” procuram mobilizar o senso do sofrimento indefinido e tortuoso gerado pela “morte certa” decretada pelas incertezas médicas na superação de doenças, por isso, catalogadas como terminais. Tal como o aborto, na maior parte dos casos, procura prevenir o mesmo sofrimento. A dúvida sobre a possibilidade não terminal da doença assim catalogada torna-se um assunto de trato metafísico, com dignidade religiosa, cabendo neste campo o “veto” contra tendência de “emancipação”da morte misericordiosa. Alheio, por isso, aos interesses científicos que projectam e renovam os dados culturais das sociedades.

Legalizada ou não a eutanásia na sua forma passiva, consistindo no não prolongamento da vida do paciente terminal pela não administração dos medicamentos devidos, seja por custos avultados do tratamento médico seja pela irreversibilidade clínica, é uma realidade comummente aceita e praticada pela classe médica. Este facto, a semelhança das causas que levam a discussão e a legitimação do aborto, deve ser encarado com a merecida responsabilidade. Não se vá olhando com indiferença legal uma realidade evidente, levando ao reconhecimento material de um verdadeiro direito a morte.
*JURISTA

ATENTADO CONTRA A LIBERDADE DE IMPRENSA - O CASO GRAÇA CAMPOS

Albano Pedro

A condenação do jornalista Graça Campos por suposto crime de injúria, calúnia e difamação vibrou como um martelo sobre a comunidade dos operadores da comunicação social e faz eco sobre todo um sistema social, levantando questões como: Até onde vai a liberdade de expressão? Até que ponto os crimes assim tipificados correspondem as inspirações de uma sociedade fundada em princípios democráticos? Qual deve ser o limite do exercício da liberdade de imprensa? Quando é que estamos em face de um crime de injúria, calúnia e difamação? etc. E certamente por falta de respostas a estas questões, a maioria dos jornalistas e profissionais da comunicação social se sente agora ameaçada de exercer livremente o seu ofício.

Oferece ainda um verdadeiro teste aos princípios democráticos para a actual Lei de Imprensa revelando a sua frágil envoltura sustentada permanentemente pelo espírito da antiga Lei de Imprensa quanto a sua vocação antidemocrática e totalitarista. Precipita ao debate a sua ineficiência e ineficácia no plano dos direitos, liberdades e garantias dos profissionais de imprensa em particular e do povo em geral colocando em risco a sã convivência e a plena complementaridade entre a Lei de Imprensa e o Código Penal bem como arriscando a sua utilidade e oportunidade no plano jurídico-constitucional.

O Código Penal surge como o complexo de normas subsidiárias a Lei de Imprensa de tal sorte que esta apenas se limita a desenvolver subtipos criminais como os crimes de “abuso de liberdade de imprensa” e os crimes de “desobediência” enquanto condutas específicas das empresas e profissionais da mídia. Sendo certo que societas delinquere non potest (as sociedades não têm capacidade criminal) entende-se que o legislador ordinário angolano pretendeu com a responsabilização de empresas da mídia modelar nas condutas assim tipificadas nesta Lei o vínculo obrigacional sustentador da responsabilidade civil, ao invés daquilo que pode ser um lapsus calami (erro de objectivação escrita) que é a criminalização das mesmas condutas. Acresce-se que, a previsão penal da calúnia, difamação e injúria sem qualquer excepção para o exercício da liberdade de imprensa, não só viola gravemente este direito e todos desta natureza (liberdade à informação, liberdade de expressão, liberdade de reunião e manifestação, etc.) como inviabiliza o próprio exercício da liberdade de imprensa perigando gravemente a construção e a sustentação da democracia e do primado da lei em Angola.

Na verdade, o Código Penal é impreciso na tipificação dos crimes de injúria, calúnia e difamação. Não define os referidos conceitos, deixando a interpretação, muitas vezes distorcida e como tal abusiva, ao critério do juiz da causa. Tão pouco é claro quanto ao seu conteúdo deixando a triste, pobre e quase confusa redacção de «…se alguém difamar outrem publicamente, de viva voz, por escrito …imputando-lhe facto ofensivo a sua honra e consideração…» para o crime de difamação (art.º 407º Código Penal – Doravante CP); «O crime de injúria, não se imputando facto algum determinado, se for cometido contra qualquer pessoa publicamente, por gestos, de viva voz, ou por desenho ou escrito publicado…» para o crime de Injúria (art.º 410º CP) e «…Se não se provar a verdade das imputações, será punido como caluniador com prisão até um ano e multa correspondente» para o crime de calúnia (art.º 409º CP), deixando apenas a vaga ideia de que os crimes de calúnia e injúria são meras variações situacionais derivadas do crime de difamação.

O que será difamar? O que será facto ofensivo a honra e consideração? Qual será a honra e consideração de um ladrão ou de um demente incurável? Será ela diferente da de um politico corrupto ou de um líder religioso charlatão? E qual será a honra e consideração de um líder politico exemplar como Nelson Mandela ou Mahtma Ghandi? Para a resposta a questões levantadas haverá lugar a especulações valorativas subjectivas que a semelhança do critério ético estabelecido pelo Direito Civil na base da fórmula valorativa de bonus pater família (valores morais e éticos inerentes ao cidadão médio de uma sociedade) não conferem precisão uniformizada para os factos que se apresentam como enquadráveis nas normas incriminadoras em questão. Assim, a norma penal, por plasmar conceitos, como este, imprecisos e indeterminados, permite que o ofendido defina o próprio âmbito e conteúdo da ofensa a honra e consideração, reforçado inclusive com a previsão do parágrafo único do art.º 410º nos termos do qual «Na acusação por injúria não se admite prova sobre a verdade de facto algum, a que a injúria se possa referir.».

Vem daí que, as previsões sucessivas dos crimes de difamação, injúria e calúnia aparecem como verdadeiras ameaças aos princípios democráticos por imprecisão e arcaísmo; excessivas, desproporcionais e perigosas para o exercício das liberdades fundamentais em geral protegidas pela Lei Constitucional vigente. O que levanta um verdadeiro confronto entre a Liberdade de Imprensa e Os Direitos de Personalidade Criminalmente Tutelados, colocando ainda o problema da prevalência de interesses entre o valor individual (interesse particular) e o valor colectivo (interesse público), quando é certo que o exercício da liberdade de imprensa, enquanto a mais ampla e poderosa manifestação da liberdade de expressão, não só procura impor o interesse público como anima a própria existência de um Estado Democrático e de Direito.

O “pacto” estabelecido entre o Direito Civil e o Direito Comercial nos termos do qual determinados factos que desencadeiam a Responsabilidade Civil (dever de indemnizar o ofendido) em Direito Civil são considerados práticas correntes e normais em Direito Comercial, sem os quais o comerciante dificilmente sobreviveria (Vide: a persuasão astuciosa de um comerciante que leva o cliente a comprar um artigo contra o seu próprio gosto), mesmo quando os dois ramos de Direito sejam da mesma família (Direito Privado), serve certamente de exemplo para estabelecer limites e vizinhanças necessárias a preservação de interesses entre o Direito de Imprensa e o Direito Penal. Sendo razoável e de utilidade democrática que determinados factos considerados difamatórios, caluniadores ou injuriosos não o deveriam no exercício da Liberdade de Imprensa, visto prosseguir-se aqui interesses públicos e não veleidades pessoais conformados com o dolo imputável a subjectividade particular de que o direito penal procura combater.

Foi a percepção da necessidade de preservação deste limite, que levaram os americanos a decidir sobre a consagração constitucional da extensão do conteúdo da liberdade de expressão enquanto pilar da democracia, quando admitiram que pela caricaturização e ridicularização de figuras públicas muitas vezes é alcançada a verdade dos factos necessária a informação do povo (Vide: caso verídico representado pelo filme The people versus Larry Flynt – em que a Suprema Corte de Justiça Americana considerou constitucionalmente protegida a ridicularização feita numa publicação pornográfica de grande tiragem contra um importante líder religioso americano que sentiu gravemente ofendida a sua honra e consideração).

O quadro condenatório sub iudice viabilizado a luz do actual sistema jurídico (Código Penal, Código Civil e Lei de Imprensa) revela gravosas insuficiências da Lei de Imprensa e a sua subtil e perigosa vocação de agredir os próprios interesses da classe dos jornalistas e dos operadores da comunicação social, a saber:

Que a tripla condenação ocorrida ao abrigo do Código Penal (Calúnia, injúria e difamação), salvo entendimento mais aguçado, tem como consequência para o jornalista Graça Campos o impedimento de exercer as funções de Director do Semanário Angolense ou de qualquer outro órgão de comunicação social por 3 anos nos termos prescrito pela actual Lei de Imprensa.

Que a Lei de Imprensa não procura afastar as graves penalidades dos crimes de calúnia, injúria e difamação pela concretização de normas especiais que protejam os profissionais da comunicação social quando em face de tais factos. O que seria homenagear o princípio hermenêutico Lex specialis derrogat lex generalis (as normas especiais da Lei de Imprensa afastariam as do Código Penal em matéria de Calúnia, Injúria e Difamação subtraindo os jornalistas de os cometerem no exercício das suas actividades).

Que a similitude dos critérios dozimétricos penais inspirados entre a actual e a anterior Lei de Imprensa e representados no caso Graça Campos revela a manutenção legal do projecto de um Estado totalitarista e de viabilidade histórica remota que procura abafar o surgimento de uma sociedade livre e justa pela via da aplicação de pesadas penalidades susceptíveis de suprimirem a liberdade de expressão dos cidadãos.

Que a falta de uma oportuna regulamentação concretizadora da Lei de Imprensa inviabiliza a interpretação dos conteúdos e limites precisos sobre os factos susceptíveis de imputação criminal e consequente impugnação judicial.

Não será, certamente inteligente, a ideia de manter a incriminação de tais condutas em sede do Direito de Imprensa (desnecessariamente subsidiado pelo Código Penal) sob pena de exaltação de um Estado centralizador de opinião já sacrificadamente ultrapassado pela história recente de Angola. O Direito de Imprensa se bastaria com a mera responsabilização civil de condutas deontológicas inconvenientes contra direitos de personalidade legalmente protegidos. Resultando daí indemnizações e outras espécies de desvantagens de natureza sancionatória próprias do Direito Civil.

Recomenda-se em suma que, pela via da impugnação judicial da actual Lei de Imprensa por manifesta inconstitucionalidade, haverá, pois, que fazer vincar uma Lei de Imprensa que preveja medidas civis e não criminais. Uma Lei de Imprensa que reduza os excessos previsionais do crime de calúnia, injúria e difamação tipificados no Código Penal. Tamanha solução atrairia o espírito de convivência democrática e o respeito a um dos mais elementares direitos dos cidadãos: o Direito a Informação.