SOBRE A EVOLUÇÃO ÉTICA DO SUICÍDIO E DA EUTANÁSIA
(TEXTO PUBLICADO NO SEMANÁRIO ANGOLENSE)
Albano Pedro
O debate sobre a possibilidade de um Direito a Morte é cada vez mais crescente no mundo actual em que as tecnologias médicas facilitam a antevisão sobre a irreversibilidade das mortes impostas por doenças terminais. Por isso, também, é crescente o debate sobre a necessidade ética da eutanásia enquanto solução médica e enquanto figura perfeita nascida da transformação axiológica do auxílio ao suicídio como tipo criminal consagrado nos diferentes sistemas jurídicos actuais.
Durante muito tempo, o suicídio, enquanto acto intencional de matar a si mesmo (do latim sui “próprio” e caedere “matar”, donde suicaedere – lê-se suicedere), foi visto como crime. Mesmo faltando a percepção lógica sobre a possibilidade de se penalizar o seu autor, que afinal deixa de viver, inibindo assim a eficácia de qualquer sanção a si aplicada. Partindo de orientações imperativas da Bíblia Sagrada através da ordem divina expressa pelo Pentateuco: Não matarás (supondo igualmente a ideia de não morrerás - por morte causada a si mesmo), o Direito canónico influenciou o Direito secular em todo o período medieval europeu levando a que o suicida fosse enterrado agrilhoado como prova de sentença devida a perda intencional e culposa da própria vida. Percebe-se que a Igreja Católica entendesse a vida como obra perfeita da natureza e graça divina. Absolutamente inviolável e como tal inadmissível qualquer ideia da sua extinção. Nesta senda, São Tomás de Aquino, eminente Teólogo, terá proclamado ex-cátedra que o suicídio é uma forma de assassinato, cabendo unicamente a Deus o fim da sua existência. Deste modo, o próprio Direito secular, apoiado pelas balizas do jusnaturalismo atendeu a recomendação do clero pela evidente ideia de que a vida não podia ser confundida com res (coisa) e como tal sujeita a disposição do seu proprietário, e nessa condição, passível de ser destruída tal como era admissível para a vida dos animais e dos escravos por falta de reconhecimento da personalidade jurídica destes.
Com o advento do movimento constitucional pós-renascentista, apenas o Estado ganhou o direito de infligir a morte enquanto sanção em sociedades em que é admissível a pena de morte, como se percebe em muitas sociedades modernas que têm consagrado constitucional e legalmente essa grave penalidade. O suicídio perdeu a lógica criminal devido a impossibilidade da aplicação de sanções ao seu autor bem como pela intransmissibilidade da responsabilidade criminal dela decorrente, incapaz, por isso, de ingressar a herança, enquanto universalidade de bens e direitos deixados pela pessoa do suicida (neste caso de cujus), cuja responsabilidade é transmitida aos sucessíveis.
Mesmo a tentativa ao suicídio ou o suicídio frustrado encontram resistência quanto a sua consagração nos diferentes sistemas penais modernos. Nem mesmo a teoria jurídico-criminal é consensual quanto a sua viabilidade legal. Entende-se que penalizar quem tenha tentado suicidar-se é estimular o próprio suicídio. Afinal, a própria consciência criminal do acto levaria o candidato ao suicídio a empreender todo o esforço para terminar o acto iniciado devido ao receio de sofrer a penalidade correspondente. Alguns sectores científicos entendem que ao suicídio frustrado não cabe qualquer encaminhamento jurídico pelo facto de que o simples escapar da morte por si só representa um correctivo ao próprio candidato ao suicídio, levando-o ao arrependimento e inibindo-o em consequência de voltar a experimentar o acto.
Também é verdade que os sistemas jurídicos não conferem espaços de manobras para os variadíssimos actos que induzem a ideia de suicídio. O homicídio suicídio – em que o individuo mata outra pessoa e em seguida matar-se para não ser preso; Ataque suicida – em que a pessoa ataca com violência tendente a provocar morte com custo da própria vida; suicídio em massa ou pacto suicida – em que muitas pessoas concordam voluntariamente em pôr fim as próprias vidas, etc., são actos completamente inadmissíveis e como tais censuráveis pelo menos do ponto de vista ético quando os mecanismos jurídico-legais não sejam suficientemente eficazes.
Já a maioria das legislações penais são concordantes quanto a penalização do auxílio ao suicídio (entre nós, cfr. art.º 354.º Código Penal – CP) por ser um instrumento de repressão idóneo para o desencorajamento da extinção da vida humana. Afinal, o suicídio é considerado a 10ª causa mais importante das mortes humanas em todo o mundo e está provado que factores médicos e psicossociológicos, associados geralmente a doenças orgânicas e a transtornos de personalidade, determinam invariavelmente o suicídio. Apontam-se factores de riscos crescentes neste sentido (desemprego, queda de status social, desilusão afectiva, separação conjugal, etc.), sendo por isso preocupante no âmbito das políticas criminais que haja sinais de encorajamentos direccionados ao seu fomento.
Actualmente a eutanásia (suicídio medicamente assistido) vai abrindo brechas contra a imperatividade criminal do auxílio ao suicídio dando espaço para um debate ético da sua possibilidade material e da sua viabilidade jurídica. Entende-se que um doente em fase terminal tem o direito de morrer e por isso não faz sentido que quem o auxilie seja penalizado, sobretudo tratando-se de um Médico, quando aquele implora que se ponha fim a vida devido ao sofrimento patente. Mesmo quando ainda se discute a probabilidade terminal das doenças motivadoras de decisões do género, por simples falibilidade da medicina e das tecnologias a ela inerentes ou, pior ainda, arrepie a admissibilidade ética desta técnica no domínio da Medicina.
Não está em causa, pois, qualquer permissividade sobre os diversos motivos que levam ao suicídio. Nem a intenção de levar os sistemas jurídicos a flexibilizarem posições para a sua compreensão e incorporação. O que se pretende é tornar aceitável a necessidade médica do suicídio. E foi esse o desafio levado a cabo pelo Médico norte-americano Jack Kevorkian (também conhecido por Dr. Morte) por ter forçado as instituições americanas a admitirem a possibilidade de um Direito a Morte ao iniciar a cruzada que iria dar lugar a necessidade de legitimar a eutanásia. Assunto ainda hoje muito discutido. Enquanto Médico patologista, auxiliou mais de 130 doentes em fase terminal a aceder a morte e esse empreendimento levou-o a enfrentar, várias vezes, as barras dos tribunais acusado como homicida. O que é certo é que deu vazão ao debate sobre o Direito a Morte que vai ganhando cada vez mais atenção quer de cultores da Medicina ou Direito em especial quer de cultores de ciências sociais e humanas em geral provocando diversidade de opiniões científicas e posições políticas em todo o mundo. E desta crescente preocupação que a humanidade vai assistindo nos tempos modernos nascem fissuras consideráveis ao, até então, incólume Direito a Vida de tal maneira que começa uma abalável caminhada rumo a legitimação de um Direito a Morte como até hoje nenhuma sociedade admitiu abertamente em nome de uma Ética conservadora ou de uma insuficiente justificação científica das mais profundas necessidades humanas.
Do ponto de vista jurídico, a legitimação de um Direito a Morte, ainda que parcial – na faceta de Eutanásia – representa o ruir da protecção penal da vida imposta através da criminalização do Auxílio ao Suicídio. O que demonstra uma profunda fragilização criminal deste instituto e a consequente redução da importância penal absoluta do Direito a vida, mesmo com o pretexto de positivar uma simples excepção jurídico-normativa por parte de um legislador aberto a historicidade dos acontecimentos e eventos sociais e flexível a fenomenologia do suicídio enquanto facto social. Da mesma forma, desafia a humanidade a uma nova postura ética perante a Morte, admitindo a sua necessidade jurídica como mecanismo de justificação e de protecção dos Direitos de Personalidade (enquanto corolário do Direito a Vida) de quem voluntariamente se candidata a exercer o acto de morrer como um verdadeiro Direito. Dixit.
segunda-feira, 30 de julho de 2012
Direito Á Morte
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