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    domingo, 7 de junho de 2015

    CASO RAFAEL MARQUES VERSUS GENERAIS O PROBLEMA DA REALIZAÇÃO DO ESTADO DE DIREITO Albano Pedro O julgamento de Rafael Marques é sem dúvidas um dos casos mais recentes que colocaram em causa a seriedade das instituições do Estado no que tange a realização do ideal de justiça e de liberdade, se colocarmos na mesma panela o nebuloso caso Kalupeteka envolvendo fiéis da seita Igreja do 7º Dia A Luz do Mundo que mais tarde ou mais cedo deverá conhecer um desfecho conhecido ao público. Com a publicação do livro “Diamantes de Sangue” em que compila o testemunho de dezenas de cidadãos torturados e reporta mortes imputáveis as empresas detidas por generais na região diamantífera das Lundas, Rafael Marques começou por ter um processo-crime interposto junto dos tribunais portugueses pelos supostos proprietários das empresas envolvidas nos grosseiros actos de violação dos direitos humanos alegando estarem a ser alvos de imputação de factos falsos e, por isso, caluniosos. Ao que parece, os tribunais portugueses arquivaram o processo por alegada incompetência material ou territorial da sua jurisdição. Percebe-se que em homenagem ao princípio da territorialidade das leis de estrita observância em matéria de jurisdição penal o caso apenas devia ser julgado no local em que ocorreu o crime (locus delicti comissi) que é em Angola sobretudo quando o facto envolve apenas cidadãos angolanos. Portugal, enquanto local da publicação do livro não é suficiente para legitimar os tribunais portugueses na apreciação do caso colocado pelos queixosos. Uma vez em Angola, Rafael Marques antecipou aos queixosos. Ele próprio apresentou uma queixa ao Ministério Público (MP) em que acusava os generais e as empresas como sendo as figuras por detrás dos actos hediondos de que tinha testemunhos devidamente compilados no seu livro. O MP alegando ter investigado a queixa feita pelo cidadão Rafael Marques não encontrou provas bastantes para acusar os generais e as empresas. Pelo contrário entendeu que a queixa-crime feita pelo jornalista e activista dos direitos humanos não tinha quaisquer sustentações e por isso inverteu a situação acusando o queixoso (Rafael Marques) com o crime de Denúncia Caluniosa por ter apresentado um a queixa alegadamente sem fundamentos e colocando em causa o bom-nome e demais direitos de personalidade das pessoas e empresas alistadas na queixa-crime. Acrescido a isso, os generais e as empresas envolvidas entenderam igualmente voltar a “luta” depois do arquivamento do processo em Portugal apresentando uma nova queixa-crime contra Rafael Marques acusando-o de crime de Difamação por a sua queixa e bem como o seu livro ter ofendido os seus direitos de personalidade (honra, bom-nome, etc.). Não é difícil perceber que o caso estampa erros judiciais, alguns dos quais de palmatória, revelando ou falta de parecia dos sujeitos processuais ou simples vontade velada de não ver a justiça realizada no interesse do povo angolano e do ideal do Estado de Direito. Em meio disso, os lobbies políticos e os interesses nacionais e internacionais envolvidos, bem como a agitação da imprensa não propiciaram a serenidade suficiente para que a justiça fosse feita com a eficiência e a eficácia necessárias. Para começar, é de duvidar que o MP que deduziu a acusação devesse permitir que os generais constituídos assistentes acusassem o Rafael Marques de crimes diferentes daqueles que o MP acusou. Essa atitude está muito próxima de facilitar a alteração substancial dos factos e ferir o princípio da acusação nos termos do qual o MP e o tribunal ficam “presos” aos factos invocados na acusação feita pelo MP. Pois o crime de difamação (crime particular) foi invocado pelos generais na qualidade de assistentes quando já seguia a acusação de um outro crime (o crime de denúncia caluniosa). É certo que Rafael Marques, jamais faria um acordo levando a transacção do crime de Difamação se tivesse a clara percepção das consequências da acusação do MP. Acontece que a denúncia caluniosa é um crime público e assim sendo, o MP tem o dever legal de prosseguir com a acção mesmo quando as partes decidem chegar a um acordo retirando o respectivo processo. Portanto, a negociação de Rafael Marques com os generais teve o seu êxito e foi eficaz em relação ao crime de Difamação qualificado como crime particular e não para a acusação do MP. Pior do que tudo, se o jornalista reconhece a existência da difamação acaba provando a denúncia caluniosa. Mais do que tudo, o crime de difamação não carece de ser provado (art.º 408.º - Código de Processo Penal - CPP), uma vez que a simples exposição pública dos factos imputados os generais servem como prova bastante. É certo que a lei permite que a difamação seja investigada por meio de provas se, no caso, os crimes que Rafael Marques imputou aos mesmos tivesse a correr em tribunal num processo-crime a parte ou já tivessem sido julgados com sentença transitado em julgado. Ou seja, se os generais tivessem um processo-crime pendente sobre os mesmos factos invocados pelo Rafael Marques, este, no uso da referência do respectivo processo, teria uma base probatória para a sua defesa provando assim que não tinha cometido o crime de difamação. Portanto, em circunstâncias normais, Rafael Marques não teria negociado o processo, uma vez que o MP jamais desistiria da acusação por dever legal. Infelizmente, o MP não considerou os factos mencionados na queixa-crime feita pelo Rafael Marques. Sendo que a queixa fazia referência a tortura e morte de dezenas de cidadãos, era obrigação do MP proceder a investigação dos factos apurá-los e determinar os seus autores. Ao invés, o MP preferiu considerar apenas o facto de Rafael Marques ter citado o nome de empresas e generais. E claro nesse parte o Rafael Marques falhou redondamente devido a um simples desconhecimento da lei. Acontece que as empresas não cometem crimes (societas delinquere non potest) e em consequência os seus sócios não podem ser acusados de prácticas criminosas. A queixa devia fazer referências aos gerentes (directores) e trabalhadores que corporizavam as empresas na altura em que ocorreram os factos criminais alegados na queixa. Seriam eles os autores morais (gestores) e os autores materiais (trabalhadores). Afinal, os crimes são pessoais e intransmissíveis. Apenas quem os comete, tomando parte das respectivas acções com manifesto dolo ou negligência, é responsabilizado. É possível que os sócios (generais) tenham cometido os crimes invocados, na qualidade de autores morais ou mandantes. Mas isso não é fácil de provar se olharmos para quem responde pelas acções das empresas que são os administradores e demais trabalhadores. Se o jornalista tivesse tido ajuda de um jurista na formulação da queixa, certamente não cometeria esse erro básico. Todavia, o MP devia investigar os crimes. Aliás, tinha (e continua a ter) obrigação de investigar os casos de tortura e mortes denunciadas. Ainda na fase da instrução preparatória, o MP devia ouvir as testemunhas elencadas pelo Rafael Marques e constitui-las declarantes no processo. Torturas e mortes são factos graves a que o Estado angolano, no interesse do seu povo, está obrigado a averiguar e a responsabilizar os seus autores. Apurados os crimes, ou indício da sua ocorrência, certamente os gestores e trabalhadores envolvidos seriam chamados a justiça na qualidade de réus. É a partir dessa falta que o MP e o Tribunal avançam para um processo que inverte os papéis entre o réu e o ofendido. Na verdade, os mais ofendidos são os povos das lundas que foram torturados e mortos, caso tenham sido, e que por isso não viram a justiça realizada a seu favor. E nisso perde o povo angolano e se belisca o Estado de Direito. Com a realização do julgamento, o Rafael Marques acabou provocando a desistência dos generais da queixa-crime de difamação, mas acabou sendo acusado de denúncia caluniosa. O que se passou aqui é o aproveitamento do conteúdo da negociação vazada em acta para se dar como provado o crime de denúncia caluniosa. Ou seja, o MP dispensou as testemunhas elencadas pelo Rafael Marques tomando as suas declarações como bastantes para apurar a prova do crime. Nada mais dramático na acção penal do MP. É certo que o facto de Rafael Marques ter dispensado as testemunhas que tinha arrolado no processo para sustentar a sua própria defesa facilitou o trabalho de investigação de provas do MP bastando-se as declarações do próprio réu. O que não deixa de ser um erro crasso imputável ao próprio réu. Entretanto, ao próprio tribunal faltou capacidade de averiguar os factos probatórios, recomendando ao MP a produção de melhores provas, para fundamentar as penas arbitradas em sentença contra Rafael Marques. Aliás, o juiz, em homenagem ao princípios da investigação devia ter investigado os factos constantes da acusação, mesmo que o MP não tivesse tomado como “thema probandum”. O que significa que o tribunal podia ter investigado os factos mencionados pelo Rafael Marques mesmo que não sejam imputáveis aos generais. Nesse caso pode dizer-se que o réu foi traído pela subtileza do acordo e pela falta de diligência do tribunal no apuramento dos meios de provas. No meio disso, a obrigação do tribunal de recomendar o MP no sentido de apurar a veracidade das torturas e das mortes em nome do povo angolano não foi invocada e nem considerada. A acusação da comunidade internacional nos termos da qual o Estado angolano persegue o jornalista pelo exercício da liberdade de expressão e de imprensa é precária e insustentável, visto que o julgamento do caso Rafael Marques versus Generais foi iniciado com base na queixa-crime feita pelo próprio jornalista. Em circunstâncias normais, Rafael Marques teria aguardado serenamente que os generais, frustrados pelos tribunais portugueses que se recusaram a julgar o crime contra o jornalista, repetissem a acção em tribunais angolanos. Assim ficaria publicamente provado que era o jornalista que estava a ser perseguido pela opinião emitida. Para além de que, nesse caso, o MP jamais invocaria o crime de denúncia caluniosa uma vez que o jornalista não teria apresentado qualquer queixa-crime contra os seus “algozes”. Parece pouco deontológico, que o jornalista que publica a matéria “difamatória” seja o mesmo a proceder a queixa-crime contra os seus visados. Aqui ficamos pouco seguros de que haja efectivamente uma perseguição do Estado angolano ao jornalista quando afinal foi é este que provocou o enxame de abelhas. A imagem dos manifestantes em tribunal exigindo a libertação de Rafael Marques foi um mau serviço a realização do Estado de Direito colocando em causa os verdadeiros valores que defendem e a autoridade do tribunal em apreciar o caso a si submetido. Se ao tribunal cabe a aplicação do Direito e em consequência a realização da justiça consagrada nas leis que sentido faz que o jornalista não seja julgado? Queremos ou não o Estado de Direito? Queremos ou não um Estado em que a justiça é feita nos tribunais e com base nas leis? Tudo faria sentido se os manifestantes iniciassem as suas reivindicações depois da sentença. Nesse caso, sendo uma sentença injusta (como aconteceu) faria sentido que os manifestantes iniciassem uma campanha de reivindicação contra o tribunal. Com a ocorrência de reivindicações no tribunal (sala de julgamento) e antes da sentença verificou-se uma clara atitude de desrespeito as autoridades públicas (no caso judiciais) cuja consequência normal seria a prisão dos alegados activistas dos direitos humanos em nome do estado de Direito por claro distúrbios à realização da justiça cujos crimes se encontra claramente tipificados. A obsessão de que tudo que é feito pelas autoridades públicas está viciado é uma clara negação do próprio Estado que coloca em crise a própria existência do povo angolano. O Estado deve prevalecer sobre todos os interesses particulares sejam eles contrários ou favoráveis a sua manutenção. E a geração que defende um novo Estado não pode querer que este desapareça completamente para depois ser reconstruído. É um contra-senso a ponderar nas acções reivindicativas dos movimentos sociais. Quanto as penas arbitradas, não há muito interesse em comentá-las, visto que o recurso ao tribunal superior feito pela defesa de Rafael Marques tem como efeito a suspensão das mesmas levando a que o réu não cumpra já a penas de que foi condenado, mesmo que sejam penas suspensas. Aliás, nesse capítulo, a conversão da pena de prisão em pena de multa não deve ser descartada pela defesa caso o novo tribunal mantenha a sentença do tribunal que julgou o caso. Entretanto, fica o apelo ao Estado angolano para que prossiga com a investigação dos factos que Rafael Marques imputou aos generais. As torturas e mortes contra cidadãos angolanos devem ser apuradas em homenagem ao princípio da oficiosidade que obriga o próprio juiz a proceder a investigação dos factos constantes da acusação do MP. Este é seguramente o ónus que terá o tribunal recorrido (juízo ad quem) quando iniciar o novo julgamento do caso Rafael Marques versus generais visando reparar os erros judiciais praticados pelo tribunal inferior (juízo a quo). O povo angolano precisa de uma explicação sobre o caso e de ver responsabilizados os autores dos crimes denunciados caso venham a ser provados. Finalmente, tem que convir que o “acordo” feito entre o Rafael Marques e os generais foi um péssimo “negócio” para a imagem da luta pelos direitos humanos em Angola a favor da qual o jornalista, ao lado de muitos outros activistas dos direitos humanos, vinha protagonizando com sucesso e que o MP e o tribunal prestaram um mau serviço a realização da justiça ao desconsiderarem a investigação dos factos e o apuramento das provas necessárias a um julgamento justo. No meio de tudo, perdeu o povo angolano, em geral, e as populações da região das lundas, em particular. Espera-se que o recurso judicial mude a situação assim diagnosticada. Dixit.

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