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    terça-feira, 5 de abril de 2011

    O POVO E A DESPERSONALIZAÇÃO DO ESTADO

    Albano Pedro

    Numa conversa de café, havida num dos botequins do centro da cidade de Luanda, tive a ventura de me reencontrar através de uma conversa empolgante com o Advogado Manuel Pinheiro, amigo e companheiro de desafios cívicos com quem, após as eleições de 2008, deixei de ter contacto frequente. Desde então, o Advogado Manuel Pinheiro passou a “visitar-me” os pensamentos quando passasse alguma informação pela imprensa a seu respeito. Uma delas foi sem dúvidas a sua participação na feitura da actual Lei Constitucional (que para as correntes que me oponho preferem chamar Constituição). O botequim em que nos encontramos situava-se entre o meu e o seu escritório numa distância equilibrada. O que nos permitiu, numa hora que era de intervalo de actividades profissionais, “gastar” algum tempo de troca de ideias enquanto “reforçávamos” os estômagos já esvaziados pelos esforços solicitados pelo período matutino que se fora. Para além das inevitáveis abordagens sobre assuntos e temas jurídicos, passamos em revista as ondulações políticas e sociais nacionais e internacionais do momento até darmos para um debate interessante pela novidade de um certo conceito que o meu confrade introduziu: A Despersonalização do Estado. Na verdade uma terminologia bem presente no raciocínio de quem se propõe a análise do quadro administrativo nacional mas que raramente desce ou ilumina a consciência de cada um de nós.
    Para o meu confrade, o Estado angolano encontra-se despersonalizado, pelas muitas e impressionantes razões que enumerou. O conceito de despersonalização está perfeitamente ligado à gnose jurídica que do antónimo entende ser a capacidade de exercer e gozar direitos legal ou contratualmente reconhecidos. i.e., o Estado angolano esta sem capacidade de exercício e de gozo de direitos. Passa-se algo semelhante com os incapazes (em geral pessoas físicas portadoras de demência ou outra sorte de incapacidades judicialmente atestadas bem como os menores não emancipados) aos quais a Lei impõe que sejam substituídos por tutores ou curadores no exercício dos seus direitos, embora nestes casos a capacidade de gozo, eventualmente diminuída, nunca é suprimida. Um Estado desprovido de personalidade jurídica, ao contrário da simples perda de capacidade jurídica como a exemplificada com os incapazes, é uma entidade praticamente inexistente. Tal é a polémica que invade o debate que se apresenta com o conceito. “…Quando acontece que um Administrador Municipal vende terrenos por sua conta e risco, porém sem receio de quaisquer sanções que decorram da alienação de um património público em benefício próprio…” – defendia o Dr. Pinheiro – “o Estado está despersonalizado!”. Para o meu interlocutor, a despersonalização do Estado está presente em todas as omissões do próprio Estado e sobretudo na impunidade dos dirigentes desde o mais alto nível da administração do Estado.
    Na verdade, a despersonalização do Estado é um facto herdado com a independência de Angola quando o partido MPLA, autoproclamado como único partido e gestor do Estado, entendeu ser o tutor do Estado angolano retirando ao Estado nascente a sua natural capacidade de exercício e até de gozo dos seus direitos “maxime” patrimoniais. O que levou a suprimir a sua personalidade jurídica ao mínimo possível. Como consequência, o povo perdeu a sua qualidade de membro de uma comunidade política titulando direitos e passou a uma espécie de vassalagem social em que se lhe impendia apenas deveres. Não é por acaso que os legisladores constitucionais angolanos persistem na triste ideia de manterem no texto da Lei Constitucional o conceito de dever para os direitos fundamentais. É uma clara herança deste tempo que persiste com a continuada despersonalização do Estado.
    Mesmo depois de 1992, momento em que se pretendeu enterrada a hegemonia do partido único sobre o Estado a favor da democracia e da legalidade do Estado, a despersonalização deste é perfeitamente marcante na realidade política hodierna. Podemos verificar, por um lado, uma existência jurídico-política virtual, em que o Estado manifesta a sua personalidade jurídica através da Lei Constitucional e das inúmeras leis do sistema jurídico angolano paralelamente a existência de órgãos do Estado que personificam o poder exercido no âmbito desta mesma personalidade. Por outro lado, é nítida a inexistência jurídico-política da personalidade do Estado na realidade vivida pelos angolanos aqui e na diáspora. Decantamos desta realidade factos impressionantes como o desrespeito deliberado dos direitos humanos, a cultura ostensiva da impunidade, a ilicitude crónica dos actos e contratos públicos, a falta de protecção jurídica e política dos angolanos quer em Angola quer em países estrangeiros, o abuso da cidadania dos angolanos pela manipulação constitucional da vontade política destes, a falta de parametrização temporal do exercício do poder político, a hegemonia do partido sobre o Estado, a consciência de propriedade do Estado pelos governantes entre milhares de factos que vagueiam pela realidade social e política nua e crua e que manifesta grosseiramente a discutida despersonalização do Estado.
    Assiste-se então um gravoso desencontro entre a existência social e política dos angolanos. Onde o exercício de direitos formalmente consagrados não correspondem a concretização da realidade vigente com os vícios políticos e os defeitos ideológicos persistentes numa governação atreita a ideia do centralismo de Estado protagonizado pelo partido maioritário. Daqui a crise da operacionalização do Estado na base dos postulados da Legalidade e da democracia. Pois, enquanto o povo procura impor-se com base em direitos consagrados numa realidade virtual, os governantes operam numa realidade material completamente alheia a ideia da Legalidade e da democracia. O povo julga-se portador de direitos e os agentes do poder político manifestam falta de consciência deste facto. Eis a génese da crise política angolana. De todo o modo, a discussão sobre a despersonalização do Estado angolano e as formas e modos de recuperação da sua personalidade é um assunto que merece atenção urgente. Uma vez que é esta falta de correspondência entre a constituição formal (Lei) e a constituição material (Política) que torna inexistente e até impossível uma Constituição como pretendem certos operadores jurídicos que instigaram a positivação desta terminologia para identificar o actual texto da Lei Constitucional.

    2 comentários:

    1. É verdade que nos deparamos com uma diferença abismal entre os pressupostos formais das leis e os procedimentos materias e, isto nos faz viver na expectaiva de um conjunto de garantias constitucionais que na prática não existem nem há sinais de que possam realmente existir.

      Ao conceito de despersonalização, deve-se (em meu entender) juntar o facto da sociedade (inclusive a classe intelectual) deixarem o rei-filósofo engolir todo o seu poder.

      Penso que estamos a caminhar para uma situação em que seremos obrigados a prestar culto de divindade do rei-filósofo. Estamos a beira de nos crierem um Deus...

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    2. Estimei o seu comentário! Não há dúvidas de que o êxtase da desporsonalização do Estado está nesta atitude de Bicho-papão do Rei-filósofo!

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