sábado, 23 de outubro de 2010

SOBRE A VIABILIDADE DAS CORRENTES DE OPINIÃO E OUTROS INTERESSES EM PARTIDOS POLÍTICOS

(Original do Texto publicado no Semanário Angolense)


Albano Pedro


Na senda da propositura de uma acção judicial ao Tribunal Constitucional por parte de alguns membros do MPLA com fundamentos genericamente enquadrados na necessidade de igualdade de exercícios de direitos político-partidários extensivos a todos os militantes deste partido político, incluindo daqueles que se vêem “marginalizados” no quadro das oportunidades estatutaria e legalmente estabelecidas vem a reflexão de que os partidos políticos, tal como todas as pessoas colectivas, são individualizáveis e sujeitas as leis. A individualização das pessoas jurídicas diante da Lei determina a clara separação entre as organizações e as pessoas (membros) que as compõem. Podendo acontecer que qualquer membro da organização que se sinta lesado nos seus interesses recorra contra a mesma enquanto pessoa jurídica responsabilizando-a dos respectivos danos morais ou materiais, forçando a alteração de condutas dos seus gestores ou dirigentes em prol dos interesses colectivos dentro de critérios fundados na proporcionalidade dos efeitos dos seus actos e contratos.

Não havendo qualquer pejo em admitir que as organizações sejam judicialmente demandadas, coloca-se-nos o problema de saber se os membros das organizações são livres de demandar as mesmas sempre que se lhe apeteça? A resposta negativa é evidente na medida em que o sentido de acção colectiva imposta pelo princípio da colegialidade das decisões que afectem a vontade e interesses dos seus membros implica que sejam deliberadas pela decisão das maiorias enquanto mecanismo deliberativo amplamente aceite nos sistemas democráticos modernos. Reportemos a um exemplo de escola pela fotografia de uma empresa sob forma de sociedade comercial (não importa o tipo) em que os sócios em Assembleia Geral deliberem sobre uma matéria que afecte visivelmente os interesses de um deles com o pretexto de que a mesma é vital para a empresa explorada pela sociedade comercial. Acontecerá que a maioria votará a favor de tal decisão social tendo em conta que a sobrevivência da empresa deve sobrepor-se aos interesses de cada individuo, porém o sócio prejudicado pela decisão pode instar a sociedade (gerência ou administração) para que lhe sejam reparados os danos emergentes ou, não conseguindo por esta via, demandar judicialmente a sociedade através da sua gerência com vista a ver satisfeito os seus interesses lesados. Este exemplo fotográfico ampliado num tamanho que cubra as organizações políticas pode ser visualizado sem quaisquer restrições, com a simples alteração de que nestes tipos de organizações as decisões são tomadas tendo em conta os interesses (ideologias e perspectivas políticas) das pessoas (e não de quaisquer empresas autónomas) e como tal devem acautelar os interesses das minorias procurando sacrificá-los, quando necessário, o mínimo possível. Daí que, em partidos políticos, sejam proibidas certas formas de descriminações entre os seus membros (art.º 8º alínea a) – Lei n.º 15/91 de 11 de Maio – Lei dos Partidos Políticos, doravante LPP) e que aos mesmos sejam vedadas práticas que promovam o tribalismo, racismo, regionalismo e outras formas de descriminação (art.º 5º, n.º 2 alínea a) – LPP), o que representa a protecção de interesses de igualdade entre os cidadãos consagrados na Lei Constitucional.

Apreciando em concreto os fundamentos do pedido em causa há a constatar a necessidade de reconhecimento de diversas correntes de opinião, a “abolição” dos comités de especialidades e a possibilidade de exercício abstracto de todos os direitos dos membros (militantes) estatutaria e legalmente consagrados. Quanto ao reconhecimento de diversas correntes de opiniões no seio do partido, a Lei Constitucional admite a liberdade de consciência e de opinião como direitos fundamentais. Se assim não acontece, estamos inequivocamente perante actos (incluindo omissões) perfeitamente inconstitucionais. O problema na verdade se coloca na concretização desta possibilidade legal, i.é, embora o Tribunal Constitucional reconheça esta liberdade e em consequência condene o MPLA a afastar tais normas estatutárias (se existem) haverá o problema de determinar se o simples afastamento normativo será suficiente para a satisfação deste interesse assim manifestado pelo grupo de militantes em causa. É que os aspectos subjectivos (interesses políticos) e as matérias (normas) nem sempre são coincidentes no plano da concretização. Podendo ser extintas as normas e mantidas as práticas. O que resolve o problema da inconstitucionalidade suscitado sem resolver os problemas manifestados pelos membros interessados. Nos parece que tais actos podem ser desencorajados pela responsabilização jurídica em função de ameaças de interesses ou dos danos efectivos deles decorrentes e como tal impor sanções disciplinares, civis ou mesmo criminais aos seus agentes na medida do prejuízo patrimonial causado a organização correspondente. Já a hipótese da extinção dos comités de especialidades (dos economistas, dos sociólogos, psicólogos, juristas, médicos, etc.) não parece ser constitucionalmente relevante, pois que as organizações podem agrupar os seus membros em razão de capacidades técnicas sem que disto decorram efeitos discriminatórios. As necessidades de maior desempenho organizacional recomendam tais modelos desde que sejam úteis para o efeito. Todavia, não é admissível que tais comités de especialidades sejam criados com prejuízo de interesses dos restantes membros. Nesta variante, o problema da inconstitucionalidade pode ser colocado desde que estejam em causa interesses de igualdade de tratamento dos membros no âmbito dos direitos e deveres gerais reconhecidos a todos os membros. Pelo que o problema não está na extinção de tais comités mas na limitação dos seus objectivos e actividades em razão da especialidade técnica dos seus membros. No que toca a necessidade de exercício abstracto dos direitos político-partidários não há dúvidas que a sua inviabilidade representa violação de direitos, necessariamente estatutários (art.º 23º n.º2 – LPP), com fundo constitucional assente em direitos fundamentais de igualdade. Por isso é que a Lei Proíbe procedimentos disciplinares dentro dos partidos políticos que põem em causa tais direitos fundamentais (art.º 28º - LPP).

De todo o modo, as organizações políticas primam pelas discussões dos interesses dos seus membros em homenagem ao princípio da colegialidade das decisões dos seus órgãos sociais, o que impõe que todos os recursos internos sejam esgotados antes de quaisquer recursos judiciais, salvo quando hajam danos evidentes ou interesses legítimos seriamente ameaçados e os seus responsáveis não manifestem interesse em resolvê-los. Ao que passa a ser imputado pelo seu representante legal máximo, visto que os partidos políticos são representados judicialmente pelos seus Presidentes ou pelos órgãos definidos pelos respectivos estatutos (art.º 20º n.º2 alínea j) – LPP). Finalmente, vale recomendar que as normas estatutárias e regulamentares obedecem aos ditames da Lei dos Partidos Políticos vigente que materializa os interesses constitucionalmente consagrados pelo que é casuisticamente viável o procedimento judicial para impugnação de certos actos imputados ao partido em causa, embora nos assista algum cepticismo quanto a possibilidade de tais interesses serem completamente satisfeitos com o provimento de uma acção de inconstitucionalidade posto que em partidos políticos a protecção dos interesses subjectivos (ideologias ou estratégias de grupos) são proeminentes em relação as normas que os consagram e protegem, para além de que por essa via judicial não se reparam ou se previnem danos.

terça-feira, 19 de outubro de 2010

CARTA AOS PARTIDOS POLÍTICOS VIII

Albano Pedro


Um dos principais erros dos sistemas democráticos modernos assumido pela maioria das constituições políticas é o de permitir que um instrumento fundamental do povo, de conteúdo e característica não alienável, seja depositado na mão de um único indivíduo: A capacidade de determinar o momento da renovação dos governos através do exercício do direito de convocar as eleições. Nada mais absurdo, se considerarmos que ninguém precipita a sua própria derrota a menos que tenha um certificado de baixa num manicómio qualquer. O referendo, o plebiscito e até o impeachment (que levou o povo brasileiro a decidir sobre a saída do poder do Collor de Melo como seu presidente) constituem instrumentos através dos quais o povo não permite a decisão sobre os problemas mais sensíveis se quer nas mãos dos deputados, seus representantes. Uma dessas decisões tem de ser obviamente o direito a marcar as eleições, sobretudo quando se verifiquem injustificados atrasos para o efeito. É claro que para os Governantes a questão logística constitui razão de sobra para que o Presidente da República tenha este direito e para os constitucionalistas revestidos de visões parciais, dentre várias razões, invocam o débil facto de que, por força do solene juramento em cumprir com as leis, o papel de guardião da constituição basta para tamanha autoridade.

Outro facto interessante, porém incompreensivelmente tolerado pelas forças sociais interessadas, é o poder de organizar o processo de registo eleitoral e o consequente processo eleitoral com a pretensa ideia de partilha no controlo e fiscalização do referido processo através da indicação de agentes representantes dos partidos da e na oposição civil e da sociedade civil em geral. Nada como isso pode salvar a quem a esta plataforma se submete de ser rotulado como estando fora do seu perfeito ser.

Graças a estes poderes, acrescidos com o de controlar a administração do Estado, quem se acha na situação pode ilimitadamente recrutar e arregimentar em torno de si mesmo miríade de instrumentos multifuncionais propícios ao esmagamento da vontade do povo. Já porque não é possível que um processo nestes termos possa decorrer de forma justa, já porque todos os argumentos, com recurso ao maquiavelismo, podem ser chamados para o adiar de acordo com as conveniências de quem coordena o mesmo.

São determinantes, para o sucesso deste importante projecto em fase final de conclusão, as divergências no seio de uma oposição civil, desorientada e incapaz de reconhecer os seus erros sucessivos, que pela força da ganância (ou ambição desmedida como alguns chamam) pelo poder não consegue unir forças para a luta por uma causa comum. Assistindo a todo o tempo a sua própria manipulação pelo regime, incluindo a aceitação pacífica de um engodo como este.

Vale alertar, embora em tempo inútil, que no limiar das eleições cuja marcação ocorrerá quando convir a ala futunguista do MPLA, o atraso ou adiamento na disponibilização das verbas para o apoio dos partidos no processo eleitoral será um instrumento que ao ser usado no momento certo surtirá efeitos fatais para a maioria, senão todas, as formações políticas que para a substituição do regime se propõem. Para que essa justificação seja válida, será necessário que o próprio MPLA seja vítima do problema. Provavelmente, a capacitação financeira desta formação política através da adopção de recursos financeiros extra-orçamentais para que possa, em tempo útil, socorrer-se de meios não disponíveis pelo Estado seja com este propósito. Para além de que a programação técnica dos meios informáticos a empregar no processo eleitoral para a contagem dos votos e o apuramento dos resultados não garante a pessoas sérias quaisquer garantias de estar livre de vícios.

É claro que este quadro, manifestamente favorável ao partido da situação, não é estranho para a maioria dos dirigentes políticos da e na oposição, cujo comportamento e práticas recorrentes mais identificados com as dos comerciantes, vêm já manifestando aos olhos mais atentos o sentido de cumplicidade contra a vontade honesta do eleitorado nacional, confundindo mesmo a oposição e a situação política. Tão abusivo comportamento demonstra, não só, desrespeito e falta de sensibilidade perante os problemas mais profundos do eleitorado nacional e a consequente vontade de alternância do poder como denota gritante falta de vocação política, o que é notável pela falta de acção política, estruturação efectiva de programas de governo e falta de planos concretos de governação. Por isso, constitui verdadeiro elogio alistá-los ao quadro de cúmplices de um processo de distorção daquilo que devia ser a primeira oportunidade de exercício consciente de direito de eleger, uma vez que as primeiras eleições gerais caíram em descrédito devido ao emperramento que causaram a dinâmica democrática que se esperou efectiva com a renovação periódica dos mandatos.

CARTA AOS PARTIDOS POLÍTICOS IX

Albano Pedro


O problema de Cabinda, várias vezes ventilado como sendo de natureza eminentemente política causado por um ideal separatista e independentista e encarado pelo poder como solucionável pela via da extinção das forças sociais de oposição que incitam o povo a subversão armada, está mais próximo de ser relacionado com a falta de comunicação efectiva entre os cabindas e o resto do povo angolano.

O que não ocorre entre os políticos da praça angolana é a ideia de que a maioria do povo, geralmente pobre, não tem recursos que cheguem para usarem transportes marítimos e aéreos, normalmente mais caros que quaisquer outros. E que por via disso essa mesma maioria, no caso, nascida e residente em Cabinda não conhece o resto de Angola, seu território nacional o qual seria alcançado e identificado com maior facilidade e frequência se ao povo deste enclave se colocassem outras vias de comunicação. Por isso, não deve estranhar a ninguém que os cabindas sejam dos povos que menos circulam pelo território nacional e que, se identificado o facto com precisão, as pessoas que defendem a ideia da separação política e administrativa do enclave através da independência, fora os inspiradores, nunca viajaram pelas restantes provinciais compreendidas pelo território nacional em busca da semelhança cultural que une os angolanos e por isso sejam vítimas de interesses políticos insuflados a partir de países aos quais sentem maior aproximação. É pois essa visão redutora de território que leva a maioria dos cabindas a defender um ideal pouco esclarecido e contraproducente para a sua própria emancipação social e económica.

Na verdade, os cabindas estão muito mais ligados as culturas dos povos vizinhos (os dois Congos) com os quais trocam interesses e estabelecem tráfegos de influências sociais e culturais que se reflectem marcadamente na forma de ser e estar. Serve de comparação o facto dos Reinos Unidos, hoje estarem mais ligados a Europa do que houve memória no passado e como consequência estarem mais sensíveis ao projecto da União Europeia ao qual resistiram no princípio, graças ao canal que liga a Inglaterra e a França. E ao contrário, Portugal tem nas Ilhas da Madeira e Açores estatutos especiais devido a pouca fluidez na transferência de valores culturais e políticos causados pelos transtornos da falta de ligação rodoviária e ferroviária.

O papel das vias rodoviárias e ferroviárias na ligação dos povos é actualmente inquestionável. Devido a malha rodoviária e ferroviária funcional, países como Namíbia, Botswana, Lesotho, Suazilândia e Africa do Sul se encontram tão ligados que são quase dispensáveis as independências política de cada um. Ao mesmo tempo que a privação tecnológica e o lento desenvolvimento económico e social é uma realidade que os países insulares como São Tomé e Príncipe, Cabo Verde, Cuba, para citar alguns, encaram com permanência ao longo dos tempos devido ao facto de faltarem, no conjunto dos meios de comunicação com outros povos, as vias rodoviárias e ferroviárias. Entre nós, o exemplo da fase do conflito armado em que os comboios ferroviários e os camiões não podiam circular, apesar dos aviões em trânsito frequente, levou províncias como Kuando Kubango e Moxico a ruína de que hoje têm dificuldades de se verem livres. Para mais, Angola ficou literalmente distante dos países vizinhos a partir do momento em que as vias rodoviárias e ferroviárias deixaram de ser acessíveis. O conceito de país desenvolvido e país em via de desenvolvimento está relacionado fundamentalmente com a fluidez na comunicação que é determinada, no âmbito da circulação de pessoas e bens, pela complexidade da malha rodoviária e ferroviária que os países assim rotulados comportam. São casos disso a Índia, Brasil, China, Países membros da União Europeia, Rússia, EUA, etc. A funcionalidade e o sucesso de plataformas económicas de âmbito regional como SADEC, MERCOSUL, etc. é determinada pela teia de estradas e linhas férreas que ligam os Estados membros.

A solução técnica da ligação entre Cabinda e o resto de Angola (se feita com base em via subterrânea ou aérea) é da competência de especialistas nestas matérias aos quais caberá viabilizar a zona exacta do curso do Rio Zaire em que as estruturas físicas encontrarão maior segurança. Entretanto, no que toca a necessidade material desta via, ela pode compreender vias férreas e rodoviárias e a sua construção pode resultar do concurso do investimento privado nacional, internacional ou multinacional suportado por um acordo multilateral que envolva Angola e os dois Congos, certo de que o projecto sobretudo na sua componente ferroviária pode, para maior rentabilidade, alcançar as capitais dos três países, cujos ramais podem ser determinados pelas políticas internas das partes signatárias.

Visto, os transportes aéreos e marítimos serem os mais caros se comparados com os transportes rodoviários e ferroviários, muito dificilmente a maioria do povo de Cabinda se sentirá enquadrado no contexto sócio-cultural nacional e por arrasto, o sentimento independentista de cada um será alimentado pela distância instalada entre Luanda, enquanto capital e a província de Cabinda.

CARTA AOS PARTIDOS POLÍTICOS VII

Albano Pedro


O sentimento nacional e o espírito patriótico são tão tributários da titularidade do património privado que o mundo se encontra dividido essencialmente em dois sistemas de organização económica e social. O comunismo que consiste num sistema de solidariedade social forçada pelo empobrecimento causado pelo Estado através da extinção de todas as formas de aquisição da propriedade privada e o capitalismo que privilegia o acesso a propriedade privada como base do exercício de direitos e liberdades dos cidadãos.

O que é caracterizado hoje como capitalismo selvagem é fruto da recuperação desenfreada do tempo esgotado pelo comunismo parcialmente assumido no passado pós-independência. O povo angolano que no final dos tempos da colonização começava a acumular capital através das oportunidades de emancipação económica e social que o regime colonial proporcionava aos autóctones mais empreendedores, foi literalmente assaltado e roubado pelo regime instalado no pós-independência. Perdeu a propriedade privada e durante todo o período da vigência da opção comunista atravessou um autêntico deserto económico, mendigando tudo o que necessitava a um regime paternalista de vocação social duvidosa.

Com o advento da democracia e da economia de mercado, o povo que se encontrava amparado pelas mãos do Estado-Senhor-de-Tudo se revelou patrimonialmente nu e tecnicamente incapaz diante de uma invasão desenfreada de povos de todo o mundo cuja experiência e capacidade empreendedora permite tomar conta dos mais rentáveis e prósperos segmentos comerciais. O próprio Governo pelas hostes palacianas desencadeou um processo de depuração que tem vitimado o povo no seu desesperado esforço de emergir num ambiente económico individualista. Promoveu uma elite económica composta por àqueles que se têm revelado particularmente servis ao regime e desenvolveu um complexo mecanismo de acesso a propriedade privada que dificulta o cidadão de se ver realizado longe do controlo do regime e facilita o cidadão estrangeiro, empreendedor ou não, que se apresente a corresponder ao apelo para a cumplicidade na exploração desenfreada do património público sob controlo da elite económica em questão.

O quadro actual é simplesmente desolador. Se grande parte do património económico e imobiliário foi nacionalizado e confiscado pelo Estado, a grande maioria dos angolanos não se vê beneficiado desta operação. Sendo certo que o bem imobiliário constitui a base de hipoteca para o acesso ao crédito financeiro, os poucos angolanos que têm acesso a esse bem não dispõem de título de propriedade sobre os mesmos. Situação criada para que o desenvolvimento da propriedade privada fora das simpatias do poder não tenha lugar. Ao invés verifica-se uma concentração abusiva de avultados meios patrimoniais ao redor dos senhores do poder transferindo agressivamente os principais meios de produção do Estado e os mais significativos bens patrimoniais públicos.

As referidas elites arrogam-se ao direito de fazer o uso da força, espezinhando e humilhando um povo desamparado pela expropriação de bens e pela obstrução no acesso aos serviços públicos essenciais as populações, criando como consequência, uma divisão de “classes” com diferenças económicas e sociais catastroficamente abismais, onde os “filiados” desfavorecidos são agravados com o “vírus” do analfabetismo e da pobreza e todos os ingredientes necessários como doenças de vária ordem, mendicidade, etc. E tudo acontece aos olhos cúmplices de uma plateia de partidos políticos que se pretendem propostas de alternância ao poder.

CARTA AOS PARTIDOS POLÍTICOS V

Albano Pedro


Para os olhos mais atentos e faro experimentado o caso Fernando Garcia Miala (FGM) encerrado recentemente em primeira instância judicial (uma vez que não se prescindiu do recurso judicial) para além de configurar uma perfeita demonstração de falta de seriedade na implementação do projecto de democratização e institucionalização de um Estado de Direito em Angola, representou a repetição de mais um ciclo de supressão da vontade reformadora do status quo em Angola que pela primeira vez foi protagonizada através do célebre 27 de Maio em que o sistema vigente arrastou intelectuais de respeitada craveira e milhares de almas inocentes sob a capa nominal de Nito Alves e com o mesmo elemento de causa: o subtil e persuasivo argumento do Golpe de Estado. Com a queda da cúpula militar (Chefes das FAA, do Exército, da força Aérea e de modo indeferido da Marinha de Guerra) e do Comandante da Polícia Nacional, o dossier FGM conseguiu refazer aquele cenário apenas com a ausência de cenas de morte e tiroteios a mistura. Pois, levou ao abismo do silêncio político uma enorme teia humana composta por milhares de cidadãos exercendo as mais diversas funções públicas e com as mais múltiplas referências de estarem ligados ao FGM.

É certo que um homem da estatura de FGM pelas funções exercidas e os efeitos que a sua actividade gerou junto da sociedade, sobretudo civil e da imprensa privada, não foi completamente inocente na formação da falta de escrúpulos da máquina que o vitimou, mas o que é certo é que a maioria dos cidadãos, revelou-se revoltada com a sentença política accionada contra o caso que o envolveu. Sobretudo devido ao facto de estar evidente a falta de um sistema judicial angolano que confira certeza e segurança jurídica.

Há lugar entretanto, ao recurso judicial em sede do Tribunal Supremo. Porém antecipadamente é sabido que aquela instância judicial há de sancionar a decisão proferida pelo Supremo Tribunal Militar, salvo se a vergonha fizer suficiente pressão moral sobre o sentido profissional dos juizes. A razão é simples: os juízes podem sempre decidir contra a Lei se quiserem (e acontece quase sempre na nossa praça judicial) sobretudo quando se sabe que o Presidente do Tribunal Supremo é indicado pelo Presidente da República. A única arma disponível contra as decisões discricionárias, muitas vezes proferidas ao arrepio da ordem jurídica, dos juízes é o recurso a instâncias judiciais superiores. Ora, o Tribunal Supremo é o último e não haverá um outro para decidir o caso FGM. E como é sabido que a decisão judicial é praticamente encomendada pelos senhores do poder então a justiça não será feita dentro dos critérios da legalidade, caindo pesadamente em desfavor do recorrente. O que restará ao FGM?

Um Tribunal Constitucional seria a única e verdadeira solução do caso FGM num país, que como o nosso, as decisões políticas são omnipresentes, até no sistema judicial. O Tribunal Constitucional ao qual seria de recorrer após a decisão do Tribunal Supremo e cujo objecto seria apreciar as questões de direito (e apenas de direito) inerentes ao processo que atentem contra a Lei e o espírito da constituição angolana. Seria o único capaz de obstruir o sentido discricionário das decisões dos juízes, em qualquer das instâncias, e destruir todos os efeitos gerados pelas sentenças e acórdãos proferidos nomeadamente pelo tribunal de 1ª instância (no caso Supremo Tribunal Militar) e a provável decisão reiterada na forma de acórdão pelo tribunal de 2ª instância (Tribunal Supremo). É que ninguém está acima da Lei e nenhuma Lei está acima da Lei Constitucional: Assim, o papel fiscalizador de um Tribunal Constitucional seria suficiente para destruir toda a farsa produzida contra a verdade subjacente ao caso FGM e destruir do topo a base todos os efeitos gerados pelas decisões produzidas pelo sistema judicial em todas as suas instâncias, uma vez que a este nível jurisdicional os juízes não são completamente livres de interpretarem a Lei nos termos que bem entendam, senão no quadro em que permita a Lei Constitucional enquanto Lei – Mãe.

Mas o sistema judicial angolano não comporta um tribunal Constitucional autónomo, o que representa, para além da própria decapitação e impossibilidade funcional do sistema de justiça angolana, um verdadeiro atentado contra o projecto de Estado de Direito. E quando se diz que o tribunal Supremo exerce a jurisdição constitucional não passa de outra farsa porque nenhum juiz do Tribunal Supremo exercendo a jurisdição constitucional anulará a decisão que proferiu na veste de uma outra jurisdição a menos que tenha um atestado psiquiátrico que atribua perturbações comportamentais graves. Chamo a isto impossibilidade jurisdicional subjectiva propositadamente criada com a omissão material de um Tribunal Constitucional cujo importantíssimo papel na construção de um Estado de Direito passa quase despercebido aos olhos e ouvidos das maiores autoridades políticas da e na oposição civil.

O que restará ao FGM num quadro em que a justiça, quando trata de casos políticos, tem uma mera representação estética? Reagir à decisão política do tribunal com uma outra medida política. A saber: Negociar com o poder uma possível amnistia ou comutação penal que só o Presidente da República pode conceder. Uma vez que o poder político tomou de assalto o poder judicial, e em consequência a manipulação da própria Lei, mesmo diante de uma oposição civil que se diz alternativa ao poder do Estado.

CARTA AOS PARTIDOS POLÍTICOS III

Albano Pedro


A maioria dos líderes políticos da e na oposição está longe de imaginar que o modelo de organização administrativa adoptado pelo MPLA, nos termos do qual as estruturas orgânicas do partido repartem-se pelo território nacional na dimensão da extensão da divisão administrativa do Estado, atravessando províncias, municípios, comunas, sectores, aldeias, povoações e “Kimbos”, obedece a lógica das formações partidárias de cunho comunista que, sendo verdadeiros monopólios políticos, têm a gigantesca função de administrar o Estado por tempo indefinido, tutelando o povo a tempo inteiro e em todos os locais de existência social possíveis (residências, salas de espectáculos e lazer, acampamentos, lavras, campos militares, escolas, agremiações culturais, artísticas e desportivas; empresas, repartições públicas, etc.) através de pulverizantes, recorrentes e asfixiantes mensagens propagandísticas que afectam todos os sentidos e proliferam nas artes, letras e mesmo ciências com o fim de “viciar” o raciocínio dos seus destinatários; configurando um verdadeiro universo cultural fictício sob o peso da ideologia forjada pela “classe dominante” dentro de um padrão paternalista de Estado que alcança o último cidadão dando-lhe inclusive o que comer e o que beber em quantidade e qualidade “politicamente” determinada. É pois a lógica de partido-Estado de que a UNITA igualmente se revestiu ao longo dos anos em que apostou na oposição armada. O que justifica o facto de ambas as formações políticas terem na forma de organização do Estado o seu modelo.

É um modelo organizativo que, por mais próximo da base social, permite maior controlo sobre a massa militante, divisando neles aqueles cuja evolução psicossocial, tendencialmente orientada ao questionamento da existência social, ameaça a estabilidade da ideologia no seio da maioria procurando prevenir a subversão com medidas compulsivas como ameaças e todas as formas de intimidação e torturas. Sendo um modelo em que o Partido dispõe da vida do cidadão.

A imitação deste modelo de organização partidária, por parte de outras formações políticas, pode resultar de uma “vontade inocente”, visto que estão longe de relacionar esta forma de organização com os modelos ditatoriais de que o ambiente democrático procura, pela sua natureza, despir-se. Porém, configura a ideia de que os partidos assim organizados apelam por um perfil ditatorial de controlo do Estado pretendendo assenhorar-se do pensamento do último cidadão.

O que vale reflectir é que, para além de ultrapassado pelos ventos da democracia, este modelo tem o defeito de trazer consigo consequências interessantes. O primeiro grupo de consequências compreende a excessiva “massa” humana no quadro orgânico devido a gigantesca complexidade que os partidos atingem ao abarcar o território e o desvio de grande parte dos recursos materiais e financeiros em actividades não relacionadas com a vocação partidária. O segundo grupo de consequências, derivadas do primeiro, comporta a falta de qualidade técnica dos recursos humanos devido a incapacidade natural de que se vestem os partidos políticos, que assim se estendem pelo território, de conferirem remunerações aceitáveis, para além de outras. Resultando deste quadro, o clima de “impotência” financeira da maioria das organizações partidárias e da escassez de quadros técnicos capazes de “exaltar” a vocação política destas mesmas formações partidárias.

Nos dias de hoje, em que os partidos políticos vivem as expensas do povo através do Orçamento Geral do Estado, o debate sobre a possibilidade de supressão de tão gigantescas estruturas partidárias ou para o “redimensionamento” dos partidos políticos angolanos tem absoluta prioridade. Já porque os perto de 200 partidos “roem” significativa fatia das finanças públicas que bem serviria para importantes e proveitosos empreendimentos públicos, já porque estes mesmos recursos financeiros nem sequer chegam para que os partidos políticos cumpram com os seus objectivos. Assim, os recursos disponibilizados em somas significativas, se perdem sem proveito para os cidadãos.

O que a democracia recomenda, e o mundo tem exemplos que proliferam aos milhares, é que os partidos se desfaçam da pretensão de “acumular” cada vez mais militantes, insuflando neles o espírito de “confiança cega” pela ideologia partidária, desprezo pelos interesses não identificados com as organizações em que militam e ódio contra os membros de outras organizações partidárias. Resultando disto, que nenhum partido sóbrio deve pretender controlar a massa de militantes senão com o interesse único de consciencializá-la para o exercício eleitoral. E nesta realidade, o principal papel dos partidos políticos é o de alcançar o poder político preparando os seus militantes para a administração do Estado, libertando-os para o senso de simpatia pelos programas e agendas políticas afastando deles o sentimento fanático pelos chefes como se de uma irmandade se tratasse.

Esta atitude passa naturalmente pela forma de organização dos partidos políticos cuja extensão territorial se bastaria, quando muito, ao nível das províncias. Não já como representações orgânicas locais burocratizadas (Secretariados Provinciais ou Divisões Regionais), mas como núcleos de interesses políticos organizados em níveis de hierarquia horizontal, sendo modelo disto os clubes e casas de sócios.

CARTA AOS PARTIDOS POLÍTICOS I

Albano Pedro

Com as recentes eleições tendentes ao cargo de Presidente ocorridas na UNITA, o país parou por alguns momentos a espera dos resultados finais. Não só por se tratar de um acto que ocorreu dentro do maior partido da oposição e da consequente lição de democracia daí decorrente, como dos seus efeitos em todas as esferas sociais e círculos de interesses políticos. Com efeito, os dois candidatos (Abel Chivukuvuku e Isaías Samakuva) dividiram, em visíveis tendências, o partido e o país. Duas perspectivas: a que se propunha a retirar a UNITA da letargia política e imprimi-la o sentido dinâmico que lhe permita encarar as próximas eleições gerais com merecida folga e provável hegemonia sobre os demais partidos, incluindo o da situação, e a que pretendia manter o status quo acomodando vontades e interesses pessoais. Para a primeira, ameaçando seriamente os interesses palacianos surgiu em cruzamento óbvio com os interesses do eleitorado nacional que ameaça grave abstenção nas próximas eleições. Aos partidos da oposição, agora vivificados pela plataforma dos POC e pelos actos sorrateiros do PADEPA, vem como uma catapulta para o afastamento do MPLA do poder propiciando coligações estratégicas para o efeito. Mais interesse ainda tinha para o próprio MPLA que augura por uma democracia interna pela pressão externa de um partido forte e competente na oposição, procurando livrar-se da “democracia de voto por mão levantada” afim de efectuar as devidas limpezas que interessam entre os camaradas.

Para a outra, restava apenas a correspondência com os interesses palacianos, vindo daí uma forte expectativa nacional cruzando em rotas de choques uma maioria esmagadora de angolanos contra uma minoria circunscrita ao poder. Os resultados favoreceram os interesses palacianos e por arrasto as correntes internas da UNITA e do própria MPLA que daí colhem algumas migalhas para a sobrevivência individual. Acto legitimado por uma minoria representante de uma maioria completamente inocente das perspectivas dos resultados alcançados.

A UNITA entra mais uma vez em hibernação e com ela o sentido efectivo de oposição política nacional. Para a maioria dos angolanos, mais um sonho adiado e a reafirmação de uma perigosa incerteza quanto ao day after das eleições gerais. Ficam de fora grandes interesses actuais como o obstáculo injustificado levantado contra os angolanos na diáspora de exercerem o direito ao voto pela confirmação do registo eleitoral, a conclusão da implementação dos acordos de LUSAKA para a inserção social dos cidadãos desmobilizados das partes em conflito armado, a execução duvidosa do contrato bilionário com os chineses, o galopante desvio obscuro do património financeiro público para esfera privada, etc.

A esperança almejada, com a renovação de uma presidência “relaxada”, perde-se com este acto protagonizado pelos “senhores do absurdo” e é carimbado o passaporte da certeza de uma UNITA em corrida para a derrota eleitoral. O cenário está agora mais claro para a ala “pró-futungo” do MPLA. O perigo de um MPLA em reforma pressionado por uma UNITA activa está agora fora de cogitação. A UNITA mantém a linha de um fiel apêndice da ala pró-futungo jogando o seu papel de um partido na sombra da oposição, como convém a este tipo de contrato.

O MPLA pró-futungo esfrega agora as mãos de contente, visualizando apenas a ocasião de desfazer-se de uma UNITA servil no devido momento. Com um processo eleitoral já devidamente “cozido” a partir do registo eleitoral, a UNITA tem pela frente uma “expulsão” em massa do poder. Com o GURN extinto e um resultado em legislativas certamente minguante, só muito dificilmente a presença de mais de uma dezena de deputados será possível. E se os outros partidos da e na oposição não fazerem o uso útil das oportunidades desperdiçadas pela UNITA, chamando a si as respectivas vantagens, correm o mesmo risco.

Assim, teremos um MPLA que, na perspectiva presidencial fica apenas derrotado pela contagem regressiva da permanência no poder que o processo eleitoral traz consigo, pode bem fazer as suas matemáticas no poder fazendo ressurgir o ambiente de partido único dos anos oitenta apesar de uma constituição democrática e com ele a soma de uns longos e felizes anos na situação. Salvo, se outra for a postura da nova direcção saída do X Congresso do partido fundado por Jonas Savimbi.

EUTANÁSIA OU SUICÍDIO ASSISTIDO

SOBRE A POSSIBILIDADE DE RECONHECIMENTO DE UM DIREITO A MORTE

Albano Pedro*



Para este tema, não vem a propósito a questão da permissibilidade da morte como um direito reconhecido ou reconhecível aos homens. Tema, aliás, afastado quer da jurisdicidade dos valores sociais e humanos quer da ética das macro organizações sociais modernas – em que sobressai o Estado, já que a sobrevivência dos valores mais elementares das comunidades humanas está estreitamente relacionada com a preservação da vida. A vida como valor fundamental a existência social é defendida em todas as realidades políticas, permitindo-se em muitos poucos casos a sua extinção.

Porém, a morte como um instrumento de solução de situações juridicamente tuteladas é enquadrada de forma insuspeita na cultura dos povos, já quando se permite o aborto – para atender a casos especiais em que esteja em causa a integridade física (sobrevivência condicionada da mulher grávida) ou moral (aborto permitido em casos de violação) da mãe. A pena de morte não se afasta desta realidade. A aplicação desta grave penalidade surge na sequência da tutela de bens jurídicos fundamentais a sociabilidade humana que a pessoa do delinquente põe em causa.

Ponto assente é o “acórdão” lavrado entre a maioria dos Estados modernos sobre o afastamento da possibilidade da morte como direito autónomo. Angola é parte deste espírito quer prescrevendo de forma directa quando consagra a proibição da pena de morte (artigo 22º, n.º2 da Lei Constitucional – Doravante LC) quer de forma indirecta quando estabelece a protecção da vida (artigo 20º, in fine e artigo 22º, n.º1 - LC), mesmo em situações excepcionais (artigo 52º, n.º 2 –LC), embora seja um dado valorativo da moderna constituição angolana.

Passe o quadro desenhado, verifica-se nos dias de hoje a tendência universal de se razoabilizar a possibilidade da morte como um instrumento ao serviço da medicina sobretudo para os casos clínicos irreversíveis. Surge o debate para a sua institucionalização na forma de eutanásia ou suicídio assistido. Embora, correntes de especialidades procuram não confundir um e outro com argumentos juridicamente irrelevantes uma vez que numa e noutra situação há a morte “administrada” com fundamentos clínicos aceitos pelo paciente assim contemplado.

Esta realidade é legalmente vivida em alguns países. O Estado de Oregon (EUA) foi o primeiro a permitir explicitamente a um médico prescrever drogas letais com vista ao termo da vida do paciente. A Holanda tem legalizado a Eutanásia desde o ano de 2002. O movimento pró-eutanásia é hoje crescente procurando impor a necessidade de uma morte digna aos doentes terminais subtraindo-os de um prolongado e desnecessário sofrimento. A figura de Jack Kevorkian (apelidado Dr. Morte), médico americano preso por crime de homicídio, após um julgamento polémico e mediatizado, por ter administrado drogas letais a pedido do seu paciente e consentimento dos familiares deste desencadeou o movimento que hoje ganha tribuna nos debates legais da maioria dos estados dos Estados Unidos e no mundo inteiro.

A verdade é que a eutanásia encontra uma “folga” legal deixada pela maioria dos sistemas penais que não estabelece a criminalização do suicídio. O que levanta a questão de saber se o auxílio ao suicídio deve ser incriminado. Nem o suicídio nem a tentativa de suicídio são criminalizados em muitos países. O suicídio não é penalizado por motivo evidente: o suicida morre e, por isso, não pode ser punido. Argumenta-se que a tentativa de suicídio não deve ser penalizada para facilitar que as pessoas que a cometem possam recorrer a ajuda antes de a morte chegar e acresce-se que não há necessidade de penalizar quem já sofre com um mal que a leva a dar tão ousado passo. A tendência legal moderna é a de punir, apenas, quem incitar outra pessoa a suicidar-se, ou lhe prestar ajuda para esse fim. O código penal angolano estabelece esta previsão pelo artigo 354º acrescendo no seu parágrafo único a impossibilidade legal da eutanásia por essa via.

Vale lembrar que o movimento pró-eutanásia desenvolve “campanhas” que se assemelham as do movimento pró-aborto. Em comum têm que ambas procuram propagar a “filosofia da morte preventiva”. Passe a similitude material das duas realidades que se apresentam nos pólos contrários da existência humana (o início e o fim da vida), os argumentos para a “morte digna” procuram mobilizar o senso do sofrimento indefinido e tortuoso gerado pela “morte certa” decretada pelas incertezas médicas na superação de doenças, por isso, catalogadas como terminais. Tal como o aborto, na maior parte dos casos, procura prevenir o mesmo sofrimento. A dúvida sobre a possibilidade não terminal da doença assim catalogada torna-se um assunto de trato metafísico, com dignidade religiosa, cabendo neste campo o “veto” contra tendência de “emancipação”da morte misericordiosa. Alheio, por isso, aos interesses científicos que projectam e renovam os dados culturais das sociedades.

Legalizada ou não a eutanásia na sua forma passiva, consistindo no não prolongamento da vida do paciente terminal pela não administração dos medicamentos devidos, seja por custos avultados do tratamento médico seja pela irreversibilidade clínica, é uma realidade comummente aceita e praticada pela classe médica. Este facto, a semelhança das causas que levam a discussão e a legitimação do aborto, deve ser encarado com a merecida responsabilidade. Não se vá olhando com indiferença legal uma realidade evidente, levando ao reconhecimento material de um verdadeiro direito a morte.
*JURISTA

ATENTADO CONTRA A LIBERDADE DE IMPRENSA - O CASO GRAÇA CAMPOS

Albano Pedro

A condenação do jornalista Graça Campos por suposto crime de injúria, calúnia e difamação vibrou como um martelo sobre a comunidade dos operadores da comunicação social e faz eco sobre todo um sistema social, levantando questões como: Até onde vai a liberdade de expressão? Até que ponto os crimes assim tipificados correspondem as inspirações de uma sociedade fundada em princípios democráticos? Qual deve ser o limite do exercício da liberdade de imprensa? Quando é que estamos em face de um crime de injúria, calúnia e difamação? etc. E certamente por falta de respostas a estas questões, a maioria dos jornalistas e profissionais da comunicação social se sente agora ameaçada de exercer livremente o seu ofício.

Oferece ainda um verdadeiro teste aos princípios democráticos para a actual Lei de Imprensa revelando a sua frágil envoltura sustentada permanentemente pelo espírito da antiga Lei de Imprensa quanto a sua vocação antidemocrática e totalitarista. Precipita ao debate a sua ineficiência e ineficácia no plano dos direitos, liberdades e garantias dos profissionais de imprensa em particular e do povo em geral colocando em risco a sã convivência e a plena complementaridade entre a Lei de Imprensa e o Código Penal bem como arriscando a sua utilidade e oportunidade no plano jurídico-constitucional.

O Código Penal surge como o complexo de normas subsidiárias a Lei de Imprensa de tal sorte que esta apenas se limita a desenvolver subtipos criminais como os crimes de “abuso de liberdade de imprensa” e os crimes de “desobediência” enquanto condutas específicas das empresas e profissionais da mídia. Sendo certo que societas delinquere non potest (as sociedades não têm capacidade criminal) entende-se que o legislador ordinário angolano pretendeu com a responsabilização de empresas da mídia modelar nas condutas assim tipificadas nesta Lei o vínculo obrigacional sustentador da responsabilidade civil, ao invés daquilo que pode ser um lapsus calami (erro de objectivação escrita) que é a criminalização das mesmas condutas. Acresce-se que, a previsão penal da calúnia, difamação e injúria sem qualquer excepção para o exercício da liberdade de imprensa, não só viola gravemente este direito e todos desta natureza (liberdade à informação, liberdade de expressão, liberdade de reunião e manifestação, etc.) como inviabiliza o próprio exercício da liberdade de imprensa perigando gravemente a construção e a sustentação da democracia e do primado da lei em Angola.

Na verdade, o Código Penal é impreciso na tipificação dos crimes de injúria, calúnia e difamação. Não define os referidos conceitos, deixando a interpretação, muitas vezes distorcida e como tal abusiva, ao critério do juiz da causa. Tão pouco é claro quanto ao seu conteúdo deixando a triste, pobre e quase confusa redacção de «…se alguém difamar outrem publicamente, de viva voz, por escrito …imputando-lhe facto ofensivo a sua honra e consideração…» para o crime de difamação (art.º 407º Código Penal – Doravante CP); «O crime de injúria, não se imputando facto algum determinado, se for cometido contra qualquer pessoa publicamente, por gestos, de viva voz, ou por desenho ou escrito publicado…» para o crime de Injúria (art.º 410º CP) e «…Se não se provar a verdade das imputações, será punido como caluniador com prisão até um ano e multa correspondente» para o crime de calúnia (art.º 409º CP), deixando apenas a vaga ideia de que os crimes de calúnia e injúria são meras variações situacionais derivadas do crime de difamação.

O que será difamar? O que será facto ofensivo a honra e consideração? Qual será a honra e consideração de um ladrão ou de um demente incurável? Será ela diferente da de um politico corrupto ou de um líder religioso charlatão? E qual será a honra e consideração de um líder politico exemplar como Nelson Mandela ou Mahtma Ghandi? Para a resposta a questões levantadas haverá lugar a especulações valorativas subjectivas que a semelhança do critério ético estabelecido pelo Direito Civil na base da fórmula valorativa de bonus pater família (valores morais e éticos inerentes ao cidadão médio de uma sociedade) não conferem precisão uniformizada para os factos que se apresentam como enquadráveis nas normas incriminadoras em questão. Assim, a norma penal, por plasmar conceitos, como este, imprecisos e indeterminados, permite que o ofendido defina o próprio âmbito e conteúdo da ofensa a honra e consideração, reforçado inclusive com a previsão do parágrafo único do art.º 410º nos termos do qual «Na acusação por injúria não se admite prova sobre a verdade de facto algum, a que a injúria se possa referir.».

Vem daí que, as previsões sucessivas dos crimes de difamação, injúria e calúnia aparecem como verdadeiras ameaças aos princípios democráticos por imprecisão e arcaísmo; excessivas, desproporcionais e perigosas para o exercício das liberdades fundamentais em geral protegidas pela Lei Constitucional vigente. O que levanta um verdadeiro confronto entre a Liberdade de Imprensa e Os Direitos de Personalidade Criminalmente Tutelados, colocando ainda o problema da prevalência de interesses entre o valor individual (interesse particular) e o valor colectivo (interesse público), quando é certo que o exercício da liberdade de imprensa, enquanto a mais ampla e poderosa manifestação da liberdade de expressão, não só procura impor o interesse público como anima a própria existência de um Estado Democrático e de Direito.

O “pacto” estabelecido entre o Direito Civil e o Direito Comercial nos termos do qual determinados factos que desencadeiam a Responsabilidade Civil (dever de indemnizar o ofendido) em Direito Civil são considerados práticas correntes e normais em Direito Comercial, sem os quais o comerciante dificilmente sobreviveria (Vide: a persuasão astuciosa de um comerciante que leva o cliente a comprar um artigo contra o seu próprio gosto), mesmo quando os dois ramos de Direito sejam da mesma família (Direito Privado), serve certamente de exemplo para estabelecer limites e vizinhanças necessárias a preservação de interesses entre o Direito de Imprensa e o Direito Penal. Sendo razoável e de utilidade democrática que determinados factos considerados difamatórios, caluniadores ou injuriosos não o deveriam no exercício da Liberdade de Imprensa, visto prosseguir-se aqui interesses públicos e não veleidades pessoais conformados com o dolo imputável a subjectividade particular de que o direito penal procura combater.

Foi a percepção da necessidade de preservação deste limite, que levaram os americanos a decidir sobre a consagração constitucional da extensão do conteúdo da liberdade de expressão enquanto pilar da democracia, quando admitiram que pela caricaturização e ridicularização de figuras públicas muitas vezes é alcançada a verdade dos factos necessária a informação do povo (Vide: caso verídico representado pelo filme The people versus Larry Flynt – em que a Suprema Corte de Justiça Americana considerou constitucionalmente protegida a ridicularização feita numa publicação pornográfica de grande tiragem contra um importante líder religioso americano que sentiu gravemente ofendida a sua honra e consideração).

O quadro condenatório sub iudice viabilizado a luz do actual sistema jurídico (Código Penal, Código Civil e Lei de Imprensa) revela gravosas insuficiências da Lei de Imprensa e a sua subtil e perigosa vocação de agredir os próprios interesses da classe dos jornalistas e dos operadores da comunicação social, a saber:

Que a tripla condenação ocorrida ao abrigo do Código Penal (Calúnia, injúria e difamação), salvo entendimento mais aguçado, tem como consequência para o jornalista Graça Campos o impedimento de exercer as funções de Director do Semanário Angolense ou de qualquer outro órgão de comunicação social por 3 anos nos termos prescrito pela actual Lei de Imprensa.

Que a Lei de Imprensa não procura afastar as graves penalidades dos crimes de calúnia, injúria e difamação pela concretização de normas especiais que protejam os profissionais da comunicação social quando em face de tais factos. O que seria homenagear o princípio hermenêutico Lex specialis derrogat lex generalis (as normas especiais da Lei de Imprensa afastariam as do Código Penal em matéria de Calúnia, Injúria e Difamação subtraindo os jornalistas de os cometerem no exercício das suas actividades).

Que a similitude dos critérios dozimétricos penais inspirados entre a actual e a anterior Lei de Imprensa e representados no caso Graça Campos revela a manutenção legal do projecto de um Estado totalitarista e de viabilidade histórica remota que procura abafar o surgimento de uma sociedade livre e justa pela via da aplicação de pesadas penalidades susceptíveis de suprimirem a liberdade de expressão dos cidadãos.

Que a falta de uma oportuna regulamentação concretizadora da Lei de Imprensa inviabiliza a interpretação dos conteúdos e limites precisos sobre os factos susceptíveis de imputação criminal e consequente impugnação judicial.

Não será, certamente inteligente, a ideia de manter a incriminação de tais condutas em sede do Direito de Imprensa (desnecessariamente subsidiado pelo Código Penal) sob pena de exaltação de um Estado centralizador de opinião já sacrificadamente ultrapassado pela história recente de Angola. O Direito de Imprensa se bastaria com a mera responsabilização civil de condutas deontológicas inconvenientes contra direitos de personalidade legalmente protegidos. Resultando daí indemnizações e outras espécies de desvantagens de natureza sancionatória próprias do Direito Civil.

Recomenda-se em suma que, pela via da impugnação judicial da actual Lei de Imprensa por manifesta inconstitucionalidade, haverá, pois, que fazer vincar uma Lei de Imprensa que preveja medidas civis e não criminais. Uma Lei de Imprensa que reduza os excessos previsionais do crime de calúnia, injúria e difamação tipificados no Código Penal. Tamanha solução atrairia o espírito de convivência democrática e o respeito a um dos mais elementares direitos dos cidadãos: o Direito a Informação.

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

MOVIMENTO UNIVERSITÁRIO

MEMÓRIA SOBRE A VIOLÊNCIA DO ESTADO NA PRIMEIRA MANIFESTAÇÃO DE ESTUDANTES UNIVERSITÁRIOS DA ERA PÓS-COMUNISTA EM ANGOLA

(Texto comemorativo do 8º ano da ocorrência da primeira manifestação dos estudantes da Universidade Agostinho Neto no pós-comunismo como marco histórico da reivindicação dos direitos e liberdades civis pelos estudantes universitários)


Albano Pedro

(Antigo Coordenador para os Assuntos Jurídicos da Comissão Instaladora da Associação dos Estudantes da Universidade Agostinho Neto e co-promotor da 1ª e 2ª Manifestação dos Estudantes da Universidade Agostinho Neto em 2002 e 2003 respectivamente)

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“Memória dedicada em especial ao Dr. Gilberto Figueira, o maior líder estudantil que conheci; à minha família, pois os filhos que tenho vêem da cumplicidade universitária marcada pelas manifestações e à todos os colegas da Universidade Agostinho Neto que nela participaram destemidamente sem pôr em causa a boa-fé dos seus objectivos e dos seus líderes. Ad Perpetuam Rei Memoriam”


I. CAUSA DA MANIFESTAÇÃO

No pretérito dia 8 de Outubro do ano em curso, ter-se-ia comemorado o Dia do Estudante Universitário Angolano em alusão a primeira manifestação de estudantes universitários realizada nesta data do ano de 2002, se a data proposta pela AE-UAN (Associação dos Estudantes da Universidade Agostinho Neto) através do seu Chanceler Geral, Gilberto Figueira (então Estudante do ISCED-LUANDA) tivesse sido aprovada pela Assembleia Geral da Universidade Agostinho Neto. Mais de oitocentos estudantes marcharam em Luanda a partir da Faculdade de Economia da Universidade Agostinho Neto até a Reitoria da mesma Universidade preenchendo completamente a estrada da Avenida Marginal numa manhã de um dia útil pleno de actividade laboral para manifestar a solidariedade para com os professores universitários que estavam numa greve que ameaçava anular o ano lectivo em todo o sistema de ensino universitário público. O projecto de solidariedade a favor da reivindicação dos direitos dos docentes foi esboçado por um grupo heterogéneo de estudantes (representando distintas faculdades e institutos) e implementado por estudantes que estavam em risco de ver perdido o ano lectivo devido ao desentendimento entre o Sindicato dos Professores Universitários liderado pelo Doutor Carlinho Zassala e o Ministério da Educação representado pelo Ministro Burity da Silva.


II. OS PREPARATIVOS DA MANIFESTAÇÃO

Semanas antes, os estudantes tomaram conhecimento da resistência do Governo em satisfazer as exigências dos professores, que consistia fundamentalmente em aumento salarial e melhoria de algumas condições de trabalho dentre outras exigências clássicas em Angola devidamente apresentadas através de um Caderno Reivindicativo. Veio então a notícia que a falta de satisfação do caderno reivindicativo levaria a paralisação do ano lectivo em toda a universidade (na altura a Universidade Agostinho Neto era a única universidade pública e com abrangência territorial nacional). Certos dos graves e irreversíveis prejuízos desta possibilidade a então-Comissão Instaladora da Associação dos Estudantes da Universidade Agostinho Neto introduziu o debate no seio dos estudantes sobre a necessidade de intervir no litígio que opunha as partes com vista a persuadir quer o Governo quer o Sindicato dos Professores Universitários a encontrar uma solução que não levasse a anulação do ano lectivo visto que os estudantes, seriam em última análise os prejudicados. Aconteceram encontros com o Sindicato dos Professores Universitários em informaram as usas razões e os impasses havidos no processo negocial com o Estado. Ficou visível a falta de vontade do Governo em resolver os problemas colocados. Estava clara a posição certa a tomar pelos estudantes. Quando se pensou na possibilidade de uma manifestação em solidariedade para com os professores universitários, a comissão Instaladora entrou em crise organizacional interna quando se concluiu que alguns estudantes tinham ordem do partido MPLA para não participar em manifestações. Deu-se a ruptura interna que levou a saída de tais estudantes para formar uma segunda Associação da Universidade Agostinho Neto no intuito de fazer oposição aos estudantes que entenderam certo organizar uma manifestação pacífica. Começou então uma guerra de grandes proporções que oporia um pequeno grupo de estudantes contra outros estudantes guiados pelo partido MPLA, contra o próprio MPLA e até contra o Governo. Em consequência, a comunicação estatal (Rádio Nacional de Angola e TPA fundamentalmente) viciava a intenção nobre dos estudantes decididos em levar a cabo a manifestação rotulando a mesma como sendo suportada pela UNITA e outros partidos da oposição e que era completamente ilegal, espalhando um clima de receio e suspeição sobre a justeza das reivindicações em toda a comunidade universitária em particular e em toda a sociedade em geral. Estudantes interessados pendiam entre a necessidade de aderir numa manifestação livre e o receio de represálias políticas no seio dos vários núcleos do MPLA espalhados pelas faculdades e institutos da Universidade Agostinho Neto. A Comissão Instaladora da AE-UAN como composição de representantes de várias associações de estudantes da Universidade Agostinho Neto viu a desistência dos representantes das associações da Faculdade de Direito (liderada por Bernardino Quaresma), da Faculdade de Medicina (liderada por Manuel de Lemos coadjuvado por João Mulima), Faculdade de Economia (liderada por Domingos Mate) e do Instituto Superior de Enfermagem – ISE (liderada por Vasco Matemba) que foram orientados pelo MPLA para formar nova associação. Para enfrentar tamanha pressão política e arregimentar a incerteza dos estudantes em torno da necessidade de realizar uma manifestação pacífica o destino fez cruzar jovens estudantes de têmpera irredutível unidos por traços de carácter em que predominava o sentido de justiça e persistência, aos quais o então Decano do Instituto Superior de Ciências da Educação (ISCED), o Doutor Victor Kajibanga apelidou de “jovens turcos”. Seriam então estes jovens livres de preconceitos políticos e unicamente interessados na causa dos estudantes que levariam a cabo a missão de enfrentar o MPLA em todas as suas formas de manifestação social como jamais tinha sido imaginado apenas para fazer valer uma manifestação legalmente aceite e democraticamente irrepreensível.

III. OS PROMOTORES DA MANIFESTAÇÃO

A necessidade de reestruturar uma Comissão Instaladora da AE-UAN decidida a avançar com a manifestação porém fragilizada pela dissidência das associações acima descritas e respectivos estudantes levou a incorporação de novos estudantes para reforço. Estes seriam Albano Pedro (4º ano da Faculdade de Direito), Adriano Cristóvão (4º Ano da Faculdade de Medicina), Adalberto Costa (2º ano da Faculdade de Economia) encontrando representantes das associações restantes, nomeadamente Gilberto Figueira (3º ano de Matemática e Presidente da Associação dos Estudantes do ISCED), Rafael Aguiar (3º ano de Sociologia e Secretário Geral da Associação dos Estudantes do ISCED), Luís Valente (4º Ano de Engenharia Civil e Secretário Geral da Associação de Estudantes da Faculdade de Engenharia), Celso Gomes (3º ano de Geofísica e Presidente da Associação dos Estudantes da Faculdade de Ciências), Paulo Aguiar (3º ano de Geologia e Secretário Geral da Associação dos Estudantes da Faculdade de Ciências). Formou-se então o núcleo duro que organizaria uma manifestação forçada pela situação generalizada de ameaça de greve dos professores na única universidade pública.

A denominação de “jovens turcos” dada por aquele renomado sociólogo e docente universitário angolano não foi por acaso. Em termos de verticalidade, dignidade e convicção era da melhor casta de estudantes da Universidade Agostinho Neto naquele ano. Cada membro tinha a fama de ter intervenções críticas e de difícil sustentação na sua respectiva faculdade contrariando as tendências de professores com fraco domínio académico durante as aulas ou fora delas bem como contra as debilidades do sistema de ensino e aprendizagem. Eram polémicos e reivindicadores natos que juntavam à suas características estudantis o facto de terem percepções sobre assuntos científicos que ultrapassavam o âmbito das suas formações. Argumentavam com propriedade e seus adversários evitam quaisquer formas de confronto verbal. Para liderar jovens com tais características, ainda por cima tendencialmente livres, era necessária uma liderança iluminada, convincente e não impositora. O que era difícil de descobrir entre os estudantes daquela época. Porém, o destino tinha colocado este líder mesmo no seio do grupo e a sua “química” arregimentou tais cérebros em torno de um projecto quase impossível de se concretizar numa sociedade fechada pela ditadura da anti-democracia. Este jovem foi Gilberto Figueira. Ele mesmo um líder nato. Sua capacidade de harmonizar posições e pensamentos difusos, podia ser fruto da orientação académica para as matemáticas, mas o que se sabe é que era unanimemente aceite a sua capacidade de liderança sem a qual, o grupo muito dificilmente teria protagonizado os feitos que iriam acontecer. O resultado desta rara liderança é que os membros, polémicos e muitas vezes irredutíveis nas suas posições individuais, conseguiram afunilar os seus antagonismos num pensamento que harmonizava as intenções nobres do grupo. Neste particular, eram famosos os debates irreconciliáveis entre Rafael Aguiar (já com têmpera de sociólogo experimentado), Adriano Cristóvão (Médico de forte vocação), Luís Valente (calculista produzido pela engenharia que cursava), Paulo Aguiar (com frieza de psicólogo refinado perdido num curso de Geologia), Celso Gomes (de veia humanista apurada), Adalberto Costa (Com a aura de um Filósofo, porém entregue ao curso de Economia) e Albano Pedro (jurista mais ou menos feito pelas intervenções que já fazia na imprensa) quando fossem viabilizar quaisquer actos que reflectissem a organização e funcionamento do grupo. As reuniões demoravam horas para serem reflectidas numa conclusão bem orientada pela capacidade de síntese e visão de um estudante de Matemática com forte instinto filosófico que era Gilberto Figueira. A ligação lógica, intelectual e sentimental era tal entre os membros que Adalberto Costa melhor interpretou o sentimento comum com as celebres palavras: “Não conheço outro ambiente de debates em que me sinta tão em casa!”. Era dos poucos espaços em que se podia exercer a liberdade de consciência e em que as pessoas se identificavam perfeitamente. Na verdade não apetecia abandonar as sessões. Uma sensação de liberdade que resultava do facto de a Universidade Agostinho Neto ter sido sempre controlada por uma forte censura política e partidária onde os estudantes eram intelectualmente manietados e como tal incapazes de exprimir livremente os seus pensamentos.

Gilberto Figueira trazia o seu carisma da liderança da Associação dos Estudantes do Instituto Superior de Ciências de Educação tida como a mais terrível das unidades orgânicas da Universidade Agostinho Neto. Era famosa por cruzar “espécies estudantis” completamente antagónicas na forma de ser e de estar. Vocacionada a ministrar cursos de forte implicação racional como Filosofia, Pedagogia, Sociologia, Psicologia, Matemática, etc., o ISCED tinha a virtude de comportar os mais famosos “alicates” (denominação dada à estudantes com a fabulosa missão de executar actividades de espionagem em nome do MPLA e dos serviços da bófia, muitos dos quais não eram estudantes efectivos, cumprindo ciclos académicos durante anos a fio como forma de vigiar a comunidade estudantil adversa ao regime) e os mais implacáveis polémicos (incentivadores de debates multifacéticos) em toda a comunidade estudantil da Universidade Agostinho Neto. Liderando uma lista, por si mesma antagónica, que misturava “alicates” com estudantes sérios ganhara as eleições para Presidente da Associação dos Estudantes do ISCED de forma incontestável demonstrando assim a sua vocação para conciliar o impossível. Apesar do antagonismo dos seus estudantes, o ISCED veio a tornar-se no bastião da rebelião contra as regras anti-académicas impostas a comunidade estudantil, espalhando a sua fama em toda a Universidade Agostinho Neto e não só, e incentivando as respectivas iniciativas. Por isso, tornou-se no local ideal para instalar o “Quartel-General” da Manifestação dos Estudantes e os seus líderes associativos tornaram-se imprescindíveis para a criação da Associação dos Estudantes da Universidade Agostinho Neto.

Embora, fossem acusados de gozar de apoios de partidos políticos da oposição, entre os membros do grupo estavam militantes e simpatizantes do MPLA que simplesmente acreditavam que o exercício de uma liberdade fundamental, como é o direito a manifestação, não podia ser confundido com actos de traição partidárias sobretudo por se tratar de reivindicar direitos como o dos docentes universitários com efeitos obrigatórios para os estudantes. A motivação moral e ética era tal que mesmo sem quaisquer apoios materiais externos o grupo resistia a todas as dificuldades no processo de implementação dos seus projectos.

IV. A REALIZAÇÃO DA MANIFESTAÇÃO

Na véspera da realização da manifestação havia a clara consciência de que o país tinha sido dividido em tendências contra e pró manifestação. Como consequência, de um lado estava o MPLA com todas as suas forças institucionais e partidárias (Governo, Polícia, comunicação social estatal, grupos de estudantes e professores universitários mobilizados, Governo Provincial de Luanda, etc.) e do outro o resto da sociedade (incluindo associações cívicas e partidos políticos da oposição) entregue a um silêncio de morte com visível receio de assumir um conflito com o Estado, tendo ficado patente a gigantesca hegemonia do partido-Estado. As consequências foram óbvias: O Governo Provincial de Luanda não se pronunciou ao pedido de realização de manifestação, a comunicação social estatal informava a opinião pública nacional e internacional que a manifestação dos estudantes universitários era completamente ilegal, a nova associação de estudantes composta por dissidentes orientados pelo MPLA desmobilizava os estudantes inocentes ou mal informados entre outros actos multissectoriais que demonstravam a força impositiva do MPLA contra o pequeno grupo de estudantes interessado na manifestação, Gilberto Figueira não teve a oportunidade de justificar a manifestação junto da Televisão Pública de Angola porque o espaço solicitado no programa Ecos & Factos então concedido acabou favorecendo intervenções da ala desmobilizadora, circulavam informações caluniadoras e difamatórias contra os membros do grupo. Este sabia que teria de contar com a unidade dos seus membros e com ajuda de Deus. Depois da campanha nefasta contra a manifestação desenvolvida na imprensa estatal pelos partidários do MPLA, havia ainda o esforço de mobilizar e manter firme as poucas centenas de milhares de estudantes corajosos que estavam na incerteza dos acontecimentos. Nessa noite o grupo viveu o maior terror de todas as fases de organização da manifestação. Receava-se desaparecimento físico de membros do grupo, dada a forte atenção que a sociedade mobilizada pelo MPLA tinha sobre o mesmo. Os membros decidiram não se separar até que a manifestação acontecesse e ficou determinado que se os membros morressem seria por uma causa justa. E assim foi o repto para lançar à rua a manifestação. Valeu a coesão do grupo e o MPLA e seus “artefactos sociais” foram ludibriados pela certeza que ganharam na noite anterior que estava estancada a iniciativa da comissão organizadora da manifestação, surpreendendo-se com a informação veiculada pelos líderes da manifestação nas primeiras horas da manhã do dia exacto junto da Rádio Ecclésia e LAC (Luanda Antena Comercial) de que a manifestação seria realizada fosse qual fosse o custo, numa altura em que nem mesmo aos organizadores se desenhavam esperanças de ver acontecer a famosa manifestação.

Quando o grupo se concentrou na parte externa da Faculdade de Economia tinha conhecimento que a manifestação não tinha sido autorizada pelo Governo Provincial que se fartou de anunciar publicamente e que os agentes da polícia estavam mobilizados para a reprimir a todo o custo. Os estudantes foram se aproximando ainda embebidos de incertezas até se formar um grande aglomerado humano de centenas de almas jovens. O roteiro consistia em levar um Manifesto dos estudantes, espelhando solidariedade com os professores e as preocupações dos estudantes decorrentes das actividades destes mesmos professores entre outros assuntos, à Reitoria da Universidade Agostinho Neto (situada no edifício do Hotel Le President Meridien na Avenida Marginal junto ao Porto de Luanda) e em seguida rumar para o Ministério da Educação (nas imediações da Rádio Nacional e TPA próximo do largo da independência) num percurso de alguns quilómetros que levaria a percorrer várias artérias da cidade de Luanda em pleno dia de trabalho com milhares de viaturas pulverizadas em engarrafamentos. Quando a marcha começou os estudantes eram já calculados em dezenas de centenas e a avenida Marginal ficou completamente preenchida de um lado ao outro não dando espaço para movimento a quaisquer veículos. A chegada à Reitoria foi pacífica e o contacto com os seus responsáveis ocorreu num ambiente de diplomacia. Contudo, verificava uma longa demora que levou alguns estudantes a suspeitar das intenções dos membros da Reitoria em arrastar gratuitamente o tempo dos líderes em cerimónias desnecessárias. Veio, porém a saber-se que o Governo Provincial de Luanda havia solicitado a Reitoria que entretesse os estudantes enquanto a polícia de choque (vulgo anti-motim) se deslocava para o local com o intuito de dispersar os estudantes inibindo-os de prosseguir com a manifestação. Quando as falsas cerimónias terminaram e a manifestação retomou o percurso (de volta a Faculdade de Economia e desta para o Ministério da Educação) já a Polícia estava a espera do grupo na avenida Marginal um pouco adiante do Ministério do Interior em direcção ao Porto de Luanda em que saiam os manifestantes. Deu-se então a interpelação. Um dos oficiais da corporação policial chamou pela liderança do grupo para dar a conhecer que a manifestação não podia acontecer por ordem do Governo Provincial de Luanda. Felizmente nesta altura já imprensa privada nacional (Rádio Ecclésia, LAC) e internacional (Voz da América, RTP África) fazia cobertura do evento numa espécie de relato de futebol.

A viabilidade da manifestação deu-se por erro administrativo do Governo da Província de Luanda que não curou de dar tratamento do requerimento a si dirigido pelo grupo de interessados pela manifestação. Operou-se então um fenómeno jurídico tecnicamente conhecido como “autorização tácita”. O que acontece sempre que a autoridade pública normalmente competente para autorizar a prática de determinado acto pelo particular não se pronuncia tempestivamente. Com efeito, a Lei Sobre o Direito de Reunião e Manifestação (Lei 16/91 de 11 de Maio) estabelece que a não notificação dos promotores da manifestação sobre a posição da administração é considerada como não havendo objecção para a realização da manifestação (art.º 7º). O Grupo beneficiou desta cláusula para realizar a manifestação ao arrepio dos condicionalismos antidemocráticos estabelecidos por Lei para a realização de manifestações públicas. Pois, se houvesse autorização nos termos da Lei, ela teria acontecido apenas no fim do dia (período pós-laboral) ou no fim-de-semana e em local bem determinado. Tal é a inconstitucionalidade desta Lei que quarta o exercício de uma liberdade fundamental. Felizmente, Deus favoreceu o grupo com a incúria habitual dos agentes da administração pública.

Todavia, a Polícia não estava interessada em ouvir os argumentos dos líderes do grupo suportados por documento comprovativo do pedido de manifestação protocolado pelos competentes serviços do Governo da Província de Luanda. Tinham orientações claras: Impedir a realização da Manifestação e ponto final. Começou então um jogo de “empurra-empurra” que levou os estudantes a pressionar a larga barreira policial até ao eixo-viário no Largo do Ambiente (imediações do Atlético Petróleos de Luanda). A falta de autorização para usar da violência levou a que os polícias cedessem a pressão de perto de mil estudantes tendo sido empurrados ao longo de quase um quilómetro de distância da zona de interpelação. Quando tudo parecia perdido para os polícias o grupo de manifestantes sentiu então a reacção militar com agentes a espancar os estudantes com coronhadas das armas e outros instrumentos de uso militar, granadas de fumos largaram-se sobre os ambientes de estudantes e uma grande zaragata se instalou. Uma nuvem de poeira e fumo misturou agentes da polícia e estudantes num clima de violência séria. Os agentes da polícia procuravam deter os líderes da manifestação enquanto os estudantes procuravam ripostar os ataques da polícia com pedras e utensílios diversos usados como armas improvisadas para enfrentar a força numerosa da elite policial angolana. Uma estratégia digna de estudantes universitários levou a que alguns estudantes em pequenos grupos fizessem coberturas localizadas para cada membro da direcção do grupo. Gilberto Figueira e Rafael Aguiar foram prontamente levados por um grupo de estudantes do ISCED, enquanto Celso Gomes teve o pulso preso e o corpo arrastado por estudantes da Faculdade de Ciências entre os quais se achava o seu irmão. Da mesma forma, Paulo Aguiar viu-se levado por um grupo de estudantes em meio a multidão. Albano Pedro teve a cobertura de um grupo de estudantes da faculdade de Economia entre os quais se achava o Amaro. O processo foi tão rápido, que em pouco minutos os líderes da manifestação estavam a salvo dos agentes da polícia e muitos destes agentes queixavam-se de dores pelo arremesso de pedras dos estudantes. Era a primeira vez que a Polícia de Choque enfrentava um grupo de manifestantes tendo sido posto aprova desde que fora criado no início dos anos 90.

A manifestação acabou dispersada, alguns colegas foram detidos e os líderes estavam a correr para novas posições para reconfigurar a situação e geri-la da melhor maneira. Rafael Aguiar foi parar no edifício das Nações Unidas para pedido de apoio, Albano Pedro seguiu com um grupo para a Rádio Ecclésia para denunciar as atrocidades e as detenções arbitrárias. Era agora o clima de perseguição que pairava sobre a liderança da manifestação. Era preciso procurar ajuda urgente contra quaisquer tentativas de violência subsequentes, incluindo prisões. Graças a presença da imprensa privada nacional e internacional as denúncias foram difundidas para a Comunidade Internacional. Em menos de 24 horas o jornal Washington Post tinha denunciado a violência contra os estudantes universitários angolanos nos Estados Unidos da América. A RTP África e muitos outros canais difundiram a informação e mundo rapidamente ficou a saber que MPLA conduzia um GURN com o braço de um ditador, violando as liberadades democráticas dos cidadãos. A Amnistia Internacional e outras organizações internacionais foram accionadas e o grupo (Liderança) pôde reunir-se novamente sem temer represálias junto do Ministério da Educação local de destino, exigindo a libertação dos estudantes detidos como condição dada ao Ministro que procurava conversar com os manifestantes. Associação Mãos Livres e alguns advogados independentes emprestaram a sua solidariedade na luta para a soltura de alguns estudantes detidos e estes acabaram soltos horas depois. Dentre os detidos é de referência obrigatória citar a Lizete, estudante da Faculdade de Direito que rapidamente atraiu atenção da comunidade nacional e internacional pela coragem que teve em libertar o Gilberto Figueira, enquanto líder da manifestação, das garras de um agente da polícia vindo a ser detida em troca. Formou-se então um cordão de grande solidariedade e os estudantes concentraram-se determinados a passar a noite em vigília até a soltura dos colegas. Perto das 18 horas os estudantes detidos foram soltos com ajuda prestimosa do Dr. David Mendes (Mãos Livres) que soube provar que havia falta de argumentos legais para a prisão preventiva que os instrutores da Direcção Nacional de Investigação Criminal defendiam e Lisete foi recebida como uma princesa. Nesta altura, repórteres de órgãos de comunicação social estatal (TPA e Rádio Nacional de Angola) aproximaram-se para reportar o sucedido, tendo sido expulsos a pedradas pelos estudantes furiosos com as manipulações que tinham feito na informação pública sobre as boas intenções da manifestação.

No dia seguinte ocorreu o encontro, adiado pela exigência de libertação dos estudantes detidos, com o Ministro da Educação representado pelo seu Vice-Ministro Mpinda Simão que recebeu o Manifesto dos Estudantes e tratou de esclarecer a situação da greve dos professores e as soluções encontradas entre outros assuntos. Graças a violência do Governo contra os estudantes universitários e o receio que pairou no ambiente dos governantes e chefes do partido no poder de sofrerem interpelações internacionais por violações de direitos dos cidadãos – ainda por cima estudantes universitários -, a greve dos professores foi levantada em consequência da repentina flexibilidade do Governo para com as reivindicações dos professores. Os estudantes saíram vitoriosos numa batalha de proporções políticas inconscientemente enfrentada por aqueles que não temeram ameaças de um regime anti-democrático. Finalmente, foi organizada uma conferência de imprensa no Centro de Imprensa Aníbal de Mello com a presença de uma comunicação social nacional e internacional. As sessões de perguntas e respostas foram animadas com intervenções multilingue (Português, inglês e Francês) dos líderes da manifestação para esclarecer as intenções simples e nobres dos estudantes que resultaram no grande incidente que foi a violência do Estado. O que se sabe é que as imagens captadas pela Televisão Pública de Angola durante toda a sessão da conferência de imprensa nunca foram apresentadas publicamente. Como aliás aconteceu com todo a manifestação cuja importância social foi pura e simplesmente ignorado pela imprensa estatal provocando um desconhecimento quase total na sociedade angolana sobre a sua ocorrência.

Este dia não é comemorado porque o grupo de estudantes que organizou a manifestação teve que fazê-lo contra os interesses do Governo e da maioria de estudantes presos por disciplina partidária imposta pelo MPLA e que ainda aterroriza a classe estudantil seja a que nível for. A tentativa de ver proclamada a data foi desde então inglória. De todo o modo, foi um verdadeiro marco histórico na luta pelas liberdades civis e motivo sustentador de muitas manifestações que passaram a acontecer.

No ano seguinte, uma nova manifestação de estudantes universitários foi organizada pela AE-UAN Associação dos Estudantes da Universidade Agostinho Neto (com os organizadores da anterior manifestação na direcção da mesma) pelos mesmos motivos, envolvendo centenas de milhares de estudantes, sem contudo acontecerem novos incidentes com a polícia. Esta pelo contrário, acompanhou a manifestação provendo segurança aos estudantes como manda a Lei. Embora tenha acontecido mais uma autorização tácita, o Governo Provincial de Luanda não estava interessado em provocar mais um clima de mal-estar com a comunidade internacional. Certamente, está manifestação terá sido a única que se conhece em que não foi usada violência a apesar de contrária aos interesses do regime. Fruto da grande vitória alcançada contra o Governo na manifestação anterior.

V. O MOVIMENTO UNIVERSITÁRIO

No intervalo entre as duas manifestações foram empreendidos vários esforços no sentido de extinguir a Associação dos Estudantes da Universidade Agostinho Neto liderada por Gilberto Figueira. Uma nova associação, com a mesma denominação, foi criada pelos dissidentes liderados por Bernardino Quaresma da Faculdade de Direito mantendo a base humana (Vasco Matemba, João Mulima, Manuel de Lemos, Domingos Mate, etc.) porém, reforçada por figuras recrutadas pelo partido como Victorino Mário (Faculdade de Direito), Jinga Niza (Faculdade de Medicina), etc. Vencidos no terreno da manifestação estudantil esta ala foi incentivada pelo MPLA a adoptar uma nova táctica: forçar a inclusão do grupo organizador da manifestação numa nova plataforma associativa em que os seus mentores estariam confortavelmente representados numa maioria mobilizada para o efeito. Impôs-se um impasse legal. Não era possível a existência de duas organizações com a mesma denominação, visto que a associação integrada pelo grupo organizador da manifestação tinha cumprido com os procedimentos legais que culminou com a sua legalização. Os dissidentes não tinham legitimidade para reclamar para si o direito sobre a denominação. Invocaram-se novos argumentos. A maioria dos estudantes, diziam, estava do lado da nova associação (todos mobilizados a partir das células do partido instaladas nas distintas faculdades). Surgiram novos debates com vista a eliminar o diferendo entre os dois grupos. São célebres os encontros marcados no Centro Social da Universidade Agostinho Neto (dirigido pelo mesmo Bernardino Quaresma que era igualmente funcionário da Reitoria da Universidade Agostinho Neto). Os argumentos invocados eram marcadamente jurídicos e os grupos mobilizaram os seus melhores agentes neste domínio. A força argumentativa e recheada de factos verosímeis de Albano Pedro (5º ano de Direito) derrubou de modo incontestável as manipulações técnicas sobre os factos veiculadas por Adão de Almeida (3º ano de Direito) em encontros que as duas delegações trocaram acusações fartas sobre assuntos diversos. Não podendo impor-se sobre o grupo organizador das manifestações a nova associação enveredou pela sua melhor táctica: infundir confusão no seio da comunidade estudantil universitária com argumentos de que os estudantes ligados à verdadeira associação eram manipulados por partidos políticos da oposição e como tal veiculavam programas e projectos estranhos aos estudantes. Argumentos utilizados igualmente na táctica difamatória adoptada pela UNE-ANGOLA (liderada por Domingos Mate da Faculdade de Economia), enquanto agremiação congregadora de todas as associações estudantis angolanas que nela se revissem. O que veio a inibir um número significativo de estudantes (mais emotivos do que racionais) em aderir às causas defendidas por esta associação, sem contudo provocar qualquer desânimo aos seus dirigentes já “calejados” com as intempéries da primeira manifestação. O grupo prosseguiu sempre coeso para outras frentes empreendendo projectos confederativos com outras associações ligadas à universidades privadas prevendo um movimento universitário nacional inclusivo e verdadeiramente consciente do seu papel na comunidade estudantil universitária angolana.

Não fartos das perseguições políticas em que se tornaram autênticos “experts”, Bernardino Quaresma e seus correligionários entenderam, já depois da segunda manifestação estudantil, penetrar nas hostes da Associação dos Estudantes da Universidade Agostinho Neto através da participação no seu processo eleitoral, introduzindo para o efeito estudantes “parasitas” (entre “alicates” e traidores de vocação) que pudessem inviabilizar a reeleição de Gilberto Figueira e seus pares. Aconteceu que foi escolhido para liderar a Comissão Eleitoral Albano Pedro, uma vez que era o único promotor da manifestação estudantil sem perspectivas de assumir quaisquer cargos na associação. Ele mesmo com um historial interessante neste domínio. Um ano antes havia liderado o processo eleitoral na Faculdade de Direito que conduziu a eleição de Bernardino Quaresma ao cargo de Secretário-Geral da Associação dos Estudantes em que este derrotou a forte presença de Adão de Almeida em representação de uma outra lista apoiada pelo Secretário-Geral cessante. Devido a forte ligação partidária de Adão de Almeida (sobrinho de Roberto de Almeida, então-Presidente da Assembleia Nacional) era esperado que a sua lista ganhasse as eleições contra um Bernardino Quaresma visivelmente amedrontado pelas “patentes” do concorrente. O segredo estava na organização eleitoral. Eram necessários homens de confiança e próximos por razões de afinidade no nível do curso. Albano Pedro foi escolhido por ser colega de Bernardino Quaresma pelo grupo de estudantes com maior ascendente sobre a associação e por se achar entre os estudantes de nível avançado, que por tradição são solidários com a sua classe quando se tratar de espezinhar caloiros ou estudantes de níveis mais abaixo. Contudo, o processo eleitoral foi de tal ordem organizado que não houve o mínimo espaço para a fraude ou qualquer favorecimento. O irónico é que tinha sido escolhido por grupos simpáticos ao Bernardino Quaresma que esperaram “facilidades” no processo eleitoral. Porém, a ala de Bernardino Quaresma por pouco perdia a possibilidade de participar das eleições por não preencher alguns requisitos exigidos pelo Regulamento Eleitoral. Solicitou em vão a compreensão da Comissão Eleitoral acabando por procurar fórmulas de última hora para superar as insuficiências apontadas. Veiculou-se então a fama do rigor imprimido por Albano Pedro, seguindo-se epítetos generalizados como “o incorruptível”, “o carrasco” entre outros. Ao conduzir o processo eleitoral ao nível da Associação dos Estudantes da Universidade Agostinho Neto, Albano Pedro era mais uma vez o pesadelo de Bernardino Quaresma e seus correligionários na nova tentativa de assaltar a Associação dos Estudantes da Universidade Agostinho Neto. Todas as tentativas de sabotagens e manipulações foram vãs diante da extraordinária e impressionante transparência do processo eleitoral. Dentre os actos de sabotagens consta a tentativa de Domingos Mate (Presidente da Associação dos Estudantes da Faculdade de Economia e da UNE-ANGOLA) de persuadir os estudantes da faculdade de economia a absterem-se de participar do acto eleitoral, impedindo inclusive a delegação eleitoral que ali tinha sido instalada. Os factos chegaram aos ouvidos de Albano Pedro que prontamente se deslocou para aquela unidade orgânica com objectivo de exigir justificações do Presidente da respectiva associação. Sabe-se que quando Domingos Mate apercebeu-se através dos “alicates” da sua associação que Albano Pedro estava a caminho, pôs-se a fresco sem dar satisfações aos seus correligionários que acabaram sendo “achincalhados” pela conduta desordeira manifestada. Tal era o temor sobre o Presidente da Comissão Eleitoral que se tinha espalhado pela Universidade Agostinho Neto através da ala de Bernardino Quaresma.

Gilberto Figueira foi reconduzido à liderança da AE-UAN por aclamação da comunidade estudantil universitária sem quaisquer facilidades da Comissão Eleitoral que até instou a lista em que se achava candidato para cumprir com um requisito que a mesma julgava insignificante para tamanha exigência que se impunha. Terá sido Rafael Aguiar a manifestar que os membros da lista que representava estavam arrependidos de ter confiado Albano Pedro para Presidente da Comissão Eleitoral pelo excessivo rigor que impunha no processo. A comunidade universitária teve a oportunidade de participar de um processo visivelmente transparente que levou a derrota a ala de Bernardino Quaresma apesar das dificuldades organizativas impostas pelas associações das faculdades hostis ao grupo organizador da manifestação.

VI. FIM DA LIDERÂNÇA DO MOVIMENTO UNIVERSITÁRIO

Os “jovens turcos” estavam em fim de carreira universitária (quase todos finalistas de licenciatura dos respectivos cursos) perdidos entre o afinco para o término dos cursos e a necessidade de manter a força do movimento estudantil na universidade. Era necessário transmitir o “know-how” para as novas gerações de estudantes universitários. Mas, os líderes não se fazem, nascem. As circunstâncias históricas e seus condicionalismos propõem as suas próprias lideranças escolhidas entre aqueles que apelam pelos valores da alma em detrimento das necessidades materiais. Conheceu-se então uma fase de estudantes universitários conformados com a necessidade de favorecimentos de acesso a cargos públicos no fim do curso e com ela a necessidade de manifestações foi recalcada. Deste modo, com o fim do consulado de Gilberto Figueira a testa da Associação dos Estudantes da Universidade Agostinho Neto terminaram as manifestações neste subsistema de ensino, o que não impediu que o seu sucessor no cargo de Chanceler Geral, Rafael Aguiar, sustentasse iniciativas do género ao nível do ensino médio. Assim é que, em 2004 e 2005, alunos do ensino médio encabeçados por Nfuca Mfuacaca Muzemba (Líder do MEA - Movimento dos Estudantes Angolanos) protagonizaram manifestações para reclamar passes sociais de acesso aos transportes públicos para estudantes, ambas fortemente reprimidas por um aparato policial mais determinado em estancar reivindicações de estudantes a força, arrastando milhares dos seus integrantes em confusão com a polícia tendo resultado em danos provocados em autocarros públicos e detecção dos seus líderes. De lá prá cá, não se tem ouvido mais actos do género, embora os problemas decorrentes do ensino universitário ou médio se agravem de ano após ano.

É de referir que o consulado de Rafael Aguiar já não viveu as intempéries provocadas pela ala de Bernardino Quaresma e seus correligionários. Com o fim das manifestações de estudantes universitários o MPLA perdeu interesse em “patrocinar” os seus sabotadores e estes perderam o protagonismo social que tinham em virtude do combate que levavam a cabo contra a Associação dos Estudantes da Universidade Agostinho Neto. Como consequência a associação criada para o efeito perdeu importância estratégica para os seus mentores, o que ditou o fim de todo o movimento universitário da época. Para que as novas gerações de estudantes universitários não pensem que esperam ser pioneiros nestas lides, aqui fica um testemunho. E espera-se que aqueles que tenham vivido os acontecimentos aqui narrados venham a enriquecê-los com novos detalhes e factos não citados de modo a termos uma História cada vez mais completa sobre as manifestações de estudantes em Angola.



Viana, 13 de Outubro de 2010. (fontes relacionadas: http://www.nexus.ao/view.cfm?m_id=6642&cat_02=NOTICIAS )

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

ESTADO DA NAÇÃO

ANTEVISÃO DE UM PROJECTO DE SOCIEDADE CONTRA OS ANGOLANOS


Albano Pedro


Desde as eleições legislativas de 2008 que assistimos a implementação de um programa fundamentalmente económico em detrimento de programas sociais em que o povo seja privilegiado com soluções concretas no domínio da educação, saúde e protecção civil de um modo geral. Percebe-se hoje, que o programa de um milhão de casas é um projecto imobiliário destinado a comercialização para beneficiar uma minoria, enquanto os habitantes dos inúmeros muceques em Luanda e no resto do país não cabem em nenhum programa habitacional por falta de capacidade de compra. Mesmo que a venda das unidades habitacionais se situe abaixo do anunciado 60.000 (sessenta mil) dólares certamente não será acessível para quem vive em Luanda nos bairros dos Ossos, Sambizanga, Marçal, Mabubas, Quarto de Banho, Petrangol, Cazenga, Cariango, Mabor, Terra Vermelha, Cassequel do Lourenço ou do Buraco, Palanca, Sapú, Kapalanca, Simione, Madeira, Precol para citar apenas alguns. Sequência de uma encenação diabólica que começou com o empobrecimento do povo através da economia centralizada e que conhece novas etapas com demolições de casas em todo o país diante de um povo sem perspectiva de empoderamento devido a falta de abertura do sector privado da economia que recupere para si toda actividade informal.

A economia gravita em redor de um Estado que se julga com soluções para todos os problemas dos cidadãos. Um Estado paternalista que insiste em empregar toda a gente e a manter o povo numa mendicidade permanente (com salários baixos e altas taxas de corrupção institucional) enquanto se propõe a investir em sectores vocacionais da iniciativa privada (novas centralidades, redes de lojas Nosso Super, Fazendas agropecuárias, etc.). O que obriga parte do povo, não burocratizável, a refugiar-se numa economia paralela ou informal como forma de fugir a omnipresença do Estado na economia. Do ponto vista formal o sistema económico angolano começou os seus primeiros passos para a iniciativa privada e livre concorrência nos idos anos 80 quando foram introduzidas as políticas de saneamento económico ao que se sucederam as leis do Redimensionamento Empresarial e das Privatizações em resposta a inoperância das nacionalizações enquanto emanação económica soberana assumida no âmbito das opções económicas fundamentais. De lá pra cá, centenas de leis do domínio económico foram aprovadas sem grande relevância para o funcionamento da economia real. Hoje, na III República quando se esperava nascer a verdadeira reforma económica pela transferência do protagonismo directo do Estado para os particulares, assiste-se ainda a um estranho esforço de reinvenção do sector empresarial do Estado. Fala-se de empresas públicas (para exploração de bens e serviços de difícil acesso aos particulares) e de empresas do domínio público (para concorrer com os particulares explorando os mesmos bens e serviços). Esta última versão de empresas públicas é uma triste reinvenção das antigas EMPAs e ENCODIPAs que nos tristes anos 80 atestaram a incapacidade do Estado em controlar o comércio de bens e serviços básicos para as populações. Renascem numa altura em que a Lei das Delimitação das Actividades Económicas, muito inovadora, liberta muitos dos sectores da economia, antes tidas como reserva absoluta do Estado, para o domínio da actividade empresarial privada. Quando a exploração da televisão, radiodifusão, transportes marítimo e aéreos de longo curso e muitas outras actividades estratégicas são legalmente transferidas para o domínio privado, não faz sentido ter um Estado a procurar concorrer com os particulares sob pena de abandonar as suas áreas de vocação como a construção de infra-estruturas técnicas e viárias, pontes e equipamentos sociais e mesmo até a saúde, educação e a protecção civil, como tem acontecido.

Está claro, que o Executivo não quer libertar a economia privada enquanto espaço de realização dos indivíduos, a partir do qual o problema da pobreza e crise de valores sociais seriam rapidamente resolvidos pela expansão do nível de emprego e enriquecimento dos indivíduos. O povo continua a ser vítima de manobras estranhas que levam o Estado a concentrar todas as oportunidades e soluções sociais. Não se compreende por exemplo que a Bolsa de Valores e Derivados de Angola há muito anunciada não sai do papel, quando se sabe que esta instituição constitui a alavanca a partir da qual toda a economia privada começaria um ciclo de crescimento vertiginoso com a estruturação do mercado financeiro onde produtos financeiros do Estado (títulos de dívida pública, bilhetes do tesouro, etc.) e da economia privada (obrigações, acções, etc.) seriam transaccionados criando capacidade de investimento e diversificando fontes de financiamento para as empresas privadas para além de desencadear um conjunto de serviços (empresas e instituições financeiras, agentes e especialistas ligados a imediação de valores mobiliários) por si potenciadores de centenas de postos de trabalho. Da mesma forma o empresariado angolano, fraco mas persistente, assiste impotente a uma política fiscal arrasadora, onde o Imposto Industrial está fixado em 35% para além de centenas de taxas e impostos, ou desnecessários ou exagerados; uma política de investimento privado excessivamente burocrática em que a legalização de empresas é a coisa mais difícil de realizar e o investimento estrangeiro encontra todos os factores inibidores possíveis; uma política aduaneira com muitas taxas desencorajadoras para tudo que não se produz em Angola e não definida para a região da SADC em favor dos angolanos e suas empresas; Uma política de crédito inexistente porque o Estado tornou o sector bancário seu parceiro comercial privilegiado ao ponto deste perder interesse de operar com os particulares; Uma política fundiária que não confere possibilidade de titularidade dos terrenos de cultivos para constituição de meios de garantias bancárias em caso de concessão de crédito ao campo; enfim, um conjunto de dificuldades e obstáculos conscientemente “plantados” para entravar a expansão da economia privada. Por isso, é quase certo que no discurso à Nação, não se falará da economia privada, ao invés e como de hábito, o esboço discursivo da Nação desenhará as realizações públicas incluindo os fracassos inultrapassáveis, lardeando a velha mensagem de que o Estado tudo pode tudo deve diante de um povo cansado de paternalismos.

(Texto em alusão ao primeiro discurso do Chefe de Estado à Nação elaborado a pedido de Tandala Francisco, Director Geral do Semanário A CAPITAL)

GOVERNADOR DA HUILA VERSUS SINDICATOS

A QUESTÃO DA OFENSA À HONRA E AO BOM NOME



Albano Pedro



A propósito da disputa entre o Governador da Província da Huila e os Sindicatos associados (SINPROF e CEGESILA) em torno das reivindicações dos professores, constou-nos de forma algo imprecisa, por falta de certeza dos factos e provas, que durante as manifestações destes foram proferidas palavras insultuosas tais como “Isaac dos Diabos” e outras tidas como atentadoras contra a honra e o bom nome da pessoa do Governador, facto que levou esta ilustre entidade a exigir retratação pública sob pena de acção judicial para responsabilização dos mesmos. Ao que nos obriga a algumas considerações sobre o caso, a guisa de hipótese jurídica por manifesta incerteza dos acontecimentos assim descritos. Coloca-se a questão de saber como são apuradas as ofensas morais, quando estas ocorrem e a quem responsabilizam, visto que entre miríades de factos e fenómenos sociais, há que assentar que nem todos têm relevância jurídica e dentre estes muito poucos tem dignidade de factos judiciáveis ou judicialmente exigíveis.

Como tudo parece girar a volta da ofensa à honra e ao bom-nome da pessoa do Governador e outras entidades (conforme se lê na última página da Nota de Esclarecimento Público do Gabinete do Governador assinada pelo seu titular), parece de grande valia navegar sobre tais conceitos legais e suas consequências. Vale antecipar que o Direito não se presta a quaisquer dizeres para admiti-los como relevantes pelo simples facto do seu visado assim entender. Há requisitos para que um facto seja idóneo nesse prisma. Um destes requisitos, provavelmente o mais importante, é a susceptibilidade de tais factos causarem prejuízos à pessoa visada. Vem daí que nem todas as palavras insultuosas sejam relevantes para o Direito por lhes faltar idoneidade para causar prejuízo. Por exemplo: chamar um governante como sendo corrupto ou ladrão, quando se sabe publicamente que a sua gestão não é parcimoniosa, mas pelo contrário, publicamente danosa, não provoca quaisquer repulsas aos seus parceiros de negócios que até andam a ele ligados pela sua “habilidade” em justificar saídas financeiras impossíveis, muito menos diminui a capacidade patrimonial dos seus dependentes que até se orgulham de ter um membro da família que se serve gratuitamente do erário público. Neste caso não haverá qualquer prejuízo, nem material (perda de negócios) nem moral (perda de consideração da sua personalidade) junto destes mesmos parceiros ou parentes. O exemplo serve para apresentar o conceito jurídico de ofensa do crédito ou do bom-nome que releva apenas os factos susceptíveis de causar prejuízo ao seu visado (art.º 484º - Código Civil) a partir do qual todo aquele que o pratica fica sujeito a reparar os danos causados. Porque o prejuízo tem de ser avaliado em termos de danos efectivamente causados.

O conceito jurídico de bom-nome não se confunde com o conceito de nome. Não é juridicamente relevante confundir alguém que se chama João Machado com um outro que se chama João Alfinete, ou apelidar alguém que orgulhosamente se chama Machado por Catana levando-o a irritar-se, por exemplo. O direito não presta qualquer atenção à plasticidades humorísticas emprestadas aos nomes por quem tenha apurado senso de humor, porque a preocupação de fundo são os valores (verticalidade, probidade, pontualidade, honradez, etc.) que estão por trás de quem titula o nome e não este em si. É por isso que quanto mais digno e socialmente aprumado é o cidadão ou entidade visada maior é sanção infringida à quem ofende (art.º 414º - Código Penal). E faz sentido. Por exemplo: chamar vadio a um louco ou demente manifesto não tem certamente o mesmo impacto emocional como chamar vadio a um pároco. Porque a importância moral desta entidade religiosa na comunidade em que se insere é fundamental para a orientação ética das pessoas que lhe reconhecem os atributos de homem de bem e de virtudes. Saber que o pároco é um vadio (mesmo sem prova) constitui motivo suficiente para as mães retirarem os filhos da catequese sob a sua orientação causando manifesto prejuízo ao seu ministério e à vocação dos petizes. Compreende-se a dimensão ontológica do conceito de ofensa sob o prisma do Direito?

Indo nos arcanos da hermenêutica jurídica para fazer nascer a luz do esclarecimento o problema em apreciação urge colocar a mesa o facto dos crimes de injúria, calúnia e difamação serem, do ponto de vista conceitual, incipientes nas Leis penais porque ganham sustentação nas leis civis que reconhecem nos factos que lhes subjazem a susceptibilidade de causarem prejuízo. Vem daí que enquanto tais factos, quando verbais, configurarem crimes não carecem de provas (art.º 410º - Código Penal), porém como delitos civis carecem de serem provados (art.º 342º - Código Civil) por visível senso de complementaridade das duas formas de tutela jurídica. É por isso que, nos parece duvidoso que a utilização humorística de nomes com fim de exaltar a chacota ou a “boa gargalhada” seja vista como ofensivo ao bom-nome. Ser chamado Diabo ou Santo, Anjo ou Demónio não modifica nem o carácter nem o comportamento de quem é chamado por tais nomes tão pouco afecta moralmente ou materialmente as pessoas que as circundam. A utilização humorística dos nomes pode ter relevância satírica ou mesmo caricaturesca levando a exaltação do humor de quem ouve ou lê, porém não leva ao descrédito social, ético ou moral a pessoa visada e como tal não surgem quaisquer prejuízos de cujos danos sejam de reparar.

Também é de precisar que as pessoas jurídicas (organizações sindicais, no caso) não cometem crimes (societas delinquere non potest) e como tal não podem ser responsabilizadas. Porém, podem sê-lo para efeitos de reparação de danos morais ou materiais. Neste caso, os danos efectivos têm de ser provados e as pessoas concretas que os tenham provocado devem ser identificadas. De todo o modo, mesmo que o ilustre Governador queira relevar tais insultos pretendendo que sejam judicialmente relevantes ainda tem a tarefa de determinar as pessoas que os proferiram, pois a Lei Sobre o Direito de Reunião e de Manifestação (Lei 16/91 de 11 de Maio) responsabiliza os infractores de forma individual (art.º 14º, n.º 5) quer criminal quer civilmente. Daí que o pedido de desculpas públicas pretendido pelo Governador seja uma faca de dois gumes. Se por um lado visa proporcionar aos possíveis actores a possibilidade de serem agraciados pelo perdão benevolente do Governador, por outro lado tais indivíduos arriscam-se a denunciarem-se como infractores confessos. Neste último caso, o Governador pode não prescindir do seu direito de recorrer judicialmente determinado que estejam os infractores. De resto, em ambientes de bajulação como são o do exercício de cargos públicos, existem conselheiros suficientes para engendrarem ardis desta natureza, levando a que pessoas imbuídas de comportamentos infantis – como a maioria dos “graxistas” que não faltam em manifestações do género – caiam em tamanhas façanhas arcando com as correspondentes consequências jurídicas ao invés de obterem os benefícios imaginados ou mesmo prometidos.