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    quarta-feira, 24 de junho de 2009

    A DEMOLIÇÃO DA FEIRA NGOMA EM LUANDA

    ANÁLISE DO PROCEDIMENTO DO GOVERNO DA PROVÍNCIA DE LUANDA

    Albano Pedro*


    A SITUAÇÃO

    Em Luanda, para quem segue a avenida dos combatentes em direcção ao prédio sujo do Marçal pode ver que foi demolida a Feira Ngoma e com ela casa de Kim Zé e dezenas de outros estabelecimentos comerciais. Para quem não conheceu a Feira Ngoma por dentro, a casa de Kim Zé era sem dúvidas o melhor restaurante do local. Um espaço requintado cujo serviço conduzido pelo próprio Kim Zé transparecia competência e capacidade organizativa em hotelaria. De resto a sua inquestionável experiência em restauração conferiram-lhe a autoridade de lidar com a cozinha e todos os serviços conexos. Era a casa – para mim – que servia o melhor Peito Alto da cidade de Luanda. Sendo frequentador assíduo do espaço, vi naquele local ao longo de mais de dois anos gente importante entre políticos, generais, comissários de polícia, deputados, escritores, músicos, empresários, Intelectuais entre pequenas e grandes individualidades a frequentar o local. Tal era a qualidade da clientela em função dos serviços marcados sobretudo pela culinária angolana. O que é marcante é que nos últimos seis meses Kim Zé fizera avultados investimentos no local. Reformou o espaço e conferiu-lhe um ar de luxo – desenvolvendo um serviço diário de self-service (buffet permanente) com variedade de bebidas – onde não faltava um vinho tinto francês que só via no seu estabelecimento e que eu muito gostava de tomar quando lá fosse comer o meu bom peito alto com funji. Caiu a Feira Ngoma e com ela nasceram as grandes preocupações de Kim Zé e de dezenas de outros pequenos empresários. Como pagar o crédito cedido para a reforma do espaço? Onde me instalar para continuar a única actividade que desempenho com competência? Como resolver o problema dos trabalhadores que deixam de trabalhar sem culpa?

    Até quinta-feira passada (altura em que foi anunciada a sua demolição pela imprensa – Jornal de Angola) Kim Zé era um proprietário normal como nos outros dias – ciente de que haveria lugar a demolição mediante negociação com o “titular” da feira Ngoma que de todos os feirantes cobrava preços regulares pelo arrendamento de espaços no local. Aguardava assim pela competente solução da situação que se arrastava há meses. Eu sabia pelo Kim Zé que um grupo de empresários anónimos compraria o local para edificar torres para escritórios e residências e que a negociação estava a ser levada a cabo com os representantes da organização que explorava a Feira Ngoma e que eles – os comerciantes – aguardavam pela solução que seria dada a todos os proprietários dos estabelecimentos instalados no local. Havia mesmo uma proposta interessante: os novos proprietários cederiam espaços para que os actuais feirantes, querendo, continuassem as suas actividades, estando contemplado no projecto imobiliário um centro comercial para o efeito. Nesta quinta-feira, após o meu habitual peito alto com funji e o bom vinho francês saí tarde do local tendo inclusive conversado longamente com Kim Zé – não sabendo que era pela última vez que o fazia na qualidade de cliente assíduo da casa. Espantou-me saber que a demolição operou-se na segunda-feira sem qualquer negociação ou contacto com os feirantes e que os argumentos aduzidos foram de que o local era usado para a prática de prostituição entre vários actos imorais e ilícitos, para além de que os feirantes estavam em condições ilegais.

    JUIZO DE LEGALIDADE

    Tudo indica que o Governo da Província de Luanda (GPL) sensibilizou a população circundante a Feira Ngoma com argumentos de que o local era explorado para a prática de actos imorais e ilícitos para levar a cabo a operação de demolição sem as contrariedades que teve quando protagonizou o mesmo acto em relação aos moradores da Ilha de Luanda aquando da situação das calemas alegando o perigo deste fenómeno tão natural quanto cultural entre os ilhéus. A maioria dos moradores da Avenida dos Combatentes e das pessoas pela Angola fora, caiu que nem patinho, nesse conto de fada apoiando prontamente a acção do governo que foi executado ante a surpresa dos feirantes.

    Mesmo que os feirantes se encontrem em situação de ilegalidade e que no local sejam desenvolvidas actividades ilícitas e imorais a demolição operada pelo GPL é completamente ilegal pelo seguinte:

    1. Não tendo havido qualquer negociação ou contacto com os feirantes a acção do GPL justificar-se-ia na base do Privilégio de Execução Prévia – instrumento legal que permite que em situação de emergência ou qualquer outra devidamente justificada a Administração Pública desenvolva acções sem a colaboração directa dos particulares visados, sacrificando os seus direitos e interesses;

    2. O GPL estaria no uso deste instrumento legal de emergência se observasse os princípios cardeais do procedimento dos órgãos da administração pública constantes do Decreto-Lei 16-A/95 – Normas de Procedimento e da Actividade Administrativa – NPAA dos quais destacamos o Principio da Legalidade (art.º 3º), o princípio da Prossecução do Interesse Público (art.º 4º) o princípio da Proporcionalidade (art.º 5º), princípio da Colaboração da Administração com os Particulares (art.º7º) entre outros que devem ser cumulativos dentro da acção da administração pública em que se inscrevem os actos de gestão pública do GPL;

    3. Ao não notificar os feirantes – fazendo mediante um anúncio genérico pela imprensa – o GPL violou – como acontece quase sempre – o princípio da colaboração da administração com os particulares nos termos do qual “ No desempenho das suas funções os órgãos da Administração Pública, devem actuar em estreita colaboração com os particulares, cabendo-lhes nomeadamente: a) prestar informações e esclarecimentos; b) receber sugestões e informações” (art.º7º - NPAA). Viria do cumprimento deste princípio a necessidade de o GPL reunir com os feirantes e acertar com eles as melhores soluções pós-demolição;

    4. Mesmo que não existam direitos subjectivos (títulos de propriedade imobiliária, contratos de arrendamento, licenças comerciais, etc.) existem contudo interesses legalmente protegidos. Estes interesses vem em geral na Lei Constitucional nos termos da qual “ O Estado deve criar as condições políticas, económicas e culturais necessárias para que os cidadãos possam gozar efectivamente dos seus direitos e cumprir integralmente os seus deveres” (art.º 50º) entre outros interesses legalmente protegidos;

    5. Por violação de interesses legalmente protegidos o GPL viola sobretudo o princípio da proporcionalidade nos termos do qual “As decisões dos órgãos da Administração Pública que entrem em choque com os direitos subjectivos ou interesses legalmente protegidos não podem afectar essas posições em termos desproporcionais aos objectivos a atingir” (art.º5º - NPAA), pois ao sacrificar interesses sem a correspondente compensação o GPL teve uma actuação desproporcional ofendendo gravemente um outro princípio: o da prossecução do interesse público que determina que “ Aos órgãos administrativos cabe prosseguir o interesse público, no respeito pelos direitos e interesses dos cidadãos.” (art.º 4º - NPAA);

    6. Acresce-se que os actos imorais não têm relevância jurídica, estando ao critério subjectivo das comunidades, pelo que o GPL nunca deve fundamentar a sua acção neles. É o que se passa com a prostituição que no nosso ordenamento jurídico não constitui actividade ilícita. Não existem normas que a proíbam. Outrossim, não houveram provas concretas para as alegadas actividades ilícitas para além de que nunca houve uma notificação sequer dirigida aos feirantes a propósito – sobretudo pela polícia que teve um posto móvel aí montado por longos meses. Quanto a ilegalidade das actividades dos feirantes, onde esteve o GPL ao longo destes anos todos em que os feirantes aí desenvolviam as actividades comerciais?


    CONCLUSÃO

    Tendo violado a Lei representada pelo Princípio da Legalidade o GPL oferece aos feirantes a possibilidade de impugnação dos seus actos com fundamento no art.º 43º da Lei Constitucional nos termos do qual “Os cidadãos têm o direito de impugnar e de recorrer aos tribunais, contra todos os actos que violem os seus direitos estabelecidos na presente Lei Constitucional e demais legislação”. A Lei fala em impugnação – como mecanismo de abordar o órgão que praticou a acção através da reclamação e do recurso hierárquico – e em recorrer aos tribunais sobre os actos praticados pelos órgãos administrativos. Fala portanto em recurso gracioso e recurso contencioso para questões administrativas e fala em interpelação extracontratual e recurso judicial cível em matéria de Responsabilidade Civil para efeitos de reparação dos danos morais e patrimoniais provocados pelo GPL aos feirantes.

    Para o recurso gracioso em matéria administrativa – impugnação da ilicitude do acto administrativo (da decisão tomada em si) –, os feirantes têm de requerer (em petição colectiva se necessário) ao GPL que repare sponte sua (voluntariamente) os danos causados com a demolição da Feira Ngoma. No prazo de 8 dias o GPL deve pronunciar-se (art.º 41º - NPAA), salvo excepções legais sugeridas pelo caso em apreciação. A partir daí há lugar a uma relação de contactos correndo como recurso gracioso que ganha limite máximo com recurso hierárquico quando necessário. Finalmente, se o GPL manter a posição de irreverência ante a ofensa do princípio da Legalidade restará aos feirantes o recurso contencioso de anulação do acto praticado pelo GPL junto do tribunal competente para que uma vez anulado o acto praticado pelo GPL este venha a repor a situação que haveria se não houvesse a demolição, praticando os actos devidos.

    Outra via, das mais objectivas e seguras, é a do recurso judicial cível, aquela que obriga o Estado a reparar directa e imediatamente os danos que causa, através dos seus órgãos, agentes ou representantes, aos particulares (art.º 501º - Código Civil), contando que actividade danosa esteja no âmbito da gestão privada do GPL. Com esta acção os feirantes interpõem uma acção junto do tribunal contra o GPL para que este uma vez condenado repare os danos morais e patrimoniais que causou aos feirantes. Nada impede que o processo cível seja concomitante ao contencioso administrativo, sendo de aconselhar que enquanto corre o procedimento administrativo gracioso (negociação com o GPL) os feirantes podem desenvolver as demarches para a constituição de advogado para que seja proposto um processo cível em matéria de responsabilidade civil, para que num prazo não longo sejam reparados os danos e os feirantes retomem as suas actividades com capacidade financeira, se possível acrescida pela reparação dos danos morais e patrimoniais (incluindo nestes o dano emergente e o lucro cessante). Quod Erat Demonstrandum.

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