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    domingo, 25 de janeiro de 2009

    O ERRO MÉDICO
    E A RESPONSABILIDADE DECORRENTE DO EXERCÍCIO DA MEDICINA

    Albano Pedro*

    (Texto publicado no semanário A CAPITAL)

    Já na antiguidade se verificava a preocupação sobre a responsabilidade decorrente da actividade do Médico. O Código de HAMURABI previa inter alias disposições como «Se um médico trata alguém de uma grave ferida com a lanceta de bronze e o cura ou se ele abre a alguém uma incisão com a lanceta de bronze e o olho é salvo, deverá receber dez siclos.» ou «Se um médico trata alguém de uma grave ferida com a lanceta de bronze e o mata, ou lhe abre uma incisão com a lanceta de bronze e o olho fica perdido, dever-se-lhe-á cortar as mãos.» ou ainda «Se o médico trata o escravo de um liberto de uma ferida grave com a lanceta de bronze e o mata, deverá dar escravo por escravo.». Dados da Mitologia Grega apontam para um cuidado especial neste sentido, no nascimento da Medicina, quando Apolo ordenou ao Centauro Quiron que ensinasse a Asclépios, filho de Zeus, a curar as doenças dos homens, utilizando “fármacos suaves” ou “incisões adequadas” donde PHARMAKON com o duplo sentido de medicamento e veneno, entendido modernamente como “droga”. O monumental código deontológico de Hipócrates que estabelecia o juramento do profissional de medicina como condição da sua felicidade ou desgraça profissional definiu parâmetros meticulosos sobre a responsabilidade do Médico. Na África sub-sahariana pré-colonial, os sangradores (especialistas em aplicação de ventosas e sanguessugas), parteiras tradicionais, xinguiladores, curandeiros e outros especialistas de medicina vulgarmente conhecida como tradicional eram facilmente convertidos em malfeitores catalogados como feiticeiros e como tal sancionados se dos seus actos decorressem prejuízos graves, irreversíveis e não justificáveis contra a integridade física do paciente. Com a colonização, os sangradores e curandeiros em contacto com a civilização europeia passaram a expandir o exercício dos seus ofícios mediante licenças concedidas pela administração sanitária pública para controlo e responsabilização dos mesmos.

    Entretanto, ao longo dos séculos o mundo se recusou a tipificar em pautas normativas específicas com carácter de Lei a responsabilidade do Médico decorrente da sua actividade. Por um lado, porque até a implantação do Estado Constitucional, a defesa de direitos era monopólio do poder dominante. Por outro lado, porque apenas com a chegada do moderno processo a prova passou a ser a base de validade efectiva na defesa de direitos. Haverá que reflectir igualmente que este profissional foi sempre visto como um semideus; aquele a quem cabe o papel de preservar e até salvar a própria vida quando nenhum outro mortal o pode; assim como pouco se configurou a ideia de que entre a frieza de um cirurgião e a sanguinolência de um estripador está a separar uma linha ténue sustentada pela moralidade consagrada pela deontologia profissional daquele.

    Com o advento da alta tecnologia, desapareceu o Médico de família; o infalível profissional que merecia a cumplicidade até dos parentes da vítima ao ponto do erro fatal ser admitido como um sinal de vontade divina, e deu lugar ao médico de equipa ou médico de plantão. Surgiu a empresa-médica e com ela a complexidade da relação médico-paciente intervindo nela outros sujeitos (psicólogos, psiquiatras, farmacêuticos, enfermeiros, biólogos, químicos, etc.) numa cadeia de especialidades e tarefas multidisciplinares. Surgiu também o direito ampliado nos seus mecanismos a disciplina-la, como faz com qualquer outra relação social, e se oferece como um escudo protector para o profissional que se vê vulnerável ante a susceptibilidade do erro humano e a responsabilização desta decorrente e para a vítima retirada do convívio social ou diminuída a sua capacidade de nela tomar parte, operando os limites da acção voluntária e a base da responsabilização em geral através de dois domínios, a saber: O domínio da Responsabilidade Civil e o domínio da Responsabilidade Penal ou Criminal.

    É entendimento comum no domínio da Responsabilidade Civil que «aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação» (art.º 483.º do Código Civil – doravante CC). A amplitude do conteúdo da norma é suficiente para tornar o Médico vulnerável a sua previsão. Contudo, virá a questão de saber que direitos, pode, o Médico violar no exercício da sua profissão? Ora, na relação Médico-paciente patenteia-se desde logo a ameaça de lesão ou lesão efectiva de direitos inerentes a personalidade do paciente. Sendo que, o dano ou a simples ameaça de dano poderá emergir da integridade moral (moléstias psicológicas, transtornos psíquicos, etc.) e da integridade física (ofensas corporais com ou sem risco de vida, homicídio involuntário, etc.) projectados em fases diversas da assistência médica como na consulta (o médico não diagnostica convenientemente o paciente receitando inoportuna profilaxia), nos serviços de urgência (discrepância notória entre a necessidade médica do paciente e o dinamismo do Médico apontando ao insucesso da assistência), ou nos cuidados intensivos e operações clínicas de risco (a gestante forçada a abortar por erro de diagnóstico do estado do feto, incisão em local incerto afectando órgão saudável durante a cirurgia, diagnóstico precário resultando na amputação de membro, etc.). Situações que a moderna medicina denomina genericamente como erros iatrogénicos. Erros médicos que, devido à imprudência, imperícia ou omissão do acto médico, possam provocar ou causar uma lesão ou doença ao paciente, de modo irreversível, com prejuízo ligeiro ou grave das funções vitais do ser humano. Resultando que em qualquer das fases do contacto com o paciente o Médico pode ser responsabilizado pelos danos que eventualmente venha a causar àquele por qualquer um destes erros.
    Em caso de morte ou lesão corporal a responsabilidade do Médico pode ser abstraída da Lei (art.º 495.º do CC), determinando que a morte do paciente causado pelo Médico desencadeia o dever de indemnizar deste cobrindo as despesas feitas para salvar o lesado entre outras. Mesmo quando haja lugar a simples lesão corporal o dever de indemnizar cobrirá as despesas feitas por todos aqueles que socorreram o lesado, bem como os estabelecimentos hospitalares, médicos ou outras pessoas ou entidades que tenham contribuído para o tratamento ou assistência da vítima; valerá ainda para aqueles que podiam exigir alimentos ou aqueles que o lesado os prestava em cumprimento de uma obrigação natural.
    Claro está que os requisitos de responsabilização maxime em situações extracontratuais obedecem a um ritual nominativo que atravessando o facto jurídico (facto relevante para o direito), a ilicitude (acto contrário a lei), a imputação do acto ao lesante, o dano e o nexo de causalidade (o elemento que liga o acto praticado e o dano causado) e coroada pela culpabilidade (susceptibilidade de ser censurável, visto existirem pessoas como menores de idade e dementes que não podem sê-lo em tese geral) corresponde a um todo cumulativo sem o qual não é possível a responsabilidade civil do Médico. Vale sublinhar que embora a obrigação do Médico se inscreva na classificação das obrigações de meios ou de diligência, onde o próprio empenho do profissional é o objecto do contrato não importando, em consequência, que garanta o sucesso ou resultado da actividade em concreto decorrente do eventual contrato entre ele e o paciente, haverá lugar a culpabilidade pelo acto médico que decorrerá da negligência, imperícia e imprudência normalmente determinável pelo grau de previsibilidade do dano pelo autor.

    No domínio da Responsabilidade Penal o processo embora potencialmente símil, no que toca aos requisitos da responsabilização, apresenta características diversas. Assim, enquanto a responsabilidade civil se reporta teleologicamente a indemnização ou a reposição do status quo ante quando possível, a responsabilidade penal visa a pena, normalmente de privação da liberdade. A responsabilidade civil é accionada pelo interessado (lesado ou seu representante) e a responsabilidade penal quando casos graves como a morte do paciente e todos aqueles genericamente enquadrados nos crimes públicos é accionado por qualquer interessado cabendo ao Ministério Público assumir a causa sem interesse em transigir, visto estar em causa interesses públicos de preservação de valores.

    Os factos criminais resultantes de erros iatrogénicos são em geral tipificados como crimes involuntários. V.g.: o homicídio involuntário – art.º 368º do Código Penal – doravante CP (a cirurgia ou a receita negligente com a consequente administração de medicamentos que resulta na morte do paciente) e ofensas corporais involuntárias – art.º 369º do CP (agressões físicas e lesões resultantes da actividade do médico sobre o paciente quer em caso de cirurgia quer em caso de mera consulta – vide o caso da ruptura do útero e consequente sofrimento fetal agudo provocado pelo uso de ocitócicos em gestantes que já fizeram cesarianas em parto (s) anterior (es) ou o aborto provocado por razões médicas que leva involuntariamente ao corte da (s) trompa (s) inutilizando de modo irreversível os órgãos reprodutores femininos). Haverão crimes como o de envenenamento (art.º 353º do CP) em que a involuntariedade do acto médico é questionável e em geral resultantes da receita e consequente administração de medicamentos impróprios ou em doses excessivas causando intoxicação grave e/ou morte por este facto.

    E nos casos em que o Médico ciente da falta ou escassez de meios adequados para socorrer o doente em estado grave, sobretudo em eminência de morte, se vê confrontado com o dever deontológico-legal de assistência e com a omissão por incapacidade objectiva? Há situações em que o acto médico poderá configurar-se em estado de necessidade ou conflito de interesses como causa de justificação civil ou penal. É o que se passa nos casos de serviço de socorro em situação de urgência; na assistência médica em conflito armado ou operações militares intensivas, crises humanitárias ou situações de êxodo humano forçado e noutras situações em que por imperativo legal ao Médico sê-lhe subtrai o poder de decisão ou de exercício livre da vontade em favor do dever legal.

    Em homenagem ao princípio da suficiência do processo penal o Médico que cometer um crime por erro iatrogénico poderá ser civil e criminalmente responsabilizado em processo judicial a correr em tribunal com competência penal, donde, a pena eventual de prisão e o consequente dever de indemnizar por danos de natureza civil, sem prejuízo das questões prejudiciais que limitem o poder de cognição do juiz penal. Daí o dever do Ministério Público em averiguar os pressupostos para ambas as responsabilidades. É o que estabelece o parágrafo único do artigo 158.º do Código de Processo Penal nos termos do qual «Na instrução deverão, tanto quanto possível, investigar-se as causas e circunstancias da infracção, os antecedentes e o estado psíquico dos seus agentes, no que interessa à causa, e ainda o dano causado ao ofendido, a situação económica e a condição social deste e do infractor para se poder determinar a indemnização por perdas e danos». O Médico só não será punido se a prova conduzir a conclusão de que todo empenho foi inútil face ao resultado inexorável, quando, como especialista idóneo, agiu com a lex artis, ou seja, usou de manifesta prudência e engenhosidade reforçado por meios actuais e não contra-indicados, suprimindo inelutavelmente a probabilidade da ocorrência do erro iatrogénico.

    Sendo certo que ao médico não se pretende insuflar o espírito de perigosidade da prática da sua profissão, valendo sim o aviso que o Médico tal como um outro profissional ou mero cidadão está sujeito a Lei e as consequências da sua inobservância, haverá que se recomendar à classe médica que desencadeie e impulsione o espírito legislativo e regulamentar em torno da actividade médica e das condições do seu exercício na medida em que a falta de legislação específica para regular a actividade médica e o exercício da Medicina constitui uma situação de risco para o exercício desta actividade em Angola; a inexistência de um Direito Médico Angolano susceptível de prever, em determinados casos, causas justificativas ou de exclusão de culpa conducentes a redução ou extinção do valor sancionatório das condutas negligentes ou imprudentes dos profissionais de medicina torna os médicos vulneráveis a duras previsões legais em matéria de responsabilidade nos termos em que o são quaisquer outros cidadãos por sujeição ao ordenamento jurídico-civil e jurídico-penal comum. O que representa desigualdade de tratamento visto que a equiparação legal do comum dos homicidas ao bem intencionado médico que comete o crime de homicídio por erro iatrogénico, mesmo quando concorram circunstâncias atenuantes em favor deste, é no mínimo desproporcional e como tal injusta. Dixit.

    _____________
    * jukulomesso@yahoo.com.br

    1 comentário:

    1. Mas tambem quem disse que macaco podia ser médico, o lugar dos macacos é na selva. Essas faculdades de medicina em Angola não valem nada...de lá so saem matumbos, dai estes erros sistemáticos e grosseiros.

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