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    sexta-feira, 26 de novembro de 2010

    A LÓGICA DOS CONTRATOS PRIVADOS

    Excepções, desvios e vicissitudes – O caso de Yola Araújo Vs Comité Miss Huambo


    Albano Pedro

    (Texto publicado no Semanário Angolense)

    Veio a público – por este semanário que prometeu uma análise jurídica a propósito da qual debitamos – o caso que opõe Yola Araújo, famosa e querida cantora angolana e o Comité Miss Huambo sobre a “quebra” do contrato em que se obrigava a cantar num evento público organizado por esta entidade colectiva. A análise jurídica vem na base da seguinte percepção: O conflito nasce porque por um lado a organização do evento alega que a cantora deve devolver o dinheiro adiantado por virtude do acordo havido e por outro lado a cantora se vê no direito de reter o dinheiro já recebido (metade do valor global do contrato) com argumentos de que a falha no cumprimento do contrato se deve àquela organização. Não há dúvidas de que se está perante um conflito que pede esclarecimentos sobre as relações contratuais e suas consequências entre as partes. A ideia de contrato vem desde os latinos (contra actum) para elucidar a fusão de actos de vontade com proveniências subjectivas contrárias. Um acto (proposta) vai ao encontro de um outro (aceitação) e se fundem num único: contrato. Vindo a sua formalização (verbal ou escrita) seguido de outros elementos de validade jurídica conforme tipos ou espécies legais. A classificação técnica dos contratos é variável. Uma delas, procura determinar os sujeitos que neles se vinculam. Assim, teremos contratos unilaterais (em que apenas uma das pessoas se vincula – caso exemplificativo do testamento, e a maioria dos contratos mortis causa, em que apenas o interessado promete (ou prometeu, se de cujus ou falecido) dispor de certos bens ao sucessível (testamentário) independentemente da vontade ou aceitação deste), bilaterais (envolvendo duas partes contrárias – casos mais frequentes: compra e venda de bens, doação (oferta), mutuo, etc.) ou multilaterais (envolvendo mais de duas pessoas – os exemplos vão desde as sociedades comerciais – exemplos das sociedades anónimas com número igual ou superior a cinco sócios, entre vários). Este último tipo de contrato também é frequente nas relações públicas internacionais quando os Estados subscrevem tratados multilaterais ou fundam organizações internacionais (OUA, SADC, ONU, etc.).

    A Lei prefere, na maior parte das vezes, que os contratos sejam reduzidos por escrito como requisito de validade e não raro acresce-lhes uma outra exigência: a escritura pública, i.e., que sejam também publicamente conhecidos de acordo com as espécies de bens ou valores que acautelam. No Direito Público (aí onde intervêm o Estado e seus órgãos com poderes privilegiados – jus imperii) a possibilidade dos contratos verbais é rara devido ao Princípio da Legalidade que vincula tais entidades. Embora quando se fale em áreas cruzadas do Direito (onde normas de natureza pública coexistem com normas essencialmente privadas) surgem exemplos interessantes: O caso do contrato de trabalho por tempo indeterminado admissível em legislações laborais com a forma verbal ou o casamento no Direito de Família (embora muitos não admitam esta relação social como sendo contratual), entre poucos outros. Porém, nas relações fundamental e genuinamente privadas a existência de contratos verbais é mais frequente em homenagem ao princípio da autonomia da vontade das partes. Em boa verdade, não haveria necessidade de contratos reduzidos a escrito se as pessoas fossem capazes de honrar os seus compromissos tal como prometem fazê-lo quando extremamente necessitados. Já lá vão os tempos em que um fio de cabelo era tido como elemento de penhora sobre as promessas contratuais verbais. Tempos de um cavalheirismo honroso pós-medieval e renascentista imbuído de valores morais e éticos elevados, donde a prevalência da ideia de pacta sunt servanda (os contratos devem serem cumpridos) como fórmula ética já viabilizada desde os romanos clássicos. A flutuação da vontade humana bem como a complexidade das relações sociais recomendam modernamente que os acordos entre os homens sejam reduzidos por escrito, quer por razões de segurança material (verba volant, scripta manent) quer por razões de provas. Sobretudo depois de serem admitidos no convívio social um tipo de pessoa sem vontade própria: as pessoas jurídicas (entidades colectivas, etc.). Como à um Direito cabe sempre uma justiça (princípio da composição judicial necessária dos litígios sociais) os contratos verbais não serão pura e simplesmente ignorados. Assim, nasce uma diferença entre os contratos verbais e escritos. Enquanto estes se regem pelas cláusulas que as partes estabelecem voluntariamente (no calor da emoção do negócio) sendo subsidiariamente apoiadas pela Lei, os contratos verbais são defendidos directamente pelas leis correspondentes (Leis civis – Obrigações em especial, etc.) vindo daqui um regime de protecção mais rígido e pouco disponível à vontade das partes.

    O caso Yola Araújo Vs Comité Miss Huambo, visto no prisma dos interesses da cantora pode configurar um incumprimento excepcionalmente admitido por Lei na base de vários institutos jurídicos, dentre os quais o da Excepção do Não Cumprimento da Obrigação (Exceptio inadimpleti contractus - art.º 429.º - Código Civil – doravante CC) ou da perda do sinal em virtude da frustração de um contrato-promessa (art.º 410.º - CC) estabelecido entre as partes. A excepção do não cumprimento da obrigação ocorre naqueles casos em que um indivíduo que se propôs a adquirir a viatura de outrem vem no dia combinado sem o dinheiro completo para a realização do contrato de compra e venda. O vendedor neste caso tem o direito de recusar a venda da viatura exercendo uma prerrogativa legal (excepção de não cumprimento) sem a qual seria igualmente tido como incumpridor. Em homenagem ao princípio da boa-fé (art.º227.º - CC), que torna rígida a vinculatividade dos contratos, qualquer parte faltosa é obrigada a reparar os danos que venha a causar com a sua conduta. Contudo, a Lei protege o vendedor do incumprimento doloso ou negligente do comprador, i.e., “se não dás não dou” – excepção. Uma vez que a regra ética do cumprimento dos contratos sinalagmáticos (i.e., com nexo de correspectividade) é: do ut des (dou para que dês). A excepção do não cumprimento da obrigação ocorre em geral naquelas situações em que o contrato está na eminência de ser celebrado faltando apenas o cumprimento acessório de certos actos. As partes acertaram o dinheiro e os pormenores do contrato porém falta a prática dos actos materiais para que se assine definitivamente o contrato como mostra de cumprimento cabal das obrigações que os envolve: Basta a recusa daquele que é protegido pela cláusula de excepção e o contrato já não acontece. É diferente da Reserva de Propriedade (pactum reservatti dominii – art.º 409.º – CC) em que o problema está na transferência da titularidade da coisa objecto do contrato: exemplo, o vendedor da viatura não transfere o título de compra e venda em seu nome para o comprador enquanto este não pagar os últimos tostões conforme acordado em contrato já celebrado. Pode, até exercer a posse e utilizar, mas a viatura está ainda em nome do vendedor. Esta excepção é hoje muito frequente nos créditos automóveis cedidos pelos bancos comerciais em que o comprador (devedor bancário) vê a viatura comprada em nome do banco até completar o pagamento do respectivo crédito, embora a utilize em proveito próprio sem qualquer ingerência do banco. Falaríamos também de uma outra figura vizinha: o Direito de Retenção (art.º 754.º - CC) se não tivéssemos receio de cansar o leitor. Recapitulando: na excepção do não cumprimento da obrigação a parte protegida pela excepção não pratica um determinado acto (recusa a venda, por exemplo) ou não entrega determinada coisa, enquanto que na reserva da propriedade a parte protegida que já aceitou a venda não passa a titularidade da viatura em nome do comprador, embora este já a tenha efectivamente e a utilize em proveito próprio. São diferentes no tipo e iguais na finalidade. Porém, acontece que nem sempre o contrato pode ser estabelecido antecipadamente. Por exemplo, quem quer vender e ainda não tem os documentos da viatura ou o comprador que ainda não tem o dinheiro completo. As partes celebram então um contrato-promessa (em que prometem celebrar o contrato definitivo tão logo as condições em falta estejam reunidas). No contrato promessa com sinal (que está muito próximo do caso) em que uma das partes avança um montante pecuniário ou financeiro, embora a título de pagamento antecipado – total ou parcial, a Lei estabelece que aquele que receber o sinal (montante adiantado) pode retê-lo a título de indemnização se a causa do incumprimento da obrigação for imputável àquele que constituiu o sinal – i.e., se for por culpa daquele que deu de avanço o montante prometido. Porém, se o incumprimento for devido a quem recebeu o sinal, este tem a obrigação de devolver (a Lei fala em restituição) o montante em dobro (art.º 442.º – CC). Não interessa à Lei que Yola Araújo tenha viajado de carro para Huambo (com os riscos que bem conhecemos) e tenha feito gastos pessoais e extraordinários. Se houveram riscos e custos adicionais estes podem ser exigidos complementarmente à parte incumpridora mediante competente processo judicial, em caso de resistência ex-voluntate. De todo o modo, a Lei é clara. Há sinal e as partes regem-se pelas regras por ele estabelecidas. Há o problema de saber se este tipo de contrato pode ser verbal, visto que a Lei estabelece certos tipos de contrato-promessa como sendo obrigatoriamente escritos. Na melhor hermenêutica jurídica inscreve-se a ideia de que quando o contrato definitivo (contrato a que refere a promessa) é exigível documento autêntico ou particular, a redução escrita da promessa é obrigatória. Pelo que, por argumento ad maius (maioria de razão) se entende que para os contratos de prestação de serviços a redução por escrito não é indispensável e como tal a respectiva promessa pode ser verbal. O contrato promessa coloca ainda o problema da tutela jurídica (garantia) em caso de incumprimento. Não tendo sido reduzido a escrito, a garantia idónea seria a execução específica (art.º 830.º - CC) como regime-regra. Contudo, há um montante (2.000,00 USD) adiantado pela organização do Comité Miss Huambo que a Lei entende como sendo sinal. Neste caso, afasta-se a garantia da execução específica em favor da regra do sinal que estabelece a forma de indemnização.

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