O ESTADO PODE LIMITAR O REGISTO OU RESTRINGIR O USO DE NOMES DOS CIDADÃOS?
Albano Pedro*
Um problema não menos frequente no processo de registo de nomes junto das conservatórias de registo civil é o que resulta do deferimento condicionado do pedido para a alteração do nome. Nome mal escrito – por erro do conservador ou má pronúncia do pai ou interessado requerente –, nome vexante ou nome preterido por vontade de adoptar um novo nome mais agradável de usar pode ou não ser livremente trocado mediante um novo registo? A nossa Lei não permite tal façanha sem que concorra a vontade do Estado na pessoa do Ministro da Justiça a quem cabe considerar as razões de mudança do nome em causa.
Em face disto, cabe considerar que o nome como expressão da personalidade e base da dignidade humana é um conceito e ideia que remonta desde fases remotas da história da humanidade. Consta, no livro de Daniel (Bíblia Sagrada), capítulo 1, versos de 3 a 7 que os nomes de jovens judeus foram mudados para os nomes dos deuses do rei conquistador. Daniel (Deus é o meu Juiz), passou para Beltessazar (Bel proteja sua vida); Hananias (Jeová demonstra graça) para Sadraque (Ordem de aku); Misael (Quem é o que Deus é) para Mesaque (Quem é o que aku é); e Azarias (aquele a quem Jeová ajuda) passou a Abede-Nego (Servo de nebo). O rei babilónio conquistador dos judeus entendeu com este acto tornar os jovens judeus em babilónios de modo que a sua personalidade e cultura fosse conforme os deste povo. Tal a força conversora da personalidade operada por um nome novo na concepção dos antigos cuja percepção nos tempos modernos levou a humanidade a protegê-lo na categoria dos direitos de personalidade.
Como poderes que o homem exerce sobre si mesmo, os direitos de personalidade – em que se inserem o direito ao nome – resultam da personalidade enquanto conjunto de características físicas e morais dadas ao indivíduo por um Ser Supremo de maneira directa e individualizada permitindo a criatura humana exteriorizar a sua verdadeira essência. Tão forte é a essência dos direitos de personalidade que ao Direito não é atribuído o poder de conceder a personalidade ao ser humano, esta é intrínseca ao homem. Os direitos de personalidade identificam-se enfim como sendo a última reserva dos indivíduos em que o Estado não pode interferir sem ofender a dignidade humana e reduzir o ser humano a mero instrumento ao serviço daquele. Por serem direitos que se referem ao indivíduo em si mesmo com os seus atributos físicos e intelectuais – inatos a pessoa humana – e simultaneamente ao ser humano enquanto ente social em suas múltiplas projecções no ambiente colectivo, a moderna doutrina jurídica apetrechou-os com várias características. O direito ao nome é assim um direito absoluto (oponível erga omnes, i.e., o seu exercício pelo titular não pode ser perturbado por qualquer pessoa que seja), impenhorável, imprescritível, indisponível, inexpropriável, personalíssimo, público e relativamente transmissível que espelha a qualidade de ser pessoa. Se o nome é a expressão jurídica da personalidade, a sua qualidade de um direito público de natureza subjectiva demarca o limite da acção do Estado na relação com o indivíduo preservando a dignidade deste. Restringe a ingerência do Estado na esfera privada – conservando intacto um círculo mínimo denominado por privacidade em que se escudam pouquíssimos outros direitos intangíveis – o que permite a sobrevivência da ideia de liberdade como valor fundamental da dignidade humana constitucionalmente consagrado na maioria dos Estados Democráticos e de Direito modernos.
Os direitos de personalidade não podem ser restringidos e muito menos violados. Decretado estado de emergência num país é aceitável a restrição de certos direitos como o de movimentação ou locomoção em certa área geograficamente determinada mas não ocorre a ninguém permitir-se ofendido fisicamente sem protestar, ou ter a sua honra desgastada pelas falsas informações contra si veiculadas nesta fase; tão pouco aceitará ter o nome alterado por razões estranhas a sua vontade. Veja-se aqui o enraizamento que os direitos de personalidade têm em cada um de nós ao ponto de serem efectivamente partes intrínsecas de nós mesmos. E foi assim, a concepção filosófica do passado não longínquo do período pré-constitucionalista dos direitos humanos em que se achava que os direitos de personalidade por intrínsecos a personalidade humana eram inimagináveis como direitos consagrados. Achava-se naquele momentos escuros da estatalização das sociedades que o que é próprio do homem não pode ser consagrado e como tal protegidos e tutelados por documento legal sem sê-lo com eficiência pelo seu próprio titular. Visão individualista da tutela dos direitos que levou a emancipação de certo leque de direitos, por “internos” ao homem a categoria de direitos de personalidade, sendo primeiro do que tudo, invioláveis por quem quer que seja.
A oscilação no exercício dos direitos de personalidade determina a pendência de Estado Totalitarista para um Estado Liberal e vice-versa. Mais se exercem os direitos de personalidade mais Estado Livre menos se exerce mais Estado Totalitário. Nada ofende um povo mais do que a restrição do exercício dos direitos de personalidade. Isto explica que ao longo da História os Estado Totalitaristas não tenham sobrevivido por muito tempo. Um indivíduo pode ter, por certo lapso de tempo, a covardia de um escravo desde que tenha um mínimo de direitos a exercer (estes encontram-se normalmente no limite dos direitos de personalidade). Daí que a luta dos poderes públicos pelo controlo dos cidadãos através da mecanização da consciência e dignidade humana seja um assunto que se levanta em sede da reforma dos direitos de personalidade em face do crescendo tecnológico sobretudo quando se pensa que num futuro próximo o nome do indivíduo será substituído por um número expresso em códigos de barras, o pensamento descodificado para servir interesses públicos e em geral a privacidade largamente esmagada pelo poder interventivo do Estado. Crê-se, ser este momento, o do clássico fim-do-mundo pela incapacidade natural do homem em permitir a invasão a este último património da sua existência como pessoa.
Sobre o ângulo da limitação e restrição do registo e do uso de nomes, a Lei vigente impõe o registo obrigatório de quatro nomes (ex. João Eduardo António Fonseca), sendo dois próprios (João Eduardo), um da mãe (António) e outro do pai (Fonseca). O que é inibidor ao direito de personalidade visto que os pais não podem registar seus homónimos como caso de Jorge Miranda dos Santos não pode registar seu filho como Jorge Miranda dos Santos Júnior ou Jorge Miranda dos Santos II; registar seu sobrinho como Jorge Miranda dos Santos Sobrinho; seu neto como Jorge Miranda dos Santos Neto. São possibilidades que actual lei não permite de forma injustificável. O que leva o Estado a limitar ou restringir o registo ou uso do nome do cidadão? Em boa verdade não existe em Estados Democráticos e de Direito modernos quaisquer obstáculos ao gozo e ao exercício do direito ao nome. Se o direito ao nome é inviolável e intocável, dentre outras características já apontadas, não teremos outra visão para o actual quadro legal senão aquela que se liga ao facto de termos ainda sobrevivo nesta Lei a ideia de Estado Totalitarista que penetra na personalidade do indivíduo reduzindo a sua cidadania em nome de uma ideologia colectivista de realização humana que caracterizou Angola nos períodos pró-socialista e centralista de Estado. Assim se compreende que em pleno Estado moderno do primado da liberdade e da dignidade da pessoa humana sobreviva uma Lei com tais características. Empreendimento sério sobre a reforma legal deve levar ao afastamento de semelhante lei nesta matéria por caduca, inconveniente e historicamente ultrapassada, permitindo aos angolanos, enquanto ser humanos, um desenvolvimento livre das suas personalidades dentro dos espaços e limites permitidos pelas liberdades, garantias e direitos fundamentais consagrados em legislação universal e africana dos direitos humanos integrados na Lei Constitucional vigente. Dixit.
* www.jukulomesso.blogspot.com
sábado, 18 de abril de 2009
Direitos de Personalidade
O DIREITO AO NOME II
Direitos de Personalidade
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