Albano Pedro
O aparente conflito travado na justiça angolana entre a jurisdição comum (Tribunal Provincial de Luanda como tribunal “a quo”) e a jurisdição especial (Tribunal Constitucional como tribunal “ad quem”) devido ao Acórdão (n.º 122/2010) deste último sobre o caso mediaticamente conhecido como SME, parece colocar em causa a hierarquia dos Tribunais no sistema judicial angolano, já que o juiz do Tribunal Provincial de Luanda que proferiu a sentença ora anulada pelo Tribunal Constitucional alega necessitar de uma “avaliação” do Tribunal Supremo para executar o acórdão que impõe a anulação da sentença e seus efeitos. Esta situação decorre, por um lado, da reorganização do sistema judicial angolano que no passado confundiu dois tribunais num único. Antes da criação do Tribunal Constitucional, o Tribunal Supremo tinha competências em razão da matéria para apreciar casos que hoje cabem unicamente no Tribunal Constitucional para além daqueles que lhe cabem naturalmente. Certamente, habituados a ver emanado da mesma jurisdição as decisões em consequência de recursos para apreciação do mérito da causa ou para a apreciação da constitucionalidade das normas que lhes subjazem, os juízes enfrentam hoje alguma dificuldade fenomenológica sobre a função natural de cada uma das duas instituições judiciais. Por outro lado, a decisão do Tribunal Constitucional deve incidir apenas sobre a questão da inconstitucionalidade suscitada no processo (art.º 47º, 1 – Lei n.º3/08 – Lei Orgânica do Processo Constitucional – Daqui em diante LOPC) e nunca provocar a nulidade da sentença implicando matérias diversas que envolvem o processo como um todo. Daqui se compreende o embaraço do Tribunal Provincial de Luanda em executar o Acórdão do Tribunal Constitucional.
Não há que confundir o papel máximo na hierarquia dos tribunais comuns atribuído ao Tribunal Supremo e o papel fiscalizador da constitucionalidade das decisões judiciais do Tribunal Constitucional. A Lei Constitucional (doravante LC) confere a este tribunal, dentre outras, a função de “apreciar em recurso a constitucionalidade das decisões dos demais Tribunais que recusem a aplicação de qualquer norma com fundamento na sua inconstitucionalidade” ou “…que apliquem normas cuja constitucionalidade haja sido suscitada durante o processo” (art.º 180º alíneas d) e e). Se é verdade que ao Tribunal Supremo é reconhecido a o papel de “vértice” de todo o sistema de justiça comum angolano, por outro lado as suas decisões não devem contrariar a Lei, embora se diga que o tribunal produz Direito através da jurisprudência cristalizada pelas sentenças com valor de caso julgado (decisões judiciais irrecorríveis). O Tribunal Constitucional no seu papel de garante de inviolabilidade da Lei Constitucional não se coloca hierarquicamente acima do Tribunal Supremo, porém em razão de matéria (conformação constitucional das decisões judiciais) coloca-se como um tribunal de hierarquia superior deferida ou indirecta em relação ao qual os tribunais comuns (incluindo o Tribunal Supremo) e demais tribunais especiais se submetem ao controlo da constitucionalidade dos seus actos e processos. Isto acontece por razões lógicas. Ninguém está acima da Lei. Logo, sempre que se verifique uma violação, mesmo não clamorosa, das normas fundamentais como tais plasmadas na Lei Constitucional, independentemente do tribunal e nível ou âmbito de jurisdição correspondentes, é dever do Tribunal Constitucional “interromper” tal jurisdição, quando solicitado por recurso competente, mediante apreciação de conformidade constitucional.
Reordenando os factos judiciais no caso SME aconteceria que as alegações em matéria de inconstitucionalidade seguiriam em recurso extraordinário para o Tribunal Constitucional. Dado o provimento ao recurso o processo baixaria para o Tribunal Provincial de Luanda afim de que este reformasse a decisão em conformidade com a decisão daquele tribunal (art.º 47º,2 – LOPC). A sentença reformada teria expurgados os aspectos inconstitucionais mantendo os restantes (factos criminais provados e judicialmente seguros). Se o Ministério Público (representado pela PGR – Procuradoria Geral da República) ou os advogados dos réus não se conformassem com a sentença ora reformada, e certamente condenatória em relação aos réus, estariam habilitados a interpor recurso ordinário para o Tribunal Supremo sobre o mérito da causa de uma sentença já com as questões de inconstitucionalidade sanadas. Finalmente, caberia ao Tribunal Supremo na qualidade de órgão judicial hierarquicamente superior o dever funcional de anular a sentença proferida em 1ª instância (Tribunal Provincial de Luanda) apreciado apenas o mérito da causa.
É de perceber que a PGR esteja inconformada com a decisão tomada pelo Tribunal Constitucional mantendo o ímpeto da perseguição judicial sobre os réus. Neste capítulo, o Tribunal Constitucional abriu um enorme fosso no sistema judicial angolano ao provocar uma situação de impossibilidade judicial a um processo criminalmente viável. Porque, se por um lado, chamou a si as competências próprias do Tribunal Supremo ao anular o processo, por outro lado não permite qualquer recurso de revisão da sentença proferida pelos seus juízes (por falta de fundamentos) ou recurso para o Tribunal pleno (por falta de decisão anterior que tenha apreciado matéria afim para a uniformização da jurisprudência). Qualquer uma dessas últimas vias permitiria a que o Tribunal Constitucional revisse a sua posição ab-rogatória sobre o processo em causa. É um facto judicial inédito que levou ao trânsito em julgado uma decisão judicial rica de conteúdos incrimidores provados porém arrastados de modo grosseiro à nulidade pela inconstitucionalidade do processo. Assim, esgotadas as possibilidades de recurso ao próprio Tribunal Constitucional, a PGR não tem, se quer, como interpor Recurso Ordinário ao Tribunal Supremo sobre o mérito da causa, ficando de mãos atadas diante dos réus favorecidos pela impunidade. O que dá azo a questão de saber se os então réus, podem ser indiciados em novos processos judiciais. As Leis adjectivas e substantivas sobre crimes estabelecem o princípio «ne bis in idem», i.é, não é admissível um novo julgamento sobre os mesmos factos pesando sobre os mesmos sujeitos já julgados, embora nada impeça que se proponham novas acções judiciais em proveito dos aspectos cíveis como indemnizações a favor do Estado e outros em tribunal competente (art.º 289º do Código do Processo Civil). Admissível é, em jurisdição penal, a possibilidade de serem arrolados novos factos (criminalmente relevantes não considerados no processo já julgado). Porém, o novo processo não aproveita quaisquer efeitos do processo anterior, nomeadamente a manutenção da prisão, preventiva por exemplo, em benefício de um novo processo. Significa que os réus ora absolvidos não podem ser mantidos presos com argumentos de que devem aguardar por um outro julgamento com base num novo processo por instruir com fundamentos em factos não invocados no processo que produziu a absolvição dos mesmos. Se a sentença é nula com ela desaparecem os seus efeitos (cessant causa cessant efectus ipsa). Por outro lado, os réus ora absolvidos podem recorrer contra o Estado e seus agentes responsabilizando-os por quaisquer danos morais ou materiais que tenham contraído ao abrigo do processo com a sentença nula, mesmo que sejam constituídos réus em novos processos judiciais.
Considerados os factos nesta nova vertente, o que deve estar claro é que a nulidade da sentença não decorre do eventual não cometimento dos crimes de que os réus foram acusados, mas da desconformidade constitucional dos procedimentos do Tribunal Provincial de Luanda na condução e no julgamento da causa. Estaremos perante razões adjectivas ou processuais relevantes a “inutilização” judicial da causa julgada. Por este facto, se justifica que a PGR recorra eventualmente a outros elementos relevantes a responsabilização criminal dos réus uma vez que o Tribunal Constitucional não provou (e nem tem que provar por limitação da competência material) que os mesmos são inocentes em relação aos inúmeros factos criminalmente relevantes arrolados como tendo sido praticados. O que não deixa de levantar problemas éticos e deontológicos como o de justificar a razão de tais factos criminalmente relevantes não terem sido catalogados no processo judicial anulado ao longo da sua instrução, mesmo quando a perseguição judicial dos réus seja levada a cabo com a nobre missão de repor a legalidade e a justiça gravemente feridas pela inoportuna intervenção do Tribunal Constitucional. Contudo, os réus do processo em causa devem ser absolvidos e devolvidos a liberdade para testemunharem a vigência impune pelo sistema jurídico angolano de uma jurisprudência produzida ao arrepio das leis do processo judicial e dos princípios e valores constitucionais, infelizmente.
quarta-feira, 13 de outubro de 2010
Direito Público
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