QUESTÕES ÉTICAS E JURÍDICAS PERTINENTES AO CASO JOTA MALAKITO
(Análise encomendada pelo Semanário Angolense )
Albano Pedro
Decorre no Tribunal Supremo o processo n.º n.º8001/2009, com o julgamento marcado para o mês de Outubro deste ano, em consequência do recurso interposto sobre um outro processo com o n.º 3450-B/2009 julgado em primeira instância pelo Tribunal Provincial da Lunda – Norte que é mediaticamente conhecido como Caso Jota Malakito em que mais de três dezenas de cidadãos angolanos naturais da zona leste de Angola são acusados de prática de Crimes Contra a Segurança do Estado por reivindicarem direitos incorporados num acordo estabelecido “entre Portugal e Soberanos – Muananganas Lunda Tchokwe, da Convenção de Lisboa de 25 de Maio de 1891, ractificado no dia 24 de Março de 1894 sobre a delimitação das fronteiras na Lunda e trocado no dia 1 de Agosto do mesmo ano, entre Portugal e a Bélgica sob mediação Internacional da França, na presença da Alemanha, Inglaterra e do Vaticano, tornando assim a Lunda em Estado Independente mediante o qual Portugal produziu a Lei N.º 8904/1955 de 19 de Fevereiro, e em consequência a Lunda foi atribuida a letra “g” no contexto das Nações” (termos transcritos do manifesto). A reivindicação implica as províncias da Lunda Norte, Lunda Sul, Moxico e Cuando Cubango enquanto espaço territorial reclamado pelo Estado Lunda.
A luz da Lei Constitucional vigente qualquer cidadão é livre de exercer a sua liberdade de consciência, exprimir dela as suas ideias e manifestá-las publicamente, inclusive na forma de associação (art.º 40º, 41º,47º e 48º). Estas e demais liberdades representam o pacto entre o Estado e o indivíduo mediante o qual este desenvolve livremente a sua personalidade nos limites em que não perigue a existência harmoniosa do Estado. Enquanto os direitos fundamentais representam o limite estabelecido pelo Estado para os indivíduos, as liberdades fundamentais representam o limite estabelecido pelos indivíduos para o Estado. Visto que sem o seu exercício a existência humana não é possível sem conflitos. Daí que os direitos fundamentais estão para o Estado de Direito tal como as liberdades fundamentais estão para o Estado Democrático, sendo as garantias fundamentais os mecanismos legais de tolerância do conflito dialéctico entre aquelas duas dimensões fundamentais inscritas genericamente na Lei Constitucional como Direitos e Deveres Fundamentais. Por ser, em geral, concretizado contra o Estado é que se toma o exercício das liberdades como perigoso para a estabilidade política da sociedade e em consequência, o seu exercício seja o menos permitido possível pelos poderes constituídos. Não estranha por isso, que seja no abuso do exercício das liberdades fundamentais, em que radicam as condutas tipificáveis como crimes contra a Segurança do Estado por pôr em causa a integridade territorial e estabilidade política do Estado.
É verdade que a ideia de reivindicação de um estatuto que leve ao desmembramento territorial de certas regiões de Angola não é projecto viabilizado pela maioria dos angolanos, já porque o território herdado do processo de colonização constitui a causa suprema de unidade nacional pelo qual todos angolanos têm lutado desde os tempos mais remotos, tendo jorrado rios infindáveis de sangue e lágrimas. Não faz sentido, que tenhamos morrido tantos para termos o território perdido para outros projectos de nação e de Estado. Tudo indica que não é este o desiderato deste grupo de cidadãos que ao que parece reivindicam melhores condições sociais e económicas para as regiões de que são originários, na forma desesperada de reivindicação política. Até porque o manifesto admite tão só a reivindicação de estatuto de região autónoma do ponto de vista administrativo e financeiro. O PRS (Partido com forte influência regional das Lundas) tem defendido o projecto de um Estado federativo, como extensão máxima de descentralização política, na visível perspectiva de reduzir ao mínimo a necessidade de reivindicações do género que surgem igualmente em outros espaços territoriais de Angola como Cabinda por exemplo. Contudo, a repressão não é o caminho para o combate contra uma tendência que tem a sua causa se debatida abertamente a questão até a exaustão de forma descomplexada entre os angolanos.
Todavia, não faz sentido que tais cidadãos sejam molestados com argumentos incriminatórios por razões infundadas para as Leis de Segurança do Estado e arrepiantes para os princípios e regras do Direito Internacional Público. Primeiro porque se existe uma reivindicação política esta deve ser exercida contra o Estado Português que foi afinal a parte com a qual o Estado Lunda celebrou o acordo de Protectorado. Segundo, para o Estado Angolano tal acordo inscreve-se no âmbito da inexistência jurídica não merecendo por isso qualquer consideração. Vindo daí que os actos relativos a manifestação de tais intenções não são sequer ameaçadores da integridade territorial por inexistentes. O Estado angolano herdou os actuais marcos fronteiriços de Portugal o que demonstra que a violação de tal acordo aconteceu ainda durante o período colonial. O mapa de Angola é fruto da convenção internacional de Berlim em que se verificou a partilha de África pelas potências colonizadoras. Nesta altura Portugal terá apresentado todos os pontos geográficos e espaços territoriais sob sua dominação. Angola toma de Portugal o actual território por força da independência, como acto jurídico primário de transferência de titularidade do espaço territorial, reconhecida pela comunidade internacional como fundamento da soberania do Estado. Não sendo uma transferência voluntária tudo se passa como se Portugal tivesse perdido a favor de Angola surgindo a propriedade na esfera jurídica deste ex-novo, i.é, como se existisse pela primeira vez. Não se fala por isso em dívidas ou obrigações transmissíveis com a propriedade como quando acontece com a transmissão voluntária como a compra e venda de um bem ou a herança adquirida por sucessão mortis causa. A independência é um título jurídico-político (formalizado com a Lei Constitucional) que extingue em absoluto qualquer forma de existência jurídica anterior dos bens e valores compreendidos pelo território do Estado nascente, por isso falar-se de soberania do Estado enquanto poder que se impõe inelutavelmente a comunidade internacional sem o concurso de um outro poder que lhe seja paralelo. As nacionalizações de bens de produção ou os confiscos de bens de uso particular são actos jurídicos que derivam da soberania dos Estados por força da aquisição originária desencadeada pela independência. Ademais, no plano internacional público não faz sentido falar-se em Estado Lunda. É inexistente como Estado (sem personalidade jurídica) e em homenagem ao princípio “nemo plus iuris transferre quam ipse habet” (não se tranferem direitos não havidos na esfera jurídica do tranferente) válido no Direito Internacional morre a pretensão de um estatuto de região autónoma por essa via. Porque embora, reconhecido como Estado pelas antigas potências colonizadoras e atribuida a letra “G”, segundo os termos do manifesto, a soberania da Lunda nunca foi exercida mesmo durante a colonização em que Portugal, no plano Internacional reconheceu a região compreendida pelo Estado Lunda como parte integrante do seu território colonial. A reivindicação, nos termos em que se manifesta, é ilegítima. Os seus autores não devem reclamar de qualquer estatuto para a região pretendida como pode ocorrer em imaginações mais atrevidas. Tais reivindicações são aceites se vistas como globais e reflectidas nas reivindicações nacionais em que os angolanos pretendam um modelo mais eficaz de administração do erário público e do território em benefício de todos.
Também vale reflectir que uma possível reivindicação de estatutos não pode ser apenas contra o Estado angolano, visto que o Império Lunda-tchokwe conhecido desde a época pré-colonial compreendia regiões modernamente integradas em três Estados contíguos (Angola, República Democrática do Congo e Zâmbia). Se bem-intencionada tal reivindicação deve ser oposta simultaneamente aos três Estados vizinhos como prova de um projecto nacional autónomo reclamado pelos Lundas desde os seus ancestrais. Por outro lado, não faz sentido algum ver em reivindicações sem fundamentos jurídico-legais quaisquer intenções criminosas. Sobretudo quando se sabe que o simples pensamento não é passível de sanção criminal tal como os actos expressos sem ofensa legal não podem ser reconduzidos a categoria de infracções. Não há qualquer ameaça a paz pública para merecerem quaisquer considerações passíveis de subsunção aos Crimes Contra a Segurança do Estado. É gratuita publicidade pretender relevar condutas perfeitamente admissíveis no âmbito da liberdade de consciência e expressão dos indivíduos como as expressas com a reivindicação do estatuto de autonomia. É uma mera reivindicação que pode ser ou não reconhecida e admitida pelos órgãos de soberania do Estado angolano e nada mais. Tal publicidade, se digna, tem apenas a virtude de promover um debate franco e aberto sobre os melhores modelos de organização e administração do território angolano passando em revista todos os seus níveis desde que compreendendidos como meros momentos de descentralização política de um Estado soberano sem perder-se de vista o projecto comum de uma Angola de angolanos. Que os réus, ora constituídos, sejam absolvidos em nome da justiça e devolvidos à liberdade!
sexta-feira, 1 de outubro de 2010
Direito Público
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